Em entrevista à DW África, por ocasião de sua visita à Alemanha, o escritor brasileiro fala sobre racismo e diz que os avanços conquistados contra o preconceito no Brasil estão em risco com o atual Governo brasileiro.
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Criticar o Brasil fora de casa durante a cerimónia de abertura da famosa Feira do Livro de Frankfurt na Alemanha, em 2013, rendeu ao escritor brasileiro Luiz Ruffato críticas e elogios que, até hoje, não foram esquecidos. Com palavras enfáticas sobre as desigualdades sociais, ele falava sobre o que muitos já sabiam mas talvez não ousassem dizer em público.
De volta à Alemanha em 2016 para uma série de atividades, o escritor falou à DW África sobre como as ainda existentes desigualdades sociais no Brasil estão ligadas ao racismo; e diz que os poucos avanços conquistados durante os Governos de Lula e Dilma para combater este racismo estão em risco na gestão do atual Presidente brasileiro Michel Temer, quem assumiu após o controverso impedimento de Dilma Rousseff (em agosto de 2016).
O escritor Luiz Ruffato já passou por Berlim e participa hoje, 02.12, de uma atividade na LesART, em Esslingen. Já no dia 03.12 estará no Teamtheater, em Munique. Confira a entrevista:
DW África - Por que acredita que um refugiado africano no Brasil pode ser mais suscetível ao preconceito do que um refugiado árabe?
Luiz Ruffato (LR): Em primeiro lugar, a sociedade brasileira é racista. Certamante os refugiados africanos têm mais dificuldades de serem absorvidos pela sociedade por causa da sua cor da pele. Se você é um refugiado árabe, ainda assim, é considerado branco no Brasil. Por mais que se tenha dificuldades para arrumar um emprego e para ser absorvido, essas serão menores do que a dos refugiados do Haiti ou da África. Há uma dificuldade a mais para alguém que tenha a pele negra no Brasil - seja o brasileiro ou um estrangeiro refugiado.
DW África - Parece paradoxal, já que o Brasil é um país que tem heranças africanas, não acha?
LR: Na verdade, essa herança é assumida pelo Brasil apenas quando interessa. Quando não interessa ela não é assumida. Se queremos mostrar para o mundo que somos uma sociedade multirracial – que não é verdade, é verdade nas cores das pessoas mas não é democraticamente multirracial – daí sim, dizemos que temos heranças e raízes africanas.
DW África - Por que isso acontece no Brasil?
LR: A ideia de que o Brasil é um país racialmente democrático e de que nós vivemos numa democracia racial foi fomentada durante o Governo de Getúlio Vargas (a partir da década de 30 até meados da década de 50) com a possibilidade de que nós nos constituíssemos uma sociedade diferente das outras. Mas, se observarmos a nossa história, perceberemos que é uma história de violência e discriminação. Os africanos que foram para o Brasil não foram por opção mas sim escravizados – uma história muito pior que a dos imigrantes europeus, que também foram sem opção, mas que não vieram escravizados. Quando a escravidão acabou não houve nenhuma recompensa por essa tragédia. Simplesmente rompeu-se o laço económico que havia entre as fazendas e os africanos e eles foram colocados à margem da sociedade. E essa situação perdura até hoje. A grande maioria da população que ganha baixos salários, que mora na periferia e que não tem acesso àeducação e à saúde é negra. É afro-descendente.
DW África - Nesse sentido, o proconceito de cor é também preconceito de classe social no Brasil?
LR: Sem dúvida. É um preconceito de classe social. Mas você pode ser uma branco pobre no Brasil e ele também sofre com todos os problemas da sociedade onde uma pessoa é pobre. Só que dentro da sociedade ele tem estatuto diferente de um negro ou índio pobres. Aliás, no Brasil, ninguém vê o índio.
DW África - Já foi criticado por ser um escritor "branco" falando sobre preconceito racial no Brasil?
LR: Sim. Há alguns anos publiquei uma das minhas primeiras antologias de contos e a questão do racismo estava colocada. Pela primeira vez um livro de ficção era publicado fora do âmbito dos guetos de discussão de cultura negra – era publicado por uma editora comercial. Eu fui muito criticado porque eu não teria legitimidade. Mas não abro mão de achar que eu posso, sim, participar dessa discussão porque o racismo é uma questão de relações dentro de uma sociedade. Se eu faço parte dessa sociedade, também tenho responsabilidade sobre ela. Há críticas - eu admito todas as críticas que forem feitas - mas penso que a causa possa ser assumida por qualquer pessoa que se coloque contra o racismo.
Entrev. Ruffat - MP3-Mono
DW África - Acredita em avanços nas últimas décadas em relação à valorização da cultura e identidade afro-descendentes no Brasil?
LR: Os Governos Lula/Dilma fizeram muito pouco em relação a avanços importantes para o Brasil. No entanto, os poucos avanços, esses poucos passos, foram os maiores que nós já demos em toda a nossa história, em relação a muitas coisas. E, inclusive, em relação à valorização dos afro-descendentes dentro da sociedade. Só o fato de se insistir na criação de quotas raciais nas universidades públicas e no serviço público para a população afro-descendente já foi um passo importantíssimo para tentarmos minimizar essa questão do preconceito no Brasil. Embora tenham sido passos tímidos e modestos, infelizmente, agora estão com os dias contados neste Governo golpista de [Michel] Temer.
Candomblé: A religião africana do Brasil
O Candomblé nasceu da cultura dos escravos africanos. Ainda hoje, os seguidores sofrem de discriminação e racismo. Fomos aos "terreiros", os locais de culto, em Salvador da Bahia, a cidade mais "africana" do Brasil.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Espíritos do Brasil - Deuses de África
A bandeira do Brasil no terreiro Ilé Axé Oguntòóla em Lauro de Freitas, nas redondezas de Salvador, é uma homenagem ao caboclo Boiadeiro das Sete Chapadas, que ajuda as pessoas a se curarem com ervas, segundo a crença. Para além de caboclos, espíritos de origem brasileira, são reverenciados orixás, deuses do Candomblé iorubá do oeste de África, e nkisis, deuses do Candomblé bantu do sul de África.
Foto: Alberto Batinga Pinheiro
Símbolo da luta contra a intolerância religiosa
Na Lagoa do Abaeté, no bairro Itapuã em Salvador da Bahia, foi erguido um busto em homenagem a Gildásia dos Santos, a mãe de santo Gilda. Mãe Gilda, como era conhecida, faleceu de enfarte após sofrer dois episódios seguidos de intolerância religiosa por duas igrejas evangélicas. O dia da sua morte, 21 de janeiro, foi decretado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa no Brasil.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Terreiro fundado por princesas africanas
Fundado no século XIX por três princesas africanas trazidas como escravas para o Brasil – Iyá Detá, Iyá Kalá e Iyá Nassô – o terreiro Casa Branca é o mais antigo em funcionamento em Salvador e possivelmente também no Brasil. Os templos de candomblé são conhecidos por "terreiros". No centro da sala de liturgia está o altar com objetos sagrados e a coroa de Xangô, o orixá (deus) da justiça.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Deusa da água doce e do amor
No terreiro Casa Branca, em Salvador da Bahia, é dia da festa de Oxum, a orixá feminina (deusa) das águas doces dos rios e cachoeiras, da riqueza, da prosperidade, do amor e da beleza. Enquanto os carros passam em velocidade na agitada avenida de Vasco da Gama, em Salvador, as filhas e filhos de santo da casa preparam o barco com flores e bonecas em homenagem a Oxum.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Casas para os deuses e espíritos
Nos terreiros de candomblé existem várias "moradas" para os orixás e caboclos. Alguns têm construções feitas inteiramente para si, outros moram lugares ao ar livre, como uma árvore, por exemplo. Estes lugares são cuidados como sagrados e reverenciados com oferendas e cantos. No terreiro Casa Branca, o barco pertence a Oxum, a casa azul no fundo é a morada de Ayrá, o orixá da justiça e dos ventos.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Esculturas de orixás homenageiam tradição
No Dique do Tororó, em Salvador, uma vez ao ano, representantes das religiões afro-brasileiras amarram Ojás – tecidos sagrados – nas árvores para homenagear a paz e boa convivência entre as religiões. Em 2015, foi aprovada pela Câmara de Vereadores uma lei que prevê instalar uma bíblia no Dique. O movimento negro contesta a medida e diz que símbolos cristãos já estão presentes em muitos locais.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Mãe de santo Conceição
Mãe Conceição é mãe de santo, a responsável do terreiro, no bairro de São Gonçalo do Cabula, na periferia de Salvador. Há 26 anos no local, ela atende a comunidade com serviços espirituais e também realiza trabalhos sociais, como rodas de leituras para crianças e aulas de cultura africana. O Centro de Caboclo Sultão das Matas fica no quintal da casa onde Conceição mora com suas filhas e netos.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Homenagem anual a Marujo
Na sala de sua casa, a mãe de santo Elisa mostra uma fotografia da festa do caboclo Marujo, o espírito que, de acordo com o candomblé, é o protetor de todas as pessoas que sobrevivem trabalhando nas águas doces e salgadas, como os pescadores e marinheiros. Na festa anual do caboclo Marujo, Mãe Elisa jogou perfume de alfazema sobre os arranjos de flores que foram presenteados ao mar.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Mãe de santo Elisa
Mãe Elisa é mãe de santo há 30 anos. Mora no bairro de Mussurunga, na periferia de Salvador da Bahia. Na entrada de sua casa está o altar em homenagem a Exu, o orixá dos caminhos, que tem a função de proteger quem entra e quem sai do local. No altar também está Ogum, dono dos ferros, orixá que protege as estradas e quem por elas passa.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
O axé guarda a força espiritual
Sandra Bispo é a mãe pequena do terreiro Oxumarê, um dos mais antigos de Salvador, fundado no início do século XIX. Como mãe pequena, ela é a segunda na hierarquia religiosa da casa, guiada pelo pai de santo Babá Pecê. Sandra mostra o "axé" do terreiro – o altar no centro da sala litúrgica onde, segundo a crença do candomblé, está guardada a força espiritual do local.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Liderança matriarcal desde a escravidão
O terreiro de Gantois, no bairro Federação, distingue-se pela liderança matriarcal, sendo regido desde 1849 por mães de santo. São escolhidas por critérios de hereditariedade na descendência espiritual da casa, iniciada por Maria Júlia da Conceição Nazareth, que veio de África como escrava e posteriormente foi liberta. No Brasil, a escravidão apenas foi abolida em 1888 através da "Lei Áurea".
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Sincretismo com o cristianismo
O Terreiro de Gantois deriva da família belga Gantois, traficante de escravos e dona destas terras no século XIX. O terreiro é regido por Oxóssi, o orixá das matas, das florestas, da caça. Oxóssi também é simbolizado pelo santo católico São Jorge no chamado sincretismo. Na foto, as "filhas de santo" da casa participam de uma celebração e vê-se ao fundo a orixá (deusa) Oxum, esposa de Oxossi.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Símbolo da perseguição do Candomblé
A cadeira, que representa no Candomblé o poder e respeitabilidade, foi apreendida em 1920 numa invasão da polícia ao terreiro do pai de santo Severiano Jubiabá. Até a primeira metade do século XX, o Governo do Brasil e a polícia brasileira perseguiram o Candomblé e os seus praticantes. Em 2015, a cadeira foi devolvida ao pai de santo Anselmo dos Santos (foto), que continua a linhagem de Jubiabá.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
As várias estátuas do altar
No terreiro Oxumarê, o altar exibe estátuas trazidas de África, que simbolizam figuras similares aos orixás do Candomblé brasileiro. No século XIX, como a religião era proibida e perseguida pela polícia, durante o dia, ícones cristãos figuravam no local enquanto que os objetos do Candomblé ficavam escondidos. À noite, os praticantes da religião tiravam seus símbolos para realizarem os cultos.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Assegurar o futuro do Candomblé
O terreiro de Lembá, localizado no município de Camaçari a cerca de 40 quilómetros de Salvador da Bahia, fundou em 2011 a Escola Zumbi dos Palmares, a primeira a funcionar dentro de um terreiro na Bahia. Na ocasião, representantes de igrejas evangélicas protestaram contra a abertura da escola, acusando o terreiro de "roubar as almas" das crianças, lembra Ricardo Tavares, o pai de santo do lugar.