Projeto surgiu de uma proposta da Associação de Afrodescendentes (Djass). Monumento simbólico vai valorizar a memória das pessoas escravizadas e apresentar uma contranarrativa à chamada "era dos descobrimentos".
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Depois de um aceso debate e polémica, Portugal vai ter finalmente um Memorial da Escravatura, a ser erguido numa das praças mais emblemáticas da capital portuguesa. O Memorial da Escravatura, que ficará decididamente implantado no Largo José Saramago, perto do Campo das Cebolas, deverá ser inaugurado no primeiro ou segundo semestre de 2020.
"Na verdade, do ponto de vista simbólico, foi ali que existiu o Mercado de Escravos. De facto, faz todo o sentido que seja naquela zona", afirmou à DW África Catarina Vaz Pinto, vereadora de Cultura da Câmara Municipal de Lisboa.
Lisboa terá um Memorial da Escravatura
O projeto inclui um Centro Interpretativo, que nascerá da recuperação de um edifício camarário existente no local. "Com o memorial, propõe-se que seja uma peça mais simbólica e o Centro de Interpretação, um espaço mais explicativo, interpretativo, que possa também contar a história que num objeto simbólico não é possível fazer", acrescenta a vereadora.
A proposta inicial apresentada pela Associação dos Afrodescendentes (Djass), dirigida por Beatriz Gomes Dias, abrangia três dimensões essenciais. "A dimensão principal é prestar homenagem às pessoas que foram escravizadas por Portugal, potenciando também o reconhecimento do papel que Portugal teve no comércio de pessoas escravizadas", diz a diretora da Djass.
O projeto visava também fazer uma leitura sobre o que foi a resistência à escravidão, assim como mostrar a relação entre esse período histórico e o racismo contemporâneo. Ao longo do tempo, a proposta foi ganhando outros contornos com o debate que suscitou a ideia de construção de um Museu das Descobertas.
Amplo debate
Desde o início, o projeto suscitou interesse e um amplo debate, lembra Beatriz Dias, sobretudo dos afrodescendentes que fizeram questão de refletir sobre a sua história e do país onde nasceram. "Nós propusemos o memorial e quando o fizemos o debate em relação ao mudeu não estava tão amplificado como depois veio a ficar. O que nós achamos é que o facto desta proposta ter sido uma das vencedoras e inscrever-se precisamente numa contranarrativa que se opõe a esta narrativa glorificadora do passado imperial português despertou ou desencadeou reações que acabaram por se configurar numa defesa acérrima da construção de um Museu das Descobertas", sublinhou.
Um grupo consultivo apoiou a associação na conceção dos termos de referência entregues aos artistas que estão a criar o memorial, tomando em conta a importância desta zona ribeirinha entre o Campo das Cebolas e o Cais do Sodré, onde tinha lugar o comércio de escravos.
"Para nós, o memorial tem estas duas vertentes: a peça em si que deve ser uma peça não-figurativa e também tem que ser num espaço bastante amplo que permita a reunião e a celebração, que seja um sítio valorizado, um sítio de privilégio, também para poder passar uma mensagem aos jovens afrodescendentes da sua pertença à cidade", afirmou.
Negação do passado histórico
Na opinião de Beatriz Dias, ainda há uma negação de alguns aspetos do passado histórico e a glorificação de outros. Entretanto, para contrariar um certo silenciamento das memórias, Portugal vai assumindo a escravatura, com o tempo, como um dos capítulos negros da era dos "descobrimentos".
Catarina Vaz Pinto diz que a sociedade portuguesa já está agora mais preparada para reconhecer esse passado. "À semelhança do que tem feito todos os outros países que tiveram um passado colonial, neste momento, a sociedade portuguesa já está a discutir estas questões desse legado histórico. Como se calhar é um bocadinho em tudo, nós estamos um bocadinho atrasados. Também a nossa descolonização foi mais tarde que a dos outros países", diz.
A proposta do memorial, apresentada pela Djass, foi escolhida por votação em 2017. Inicialmente, previa-se erguer o monumento na Ribeira das Naus, perto do Cais do Sodré. Levou algum tempo até se tomar uma decisão na sequência de conversações com os proponentes. São 150 mil euros para a peça escultórica do monumento, estando ainda por definir o orçamento para a recuperação do Centro de Interpretação.
Para Catarina Vaz Pinto, colocar este memorial no centro de Lisboa é uma forma de reconhecida homenagem ao "grupo de pessoas que também construiu a história da cidade e do país".
De fortalezas a cinemas: o património colonial português em África
A colonização portuguesa nos países africanos deixou edificações históricas, que vão desde fortificações militares, igrejas, estações de comboio, até cinemas. Boa parte deste património ainda resiste.
Foto: DW/J.Beck
Calçada portuguesa
Na Ilha de Moçambique, antiga capital moçambicana, na província de Nampula, a calçada portuguesa estende-se à beira mar. A herança colonial que Portugal deixou aqui é imensa e está presente num conjunto de edificações históricas, entre fortalezas, palácios, igrejas e casas. Em 1991, este conjunto foi reconhecido como Património Mundial da UNESCO.
Foto: DW/J.Beck
Fortaleza de São Sebastião
A Fortaleza de São Sebastião, na Ilha de Moçambique, começou a ser erguida pelos portugueses em 1554. O motivo: a localização estratégica para os navegadores. Ao fundo, vê-se a Capela de Nossa Senhora do Baluarte, de 1522, que é considerada a mais antiga estrutura colonial sobrevivente no sul de África.
Foto: DW/J.Beck
Hospital de Moçambique
O Hospital de Moçambique, na Ilha de Moçambique, data de 1877. O edifício de estilo neoclássico foi durante muito tempo a maior estrutura hospitalar da África Austral. Atualmente, compõe o património de construções históricas da antiga capital moçambicana.
Foto: DW/J.Beck
Fortaleza de Maputo
A Fortaleza de Maputo situa-se na baixa da capital moçambicana e é um dos principais monumentos históricos da colonização portuguesa no país. O espaço foi ocupado no início do século XVIII, mas a atual edificação data do século XX.
Foto: DW/J.Beck
Estação Central de Maputo
Desde a construção da Estação Central dos Caminhos-de-Ferro (foto) na capital moçambicana, no início do século XX, o ato de apanhar um comboio ganhou um certo charme. O edifício, que pode ser comparado a algumas estações da Europa, ostenta a uma fachada de estilo francês. O projeto foi do engenheiro militar português Alfredo Augusto Lisboa de Lima.
Foto: picture-alliance / dpa
Administração colonial portuguesa em Sofala
Na cidade de Inhaminga, na província de Sofala, centro de Moçambique, a arquitetura colonial portuguesa está em ruínas. O antigo edifício da administração colonial, com traços neoclássicos, foi tomado pela vegetação e dominado pelo desgaste do tempo.
Foto: Gerald Henzinger
"O orgulho de África"
Em Moçambique, outro de património colonial moderno: o Grande Hotel da Beira, que foi inaugurado em 1954 como uma das acomodações mais luxuosas do país. O empreedimento português era intitulado o "orgulho de África". Após a independência, em 1975, o hotel passou a ser refúgio para pessoas pobres. Desde então, o hotel nunca mais abriu para o turismo.
Foto: Oliver Ramme
Cidade Velha e Fortaleza Real de São Filipe
Em Cabo Verde, os vestígios da colonização portuguesa espalham-se pela Cidade Velha, na Ilha de Santiago. Entre estas construções está a Fortaleza Real de São Filipe. A fortificação data do século XVI, período em que os portugueses queriam desenvolver o tráfico de escravos. Devido à sua importância histórica, a Cidade Velha e o seu conjunto foram consagrados em 2009 Património Mundial da UNESCO.
Foto: DW/J. Beck
Património religioso
No complexo da Cidade Velha está a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, conhecida por ser um dos patrimónios arquitetónicos mais antigos de Cabo Verde, com mais de 500 anos. Assim como em Cabo Verde, o período colonial português deixou outros edifícios ligados à Igreja Católica em praticamente todos os PALOP.
Foto: DW/J. Beck
Palácio da Presidência
Na cidade da Praia, em Cabo Verde, a residência presidencial é uma herança do período colonial português no país. Construído no século XIX, o palácio abrigou o governador da colónia até a independência cabo-verdiana, em 1975.
Foto: Presidência da República de Cabo Verde
Casa Grande
Em São Tomé e Príncipe, é impossível não reconhecer os traços da colonização portuguesa nas roças. Estas estruturas agrícolas concentram a maioria das edificações históricas do país. A imagem mostra a Casa Grande, local onde vivia o patrão da Roça Uba Budo, no distrito de Cantagalo, a leste de São Tomé. As roças são-tomenses foram a base económica do país até a indepência em 1975.
Foto: DW/R. Graça
Palácio reconstruído em Bissau
Assim como em Cabo Verde, na Guiné-Bissau o palácio presidencial também remonta o período em que o país esteve sob o domínio de Portugal. Com arquitetura menos rebuscada, o palácio presidencial em Bissau foi parcialmente destruído entre 1998 e 1999, mas foi reconstruído num estilo mais moderno em 2013 (foto de 2012). O edifício, no centro da capital guineense, destaca-se pela sua imponência.
Foto: DW/Ferro de Gouveia
Teatro Elinga
O Teatro Elinga, no centro de Luanda, é um dos mais importantes edifícios históricos da capital angolana. O prédio de dois andares da era colonial portuguesa (século XIX) sobreviveu ao "boom" da construção civil das últimas décadas. Em 2012, no entanto, foram anunciados planos para demolir o teatro. Como resultado, houve fortes protestos exigindo que o centro cultural fosse preservado.
Foto: DW
Arquitetura colonial moderna
O período colonial também deixou traços arquitetónicos modernos em alguns países. Em Angola, muitos cinemas foram erguidos nos anos 40 com a influência do regime ditatorial português, o chamado Estado Novo. Na foto, o Cine-Teatro Namibe (antigo Moçâmedes), um dos mais antigos do país, é um exemplo. Foi o primeiro edifício de arquitetura "art déco" na cidade de Namibe.