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Músicos africanos usam a arte contra a mutilação genital feminina

Joana Brandão / Carolina Nehring30 de setembro de 2014

Através de letras que tratam o tema e da atuação em projetos sociais, músicos de diversos países africanos usam a arte para questionar a prática da mutilação genital feminina, que atinge 130 milhões de mulheres no mundo.

Foto: picture-alliance/dpa/Jörg Carstensen

Músicos de diversos países da África têm usado a arte para trazer informação e questionar a prática da mutilação genital feminina, também conhecida como excisão ou fanado. Através de letras que tratam o tema e da atuação em projetos sociais, eles usam a música como veículo para alcançar as diversas etnias que realizam a prática.

Há um mês, o músico senegalês Woz Kally lançou uma canção, na língua wolof, com trechos em francês e português, chamada “Limay teré nélaw”, que significa “O que me impede de dormir”. Para ele, é importante dialogar sobre o tema que ainda é tabu em muitos lugares. “Infelizmente as pessoas na África não falam sobre esse assunto. A excisão é algo que devemos combater até que desapareça, porque atinge e viola a honra da mulher, o seu corpo, que somente a ela pertence”, alerta.

A rapper senegalesa Sister Fa realiza todos os anos a turnê "Educação Sem excisão", visitando escolas no Senegal.Foto: DW/B.Goertz

A rapper Sister Fa, também senegalesa, gravou duas músicas sobre o tema: Excision e Sadio. Com residência na Alemanha, ela realiza, desde 2008, a turnê “Educação sem Excisão” pelo Senegal, visitando escolas para tratar de temas como direitos das mulheres, incluindo casamento forçado, abuso sexual e, principalmente, o corte genital feminino. Neste ano, a turnê se estendeu também à Guiné-Conacri.

Na própria pele

Esta luta tem origem na própria vida pessoal de Sister Fa. Quando tinha por volta de cinco anos de idade, ela foi levada com outras crianças para passar pelo ritual de iniciação que envolve o corte genital. Ela relata a experiência: “A maioria de nós pensava, quando era jovem, que era algo muito normal. Que tínhamos que ser mulheres cortadas. Mas, ainda assim, é algo muito chocante, quando uma mulher pensa: ‘Ah, tem um dedo faltando em meu corpo’, ou ‘Eu estou andando por aí com apenas uma orelha’. É claro que é algo que segue você até a sua vida adulta.”

Outra cantora, a guineense Ammy Injai, que usa a música para sensibilizar pessoas em seu país sobre este tema, também viu de perto o sofrimento causado pela prática. Quando criança, Ammy conviveu com as irmãs e primas que foram obrigadas a passar pelo fanado. “Não estávamos todas na mesma casa. Um dia eu fui lá visitar e ela estava sangrando. Eu perguntei 'o que é isso?'. Eu estava com medo. E ela disse – ‘levaram-me ao fanado. E eu não estou me sentindo bem. Por isso, estou sangrando'. Tentei perguntar como era aquilo. Mas ela recusou explicar-me. Disse que se contasse o segredo, ia morrer”, Ammy recorda a experiência de sua irmã mais jovem.

O guineense Sambala Kanutê é embaixador da ONG Djinopí e gravou um single com canções sobre o tema.Foto: DW/J. Delgado

Com o pai mulçumano, religião em que a prática é mais comum, foi devido à persistência da mãe cristã que Ammy não foi levada para o ritual de corte. Já adulta, ela trabalhou em ONGs na Guiné-Bissau usando sua voz para mostrar à comunidade mulçumana da sua etnia os danos causados pela excisão.

Para ela, a música pode ser uma forma eficaz de conscientização, devido à possibilidade de usar a língua e os estilos musicais tradicionais para passar a mensagem: “A música sempre ajuda. Cantando, as pessoas prestam atenção para ouvir a mensagem. Quando a mensagem é passada de coração, aí chega mesmo para dentro das pessoas”.

Projetos sociais

Outro músico que gravou recentemente duas canções sobre a mutilação genital feminina é o guineense Sambala Kanutê. As músicas integraram um single para a ONG Djinopi, de Guiné-Bissau, da qual é embaixador. A ONG visa mostrar que o fanado é um problema de saúde pública e uma clara violação aos Direitos das Crianças e das Mulheres.

“O fanado das mulheres é muito perigoso para a sociedade e a melhor maneira de parar as pessoas tem que ser através da música. Porque talvez seja muito difícil fazer encontros com as pessoas nos vários sítios. Mas a música, quando passa na rádio, toda gente ouve”, aponta Kanutê.

O também guineense Juca Delgado, que é produtor musical de Ammy Injai e Sambala Kanutê, está idealizando uma turnê pelos países da África Ocidental, com apresentações de música e teatro. A turnê integra um projeto chamado “A Mulher Parte”, que tem o objetivo de usar a música para mostrar como a prática da mutilação genital feminina pode deixar uma ferida profunda nas mulheres que passam por isso.

Juca Delgado destaca também o poder de comunicar com música: “Uma música consegue passar uma mensagem que, muitas das vezes, uma outra forma de discurso não consegue fazer chegar às pessoas. É isso que queremos fazer, que esta mensagem consiga passar através da música e que perdure”.

O produtor guineese, Juca Delgado, reside em Lisboa e está idealizando um projeto para lutar contra a prática.Foto: DW/J. Delgado

A jornalista e cantora Vilma Vieira, de Cabo Verde, lançou, com o apoio da Amnistia Internacional, a música “It's my body” que significa “Este é o meu corpo” e defende a autonomia da mulher sobre si mesma. Ela conta como decidiu se aproximar do tema: “A mutilação genital feminina provocava em mim uma sensação muito desconfortável. Uma mulher sente na pele. O que é que eu posso fazer? De que forma posso usar a minha profissão ou aquilo que eu gosto de fazer, que é cantar, para ajudar a contribuir para acabar com isso?”

A música “No Cut”, “Sem Corte” , dos músicos Cartoon e Shamir, produzida pela ONG suíça Maasai Aid Association, também trata da questão.

Estimativas

Em Serra Leoa, mulher mostra ferramentas utilizadas para realizar o corte genital.Foto: picture-alliance/dpa

A mutilação genital feminina é uma prática que retira o clitóris e, às vezes, outras partes do orgão genital feminino, antes das raparigas chegaram à puberdade. A tradição, que causa danos físicos e psicológicos, é muito difundida principalmente na África e no Oriente Médio.

Segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), esta prática já atingiu 130 milhões de meninas em todo o mundo. As estimativas prevêem que até o ano de 2050, cerca de 63 milhões de mulheres serão cortadas.

Segundo o Fundo, na Somália, Guiné-Conacri, Jibuti e Egito mais de 90% das mulheres sofrem alguma forma de mutilação genital. Entre os países lusófonos na África, esta tradição não é muito comum, com exceção de Guiné-Bissau, onde atinge 50% das mulheres.

Apesar disto, outras agências das Nações Unidas, nomeadamente o Fundo para Atividades da População (FNUAP), avaliam que o número de mutilações genitais tenha diminuído 5% entre 2005 e 2010. Em vinte e quatro dos vinte nove países onde a prática é feita, decretos ou leis relacionados com a sua restrição foram aprovados.

Ainda segundo a UNICEF, no espaço de uma geração é possível eliminar a mutilação genital feminina. Mas, para tanto, será necessário um esforço global dos governos, da sociedade civil e da comunidade internacional. Nos países onde existe esta prática, é muito importante a atuação dos líderes políticos e religiosos para desencorajá-la.

Sister Fa acredita que esta mudança já esteja a acontecer: “Há muitos jovens com quem conversamos que decidiram salvar as suas próprias filhas e não cortá-las, porque a informação chegou até eles, na sala de aula na escola. Eles estão aprendendo coisas interessantes que usarão definitivamente no futuro. A mudança está acontecendo.”

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