Leis coloniais ainda vigoram em muitos países africanos
Clarissa Herrmann | ck
24 de julho de 2019
Críticos dizem que as leis coloniais, que continuam a vigorar em muitos países, são instrumentos de opressão que travam o progresso. Ruanda decidiu revogar todas essas leis de uma assentada. Será uma decisão razoável?
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Referindo-se aos cerca de 1000 textos legais coloniais que ainda vigoram no país, o ministro da Constituição de Ruanda, Evode Uwizeyimana, disse a um jornal ser uma vergonha que os instrumentos legais emitidos pelos mestres coloniais ainda sejam válidos.
O Ruanda não é um caso isolado. Segundo o professor de História Africana, Andreas Eckert, da Universidade Humboldt de Berlim, "é um facto que muitos países africanos adotaram inicialmente grande parte do sistema jurídico introduzido no colonialismo", embora depois tenha havido ajustes.
Leis coloniais ainda vigoram em muitos países africanos
Forma de controlo
Malte Lierl, pesquisador do Instituto Alemão de Estudos Globais e de Área (GIGA) em Hamburgo, diz que este sistema jurídico foi concebido para facilitar o controlo da população e a exportação do maior volume possível de matérias-primas.
"Ao mesmo tempo, as leis coloniais estavam imbuídas de uma ideologia racista", explica Lierl. "As instituições políticas e a legislação dos estados coloniais não eram as mais adequadas para promover atividades económicas independentes, a industrialização ou a participação democrática."
Segundo o pesquisador, em muitos países africanos ainda vigoram leis coloniais que dificultam a vida da população ou discriminam as minorias. Um exemplo são as leis que criminalizam a homossexualidade e que trazem muito sofrimento aos afetados.
As regras e leis coloniais tiveram efeitos particularmente graves no Ruanda. Nos anos 30, os governantes coloniais belgas introduziram cartões de identidade nos quais a etnia da população era registada como hutus ou tutsis. Alguns especialistas acreditam que esta categorização exacerbou a divisão entre os grupos populacionais que conduziu ao genocídio de 1994.
Solução jurídica
Mas, para o advogado queniano Martin Oloo, eliminar todas as leis coloniais não é solução: "O importante seria ver o que funciona e o que não funciona, para não criar lacunas na legislação". Só as leis que serviram os interesses dos colonialistas devem ser abolidas, refere.
No Ruanda, por exemplo, já existe a possibilidade de eliminar leis ultrapassadas ou perigosas. O artigo 171º da Constituição estabelece que as leis antigas continuam a vigorar, salvo se forem contrárias à Constituição.
O advogado alemão Ulrich Kerpen, que foi conselheiro do Governo sul-africano na transição para a democracia depois do fim do "apartheid", sugeriu na altura que fossem mantidas as leis úteis: "Em todos os países, não só no Ruanda, o sistema legal tem defeitos. Mas mais vale um sistema legal com defeitos do que um país sem sistema legal", afirmou.
O genocídio no Ruanda
O genocídio no Ruanda, 25 anos atrás, em 1994, chocou o mundo. Na época, a comunidade internacional assistiu de braços cruzados – sobretudo a França e a ONU – ao assassinato de cerca de 800 mil pessoas.
Foto: picture-alliance/dpa
O pontapé do genocídio
No dia 6 de abril de 1994, o avião em que viajava o então Presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, foi derrubado por um foguete quando se aproximava da capital Kigali. O atentado matou Habyarimana, o Presidente do Burundi e outros oito ocupantes da aeronave. No dia seguinte, começam os massacres, que duraram três meses e custaram a vida de pelo menos 800 mil ruandeses.
Foto: AP
Vítimas escolhidas a dedo
Depois do assassinato do Presidente, extremistas hutus começaram a atacar membros da minoria tutsi e hutus moderados. Os assassinos estavam bem preparados e escolhiam suas vítimas entre ativistas de direitos humanos, jornalistas e políticos. Entre as primeiras vítimas, no dia 7 de abril de 1994, estava a primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana.
Foto: picture-alliance/dpa
Resgate de estrangeiros
Enquanto nos dias posteriores milhares de ruandeses eram mortos diariamente em Kigali e no interior, forças especiais belgas e francesas retiraram do país cerca de 3.500 estrangeiros. Paraquedistas belgas resgataram em 13 de abril os sete funcionários alemães da Deutsche Welle em Kigali, juntamente com suas famílias. Apenas 80 dos 120 empregados locais da emissora sobreviveram ao genocídio.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Grito de socorro
Já no início de 1994, o comandante das tropas de paz da ONU, o canadense Roméo Dallaire, tinha indícios de um planejado extermínio da população tutsi. Sua mensagem à ONU, conhecida como o "fax do genocídio", enviada em 11 de janeiro, foi rejeitada. Os apelos posteriores do general durante o genocídio também foram ignorados pelo então chefe das operações de manutenção da paz, Kofi Annan.
Foto: A.Joe/AFP/GettyImages
Mídias do ódio
O filme "Hate Radio", do diretor suíço Milo Rau (foto), lembra a estação Radio Mille Collines (RTLM) que, junto ao jornal semanal "Kangura", incitava o ódio contra os tutsis. Kangura, por exemplo, publicou já em 1990 os "Dez mandamentos hutus", com alto teor racista. A Mille Collines, popular pela música pop e pela cobertura desportiva, fazia chamadas diárias pela perseguição e morte de tutsis.
Foto: IIPM/Daniel Seiffert
Refúgio no hotel
Em Kigali, Paul Rusesabagina escondeu mais de mil pessoas no Hotel des Mille Collines. Depois que o gerente belga deixou o país, Rusesabagina o sucedeu no cargo. Com muito álcool e dinheiro, ele conseguiu impedir as milícias hutus de matar os refugiados. Em muitos outros refúgios, as vítimas não conseguiram escapar de seus assassinos.
Foto: Gianluigi Guercia/AFP/GettyImages
Massacres em igrejas
Mesmo igrejas, onde muitos buscaram refúgio, não foram respeitadas. Cerca de 4 mil homens, mulheres e crianças foram mortos na igreja de Ntarama, perto de Kigali, por assassinos portando machados e facões. Hoje, a igreja é um dos muitos memoriais do massacre. Crânios e ossos humanos, além de buracos de bala nas paredes, lembram até hoje o genocídio.
Foto: epd
O papel da França
Paris manteve laços estreitos com o regime hutu. Quando os rebeldes da Frente Patriótica Ruandesa (FPR) já tinham ganhado terreno sobre os autores de genocídio, em junho, o Exército francês entrou em ação. E permitiu que soldados e milicianos responsáveis pelo genocídio fossem com armas para o Zaire, atual República Democrática do Congo, onde representam até hoje uma ameaça para o Ruanda.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Fluxo de refugiados
Durante os massacres, milhões de ruandeses, tutsis e hutus, fugiram para os países vizinhos Tanzânia, Zaire e Uganda. Só no Zaire (hoje RDC), foram dois milhões de refugiados. Ex-membros do Exército e os autores de massacres fundaram as Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda, que são até hoje um fator de insegurança no leste congolês.
Foto: picture-alliance/dpa
Tomada de Kigali
Diante da Igreja da Sagrada Família, em Kigali, patrulham em 4 de julho de 1994 rebeldes da RPF. Nessa época, eles já haviam libertado a maioria das regiões do país e forçado os assassinos a baterem em retirada. Ativistas de direitos humanos se queixam, no entanto, que os rebeldes também cometeram crimes pelos quais ninguém foi responsabilizado até hoje.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Fim do genocídio
O general Paul Kagame, líder da RPF, declarou em 18 de julho de 1994 o fim da guerra contra as forças do Governo. Os rebeldes assumiram o controlo da capital e outras grandes cidades. A princípio, empossaram um Governo provisório. Desde o ano 2000, Kagame é o Presidente do Ruanda.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Cicatrizes permanentes
O genocídio durou quase três meses. A maioria das vítimas foi brutalmente assassinada com facões. Vizinhos mataram vizinhos. Cadáveres e partes de corpos de bebés, crianças, adultos e idosos se amontoavam ao longo das ruas. Poucas famílias foram poupadas. Não só as cicatrizes nos corpos dos sobreviventes mantêm viva a memória do genocídio.