Estudo feito por investigadora da Universidade de Coimbra aponta conteúdo despolitizado e pouca informação nos livros de história do ensino secundário português.
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Os manuais escolares em Portugal, nomeadamente do ensino secundário, continuam a trivializar a escravatura e o colonialismo português em África. É o que afirma a investigadora Marta Araújo, docente da Universidade de Coimbra, que também questiona a banalização das lutas de libertação das antigas colónias africanas e diz que persiste a narrativa de que Portugal foi um bom colonizador.
"A escravatura era sempre vista como algo inevitável, mas nunca considerada como uma opção política e económica de um certo sistema", diz a investigadora com doutoramento em questões de racismo institucional.
Em muitos livros escolares, segundo Marta Araújo, os escravos continuam a ser vistos como mais uma mercadoria em circulação entre a África, Europa e América. Também é notória a preponderância das figuras brancas, sobretudo o clero, na luta contra a escravatura. Dá conta também que nunca se fala nos livros dos processos de resistência das populações.
"Não se visibilizam as lutas das próprias populações. Havia um único manual que tinha uma breve nota sobre um quilombo, mas quase como um espaço de cultura e não como um espaço de resistência no Brasil. Isto é um bocado banalizar a luta e sempre com este protagonismo de figuras como Bartolomé de Las Causas ou o Padre António Vieira e outras figuras do clero que, estes sim, teriam lutado para libertar os escravos", relata Marta Araújo sobre suas análises.
"Ausência da história"
A investigadora portuguesa do Centro de Estudos Sociais daquela universidade é co-autora de um projeto académico que concluiu que os manuais escolares trivializam a escravatura no ensino da história em Portugal.
"Nós podemos incluir duas ou três páginas sobre a escravatura sem falar, por exemplo, da agência política dos escravos, na sua capacidade de mobilização. Nunca é falado nos manuais de qualquer revolta por parte das populações colonizadas. Portanto, dá-se sempre a ideia deste colonialismo que era aceite e era quase bem-vindo por parte das populações colonizadas", refere a pesquisadora.
A realidade é quase semelhante em relação à luta de libertação das ex-colónias. Marta Araújo analisou os manuais produzidos em Portugal desde o 25 de Abril de 1975 (Revolução dos Cravos).
Segundo ela, naquela altura havia manuais com mais de 15 páginas dedicadas aos movimentos de libertação, internacionalmente e também ligados ao colonialismo. "Hoje em dia isso foi completamente reduzido e teremos, talvez, duas ou três páginas dedicadas aos movimentos".
Movimentos de libertação
Além disso, os livros de história de hoje trazem poucas páginas com exercícios. Os poucos exercícios disponíveis são de grande superficialidade, pedem aos alunos para nomear os líderes africanos dos movimentos de libertação dos países de língua portuguesa sem ter em conta as respetivas ideias. A pesquisadora aponta o caso de Amílcar Cabral, que liderou a luta na Guiné-Bissau.
"Aparece muitas vezes um excerto de Amílcar Cabral, mas relativamente editado em que não faz uma denúncia. No fundo temos aqui um conteúdo que é extremamente despolitizado, com uma linguagem que não permite aos alunos compreenderem a relevância o pensamento do Cabral".
Os movimentos de libertação eram reduzidos a "guerrilheiros violentos quase sem um propósito político", acabando os manuais por banalizar as lutas dos povos das ex-colónias, "enquanto que os brancos geralmente são retratados como as verdadeiras vítimas, sobretudo os retornados a partir dos anos 90", adianta Marta Araújo.
É preciso mais conteúdo
A docente concorda que a narrativa continue a retratar os fatos, mas acha que se deve introduzir conteúdos novos, para o qual espera mais sensibilidade por parte do Ministério da Educação português.
Ouvida pela DW, Isabel Garcia, professora de história no ensino secundário há mais de 20 anos, tem outra opinião sobre estas matérias. Ela diz que não há aqui uma política de silenciamento dos fatos.
"Os livros fazem referência tanto às más condições, à injustiça, de ter havido essa mácula, mas tem que ser contextualizada. Há atividades nas escolas. Elas fazem muitas vezes atividades em que mostram essa ligação aos direitos do homem e basicamente não creio que as pessoas nas escolas estejam a esconder a escravatura e que os portugueses foram escravagistas".
Livros de história em Portugal banalizam a escravatura em África - MP3-Mono
Abordagem
Segundo a professora, os programas escolares dos últimos 43 anos de democracia sempre se preocuparam em fazer uma abordagem não só da história de Portugal, mas também contextualizada na história da Europa e da forma como ela se relacionou com o mundo.
"É claro que a História é uma ciência. Nós não podemos estar constantemente a fazer um relato com base naquilo que nós gostaríamos que tivesse acontecido. Temos que contar o que aconteceu e de uma forma objetiva. Agora, não quer dizer que depois dessa abordagem os professores não peçam trabalho aos alunos para fazer interligações e a relação do passado com o presente", ressalta.
No passado, segundo Isabel Garcia, foi a história do nacionalismo que limpava alguns males cometidos pelo império português durante o período da escravatura e do colonialismo.
Documentos da vergonha: Peças da escravatura expostas em Portugal
O Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, apresenta até dezembro a exposição "Escravatura: Memória Africana", que remonta a história até a abolição dos escravos em Portugal.
Foto: DW/J. Carlos
No Museu Nacional de Arqueologia
Ao todo são 43 as instituições, entre museus, bibliotecas e arquivos histórios de Lisboa que conjugaram esforços para mostrar ao público as memórias da escravatura negra em Portugal. Com esta exposição, aberta ao público até dezembro, a organização procura relançar a discussão sobre o tráfico, o combate e a abolição da escravatura, no âmbito dos eventos da Capital Ibero-Americana de Cultura 2017.
Foto: DW/J. Carlos
Coleiras de escravo
Durante 400 anos, Portugal teve um papel central no processo de tráfico de escravos. Neste projeto do Gabinete de Estudo Olisiponenses são apresentados alguns dos instrumentos da repressão e da escravatura, a exemplo destas coleiras de escravo em liga de cobre, do século XVIII. Fazem parte de 30 conjuntos de peças saídas do acervo diversificado do Museu de Arqueologia.
Foto: DW/J. Carlos
Grilhetas e algemas
Neste núcleo estão reunidas grilhetas de mãos ou de pés e algemas. Pertencem a um conjunto de instrumentos de sujeição que terão sido utilizados para prender escravos. É provável que para este fim fosse utilizado o mesmo tipo de instrumentos usados por condenados ou por pessoas em qualquer outra condição de captura e aprisionamento.
Foto: DW/J. Carlos
Coleira de pescoço
Esta coleira de pescoço em ferro é constituída por dois aros idênticos, articulados através de um encaixe em elo para permitir mobilidade, rematados por terminais de forma ovalada e vazada, por onde passaria uma corrente ou um sistema de fecho. Peças como esta encontram-se em pinturas em vários países europeus, mas muitos poucos museus têm o objeto, segundo a curadoria da exposição.
Foto: DW/J. Carlos
Algemas de mão
À medida que fixamos o olhar em cada uma das composições da exposição procuramos imaginar ou entender como era o dia-a-dia dos escravos, a maneira como viviam, mas sobretudo o sofrimento pelo qual passaram, presos a algemas como estas. Feitas em ferro, são constituídas por dois aros com estrangulamento mediano e extremidades extravasadas, rematadas por terminais em argola.
Foto: DW/J. Carlos
Cruzeta e manilhas
Nesta vitrina mostra-se um conjunto de objetos que integraram os sistemas pré-monetários utilizados na África subsariana, no âmbito das trocas comerciais em geral e também no comércio e tráfico de escravos realizado a partir do século XVI, na costa ocidental africana. Em cima, vê-se uma cruzeta de cobre que servira de meio de troca no tráfico de escravos.
Foto: DW/J. Carlos
Objetos de troca comercial
As manilhas, feitas em ligas de bronze, eram produzidas em diversas cidades da Inglaterra, França e Alemanha. Semelhantes na forma a braceletes, adorno muito apreciado entre as populações africanas como símbolo de estatuto, riqueza e poder, as manilhas-braceletes também se tornaram num dos objetos de troca mais difundidos no comércio entre a Europa, África e as Américas.
Foto: DW/J. Carlos
Soldados e mulher de tanga
Abstraindo-se dos elementos com cunho de escravização, a coleção mostra várias figuras de cerâmica pintada, representando soldados africanos e mulheres negras de tanga com cestos portugueses, colares e outros adornos, como missangas, usados também como acessórios rituais ou como moeda no comércio de escravos e de outras mercadorias.
Foto: DW/J. Carlos
Documentos valiosos
Além das mais de 200 peças, há documentos valiosos relacionados com a escravatura. Em primeiro plano, vê-se um manuscrito de 1579. Ao lado, a obra de Manuel Heleno, que escreveu sobre os escravos de Portugal, na sua tese de doutoramento em Ciências Históricas apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1933).
Foto: DW/J. Carlos
Grilhão ou prisão de escravos
Este é um dos objetos que evoca a escravatura no Museu de Etnologia. Trata-se de um grilhão ou prisão dos escravos, uma das raras peças existentes em Portugal que ilustra uma particular violência e desumanidade. Aprisionando conjuntamente punhos e tornozelos, resulta na imobilização e subjugação total do escravo. Um dos testemunhos de uma história sombria.
Foto: DW/J. Carlos
Tambor proibido
Dando um salto ao Museu da Música, o tambor africano distingue-se entre as peças ali expostas. É um instrumento de percussão disseminado pelo continente africano, habitualmente associado a danças e rituais religiosos. Mas, no período da escravatura, era muitas vezes proibido o seu uso por receio de estar associado a formas de comunicação entre escravos ou para atacar os donos brancos.
Foto: DW/J. Carlos
Do tráfico à abolição
O tráfico de escravos africanos adquiriu grande amplitude com a fixação dos primeiros entrepostos portugueses na África Ocidental, na primeira metade do século XV. No entanto, a decisão de Marquês de Pombal de libertar todos os escravos que entrassem no Reino encontrou oposição dos traficantes. A Marinha Portuguesa teve de envolver-se na abolição do tráfico de escravos nos domínios de Portugal.
Foto: DW/J. Carlos
O combate à escravatura
Aos poucos o tráfico de escravos foi encontrando resistência, conforme relatam os muitos documentos expostos no Arquivo Histórico Cordoaria Nacional. Aqui está o modelo de corveta mista “Rainha de Portugal”, navio da Marinha Portuguesa que prestou serviço ao longo do último quartel do século XIX, na costa ocidental de África, sobretudo em ações de vigilância e interceção do tráfico negreiro.
Foto: DW/J. Carlos
Abolição definitiva
O decreto de 25 de fevereiro de 1869 aboliu a escravidão em todas as colónias portuguesas. Os escravos existentes passariam a libertos, tendo tal condição cessado definitivamente em 1878. Este é o símbolo do fim da escravatura numa das praças de Lisboa, em homenagem a Sá da Bandeira, figura que se destacou pelos esforços incessantes a favor do movimento abolicionista.