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PolíticaCabo Verde

Maior detenção da PIDE em Cabo Verde foi há 50 anos

18 de agosto de 2020

A 19 de agosto de 1970, militantes do PAIGC assaltaram o navio Pérola do Oceano, aliciados por promessas de uma luta armada em Cabo Verde. Foi o dia em que a secreta portuguesa realizou a maior detenção no arquipélago.

Campo de Concentração do Tarrafal: "um sítio planificado e construído para fazer sofrer as pessoas", nas palavras de Pedro MartinsFoto: DW/Madalena Sampaio

"Uma armadilha." É desta forma que Pedro Martins recorda o dia em que um grupo de militantes do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) tomou de assalto o navio Pérola do Oceano, na ilha de Santiago. O objetivo era chegar ao Senegal, onde seriam treinados, e participar ativamente na luta pela independência do arquipélago. Mas o plano afundou-se ali mesmo no porto de Rincão, em Santa Catarina.

Em vez disso, o dia 19 de agosto de 1970 tornou-se no dia em que a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), a polícia política portuguesa, realizou a maior detenção de militantes do PAIGC em Cabo Verde.

Segundo Pedro Martins, na altura um militante do PAIGC de apenas 19 anos, a "armadilha" foi preparada por um cabo-verdiano, que se fazia passar por coronel do PAIGC, mas que na verdade estava ao serviço da PIDE. José Reis Borges terá aliciado os 11 militantes do partido que integraram o assalto com a promessa de trazer a luta armada para Cabo Verde, um desejo antigo na ilha.

50 anos do assalto ao navio Pérola do Oceano

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"Estou convencido que essa ação foi iniciada e controlada em Portugal sem o conhecimento do Governo local. José Borges aproveitou-se de alguns militantes do partido que tinham ligação comigo e, quando foi apanhado, entregou-os. E eu fui para a prisão. Felizmente no meu caso, e com muito orgulho, ninguém foi preso atrás de mim", conta em entrevista à DW Pedro Martins.

De uma maneira geral, a ação do grupo que acompanhou José Reis Borges "foi nobre e patriótica", escreve Martins no livro "Testemunho de um Combatente", no qual descreve todos os pormenores do assalto e do que se seguiu a este célebre episódio. "Fizeram o assalto convencidos de que seguiam ordens da direção do partido", sublinha, e acabaram por ter de "pagar com quatro longos anos de cativeiro".

"A PIDE tentou desmobilizar o PAIGC"

Nunca se provou que a operação foi, de facto, uma armadilha arquitetada pela PIDE, "mas há indícios fortes", lembra José Maria Semedo, professor da Universidade de Cabo Verde. "Aparece um indivíduo que diz que era um coronel do PAIGC, uma figura que não existia. E as estruturas do PAIGC confirmam que não mandaram ninguém. Portanto, a armadilha não pode ter caído do céu. E se não é a PIDE, é alguém próximo da PIDE", conclui.

António Lopes dos Santos, que na altura era governador, também acredita que a operação foi planeada a partir de Lisboa pela polícia política portuguesa. "O indivíduo cabo-verdiano que na altura aliciou aquela gente foi daqui da metrópole poucos dias antes e não tinha qualquer ligação conhecida com o PAIGC. (...) Penso que foi apenas um pretexto para a PIDE prender meia dúzia de indivíduos", esclarece Lopes dos Santos, citado no livro "Cabo Verde: Os Bastidores da Independência", de José Vicente Lopes.

Além dos 11 cabo-verdianos envolvidos diretamente no assalto, a tomada do navio Pérola do Oceano acabou por ter consequências para familiares e outros militantes do partido que lutava pela independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.

"Houve uma morte, acabaram por matar o cozinheiro. E o barco nunca saiu das águas de Cabo Verde, andou às voltas e acabou por ser aprisionado pela PIDE. Na sequência, muitos elementos do PAIGC de Cabo Verde acabaram por ser presos e foram parar ao Tarrafal enquanto presos políticos", lembra o académico José Maria Semedo. "Praticamente, a PIDE tentou desmobilizar o PAIGC", conclui.

Pedro Martins, o prisioneiro mais jovem do Tarrafal

10:55

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Pedro Martins torna-se, então, o mais jovem preso político no campo do Tarrafal, onde seria torturado pela PIDE. "Fomos os primeiros presos políticos a quem recusaram julgamento. Fomos enviados para o Campo de Concentração do Tarrafal, sem julgamento, sem nada. Foi um sítio que foi planificado, desenhado e construído para fazer sofrer as pessoas."

O dia em que foi preso não lhe sai da memória. "Lembro-me muito bem. Eu estava precisamente no Tarrafal, a tentar organizar o partido na clandestinidade. Coincidentemente estávamos a fazer o levantamento do Campo de Concentração do Tarrafal, recorda. "Porque nessa altura também não se punha de lado a questão da luta armada pela libertação de Cabo Verde", sublinha ainda Pedro Martins, que atualmente é presidente da Associação Cabo-Verdiana dos Ex-Presos Políticos no Tarrafal de Santiago.

O académico José Maria Semedo não tem dúvidas sobre o significado do caso Pérola do Oceano para a luta pela independência de Cabo Verde. "No contexto da luta, o assalto chama a atenção para a presença do PAIGC em Cabo Verde. Na Guiné-Bissau, efetivamente havia uma estrutura militar, havia uma guerra que era sentida. Em Cabo Verde, havia uma estrutura clandestina que não tinha organizações. Fazia mobilização e panfletos, sabia-se mais ou menos quem estava envolvido no processo, mas a PIDE não localizava toda a gente", refere. E nessa altura "a PIDE começou a ter uma ação muito intensiva para capturar os membros do partido", explica o professor da Universidade de Cabo Verde.

Frustação e abandono

"Sentia-se uma grande pressão internacional na altura, sobretudo por parte dos países africanos em relação a Portugal", recorda ainda o professor da Universidade de Cabo Verde, que era criança quando se deu o assalto ao Pérola do Oceano.

José Maria Semedo lembra também a frustração que se vivia nessa época em Cabo Verde. Além da falta de investimento, uma seca drástica atingia o arquipélago desde 1968.

"Foi uma colónia praticamente abandonada. Cabo Verde tornou-se uma colónia periférica, onde não há grandes investimentos", afirma o académico, recordando que é nessa altura que o Brasil "passa a ser a grande colónia de investimentos do império". Portanto, sublinha, "havia já muita frustração em relação ao que Portugal ia fazer com Cabo Verde." 

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