A 19 de agosto de 1970, militantes do PAIGC assaltaram o navio Pérola do Oceano, aliciados por promessas de uma luta armada em Cabo Verde. Foi o dia em que a secreta portuguesa realizou a maior detenção no arquipélago.
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"Uma armadilha." É desta forma que Pedro Martins recorda o dia em que um grupo de militantes do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) tomou de assalto o navio Pérola do Oceano, na ilha de Santiago. O objetivo era chegar ao Senegal, onde seriam treinados, e participar ativamente na luta pela independência do arquipélago. Mas o plano afundou-se ali mesmo no porto de Rincão, em Santa Catarina.
Em vez disso, o dia 19 de agosto de 1970 tornou-se no dia em que a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), a polícia política portuguesa, realizou a maior detenção de militantes do PAIGC em Cabo Verde.
Segundo Pedro Martins, na altura um militante do PAIGC de apenas 19 anos, a "armadilha" foi preparada por um cabo-verdiano, que se fazia passar por coronel do PAIGC, mas que na verdade estava ao serviço da PIDE. José Reis Borges terá aliciado os 11 militantes do partido que integraram o assalto com a promessa de trazer a luta armada para Cabo Verde, um desejo antigo na ilha.
50 anos do assalto ao navio Pérola do Oceano
"Estou convencido que essa ação foi iniciada e controlada em Portugal sem o conhecimento do Governo local. José Borges aproveitou-se de alguns militantes do partido que tinham ligação comigo e, quando foi apanhado, entregou-os. E eu fui para a prisão. Felizmente no meu caso, e com muito orgulho, ninguém foi preso atrás de mim", conta em entrevista à DW Pedro Martins.
De uma maneira geral, a ação do grupo que acompanhou José Reis Borges "foi nobre e patriótica", escreve Martins no livro "Testemunho de um Combatente", no qual descreve todos os pormenores do assalto e do que se seguiu a este célebre episódio. "Fizeram o assalto convencidos de que seguiam ordens da direção do partido", sublinha, e acabaram por ter de "pagar com quatro longos anos de cativeiro".
"A PIDE tentou desmobilizar o PAIGC"
Nunca se provou que a operação foi, de facto, uma armadilha arquitetada pela PIDE, "mas há indícios fortes", lembra José Maria Semedo, professor da Universidade de Cabo Verde. "Aparece um indivíduo que diz que era um coronel do PAIGC, uma figura que não existia. E as estruturas do PAIGC confirmam que não mandaram ninguém. Portanto, a armadilha não pode ter caído do céu. E se não é a PIDE, é alguém próximo da PIDE", conclui.
António Lopes dos Santos, que na altura era governador, também acredita que a operação foi planeada a partir de Lisboa pela polícia política portuguesa. "O indivíduo cabo-verdiano que na altura aliciou aquela gente foi daqui da metrópole poucos dias antes e não tinha qualquer ligação conhecida com o PAIGC. (...) Penso que foi apenas um pretexto para a PIDE prender meia dúzia de indivíduos", esclarece Lopes dos Santos, citado no livro "Cabo Verde: Os Bastidores da Independência", de José Vicente Lopes.
Além dos 11 cabo-verdianos envolvidos diretamente no assalto, a tomada do navio Pérola do Oceano acabou por ter consequências para familiares e outros militantes do partido que lutava pela independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.
"Houve uma morte, acabaram por matar o cozinheiro. E o barco nunca saiu das águas de Cabo Verde, andou às voltas e acabou por ser aprisionado pela PIDE. Na sequência, muitos elementos do PAIGC de Cabo Verde acabaram por ser presos e foram parar ao Tarrafal enquanto presos políticos", lembra o académico José Maria Semedo. "Praticamente, a PIDE tentou desmobilizar o PAIGC", conclui.
Pedro Martins, o prisioneiro mais jovem do Tarrafal
10:55
Pedro Martins torna-se, então, o mais jovem preso político no campo do Tarrafal, onde seria torturado pela PIDE. "Fomos os primeiros presos políticos a quem recusaram julgamento. Fomos enviados para o Campo de Concentração do Tarrafal, sem julgamento, sem nada. Foi um sítio que foi planificado, desenhado e construído para fazer sofrer as pessoas."
O dia em que foi preso não lhe sai da memória. "Lembro-me muito bem. Eu estava precisamente no Tarrafal, a tentar organizar o partido na clandestinidade. Coincidentemente estávamos a fazer o levantamento do Campo de Concentração do Tarrafal, recorda. "Porque nessa altura também não se punha de lado a questão da luta armada pela libertação de Cabo Verde", sublinha ainda Pedro Martins, que atualmente é presidente da Associação Cabo-Verdiana dos Ex-Presos Políticos no Tarrafal de Santiago.
O académico José Maria Semedo não tem dúvidas sobre o significado do caso Pérola do Oceano para a luta pela independência de Cabo Verde. "No contexto da luta, o assalto chama a atenção para a presença do PAIGC em Cabo Verde. Na Guiné-Bissau, efetivamente havia uma estrutura militar, havia uma guerra que era sentida. Em Cabo Verde, havia uma estrutura clandestina que não tinha organizações. Fazia mobilização e panfletos, sabia-se mais ou menos quem estava envolvido no processo, mas a PIDE não localizava toda a gente", refere. E nessa altura "a PIDE começou a ter uma ação muito intensiva para capturar os membros do partido", explica o professor da Universidade de Cabo Verde.
Frustação e abandono
"Sentia-se uma grande pressão internacional na altura, sobretudo por parte dos países africanos em relação a Portugal", recorda ainda o professor da Universidade de Cabo Verde, que era criança quando se deu o assalto ao Pérola do Oceano.
José Maria Semedo lembra também a frustração que se vivia nessa época em Cabo Verde. Além da falta de investimento, uma seca drástica atingia o arquipélago desde 1968.
"Foi uma colónia praticamente abandonada. Cabo Verde tornou-se uma colónia periférica, onde não há grandes investimentos", afirma o académico, recordando que é nessa altura que o Brasil "passa a ser a grande colónia de investimentos do império". Portanto, sublinha, "havia já muita frustração em relação ao que Portugal ia fazer com Cabo Verde."
Tarrafal: O Campo da Morte Lenta
O Campo de Concentração do Tarrafal foi, nas palavras do cabo-verdiano Pedro Martins, "um sítio planificado para fazer sofrer as pessoas". Os presos políticos que por aí passaram recordam-no como "Campo da Morte Lenta".
Foto: DW/Madalena Sampaio
Bastião de tortura
Construído numa das regiões mais agrestes de Cabo Verde, o Campo de Concentração do Tarrafal foi, nas palavras do então preso político cabo-verdiano Pedro Martins, “um sítio planificado, desenhado e construído para fazer sofrer as pessoas”. Para os detidos que por aí passaram, o local ficará para sempre nas suas memórias como o “Campo da Morte Lenta" devido ao regime a que eram submetidos.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Colónia para desterrados
Situada no concelho do Tarrafal, na ilha cabo-verdiana de Santiago, começou por chamar-se Colónia Penal. Entre 1936 e 1954 recebeu presos políticos portugueses desterrados pelo Governo do Estado Novo. Reabriu em 1961 para aí serem internados militantes anti-regime das colónias portuguesas de Angola, Cabo Verde e Guiné.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Inspirado nos campos nazis
O modo de funcionamento do Tarrafal e a forma como eram tratados os presos eram semelhantes aos de outros campos de concentração existentes no mundo. Castigos, tortura, trabalhos forçados, má alimentação e falta de assistência médica faziam parte do dia-a-dia dos detidos. A maior parte das detenções era feita de forma arbitrária.
Foto: DW/Madalena Sampaio
“Não estou aqui para curar”
Doenças como o paludismo e a biliose ceifaram muitas vidas no Tarrafal. O pequeno posto de socorro aí existente, dividido em duas salas, também servia de casa mortuária. “Não estou aqui para curar, mas para passar certidões de óbito”, afirmava Esmeraldo Pais Prata, o médico do campo que tinha a alcunha de “Tralheira”. Gostava de assistir aos espancamentos e a dor dos presos deixava-o indiferente.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Ala dos presos cabo-verdianos
Os primeiros presos políticos de Cabo Verde foram internados no Tarrafal em 1968. O espaço onde estavam detidos era de tal modo exíguo que se tinham de acomodar "como sardinhas enlatadas”, recorda Pedro Martins, que foi detido quando tinha apenas 19 anos. Ao fundo da sala ficava a casa-de-banho, onde através de um transístor clandestino escutavam várias emissoras. Era a famosa "rádio retrete".
Foto: DW/Madalena Sampaio
Sobreviver à alimentação
Era nesta cozinha que eram preparadas as refeições dos presos. Segundo os detidos, a alimentação era “péssima” e muito pouco diversificada. “Cachupa com uns vestígios de atum era-nos servida diariamente”, descreve Pedro Martins no livro “Testemunho de um Combatente”. Quando se recusavam a comer peixe estragado, “que nem os cães seriam capazes de comer”, o diretor mandava cortar-lhes as refeições.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Quotidiano duro
Nos dias de faxina, os detidos eram obrigados a carregar água em latas suspensas por um fio de arame. E também tinham de carregar a água para lavar as suas roupas para as tinas de betão armado. “Às vezes escasseava a água e tínhamos que a racionar”, lê-se no livro “Testemunho de um Combatente”. Nos meses mais quentes, a temperatura nas celas facilmente ultrapassava os 40 graus.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Testemunhos de sobreviventes
Na antiga cela dos presos políticos angolanos, uma exposição dá a conhecer os rostos de quem sobreviveu ao “Campo da Morte Lenta”. E testemunhos de Angola, Moçambique e Cabo Verde. “A ideia principal era: vim para aqui e não sei se sairei daqui”, lê-se no poster do angolano Vicente Pinto de Andrade, que esteve aqui encarcerado entre 1970 e 1974, juntamente com o seu irmão Justino Pinto de Andrade.
Foto: DW/Madalena Sampaio
A temida "Frigideira"
Também conhecida como “câmara de torturas”, a “Frigideira” era uma caixa rectangular em cimento armado, dividida ao meio, com proporções para conter dois homens. Tinha uma porta em chapa de ferro com cinco pequenos furos na base, em cada divisória, e uma pequena grade de ferro no topo esquerdo. A temperatura aqui podia chegar aos 60 graus, segundo os detidos.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Tortura na “Holandinha”
No lugar da “Frigideira” foi construída outra cela disciplinar, "pouco mais alta que um homem em pé", com uma pequena janela de grades. Segundo os presos, era um “autêntico forno” onde não tinham capacidade de movimentos. A este cubículo de cimento, que ficava dentro de um espaço anexo à cozinha, deu-se o nome de “Holandinha”, numa referência ao país para onde partiam muitos cabo-verdianos.
Foto: DW/M. Sampaio
Comunicação entre presos
A muito custo, os nacionalistas africanos das colónias conseguiam, por vezes, comunicar entre si. Com a ajuda de alguns guardas “infiltrados”, os presos cabo-verdianos enviavam bilhetes aos angolanos que estavam do outro lado do campo, a quem também procuravam aliviar o sofrimento quando estes eram enviados para a “Holandinha”. Tudo feito sob uma “pressão enorme”, recordam hoje os presos.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Estudar atrás das grades
No recinto existia também esta biblioteca, cuja instalação foi autorizada ainda na década de 40. Muitos camponeses aprenderam a ler e a escrever no Tarrafal. Segundo o cabo-verdiano Pedro Martins, quase todos os detidos na sua ala passaram a estudar e organizavam-se até horários de estudo. Os presos com mais instrução chegaram a dar formação política aos restantes companheiros.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Vítimas mortais
A detenção no Tarrafal custou a vida a 36 presos políticos: 32 portugueses, dois angolanos e dois guineenses. Entre as vítimas mortais de origem lusa inclui-se Bento Gonçalves, então secretário-geral do Partido Comunista Português (PCP). Entretanto, vários outros morreram já depois da sua libertação, em consequência dos maus tratos e das condições de vida no campo de concentração.
Foto: DW/Madalena Sampaio
O dia da libertação
Foi por aqui que saíram os últimos presos do Tarrafal, no dia 1 de maio de 1974, uma semana depois da Revolução dos Cravos em Portugal. “O Tarrafal era uma prisão para o resto da vida. Se não fosse o 25 de Abril iríamos morrer todos lá”, afirmou o angolano Joel Pessoa. Nessa altura, a libertação dos presos políticos era uma das principais exigências da população.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Espaço meio abandonado
O campo do Tarrafal só foi definitivamente extinto em 1975. Acabaria por ser transformado em Museu da Resistência, em 2009. Atualmente, o espaço-símbolo da resistência anticolonialista encontra-se em estado de semi-abandono e sem grandes cuidados. Entretanto, o Governo cabo-verdiano constituiu uma comissão para preparar a candidatura do campo a Património Mundial da UNESCO.