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Mali: Dez anos de uma crise sangrenta

António Cascais
30 de março de 2022

Há dez anos, o Mali, tal como o mundo o conhecia, desintegrou-se. A 31 de março de 2012, a cidade de Gao foi entregue a separatistas tuaregues e a grupos islâmicos. Agora, uma saída para a crise parece muito distante.

Combatentes tuaregues do Movimento Nacional para a Libertação de AzawadFoto: Kenzo Tribouillard/AFP/Getty Images

"A captura de Gao pelos combatentes tuaregues foi um acontecimento drástico na consciência da população do Mali", diz Hassane Koné do Instituto de Estudos de Segurança (ISS), um dos principais grupos de reflexão no domínio da política de segurança em África.

Até então, o Mali tinha sido considerado um Estado estável e democrático durante mais de duas décadas. Mas a 31 de março de 2012, os combatentes tuaregues do Movimento Nacional para a Libertação de Azawad (MNLA) capturaram Gao. A cidade no nordeste do país, na margem esquerda do Níger, é um importante centro, especialmente para o comércio do Sara, explica Koné.

Esta foi uma das razões pelas quais a MNLA fez dela a sua capital quando proclamou o estado independente de Azawad a 6 de abril. Mas o novo Estado não foi reconhecido por ninguém e apenas um pouco mais tarde, a 28 de junho de 2012, o MNLA foi expulso de Gao pelos grupos rebeldes islâmicos Ansar Dine e MUJAO. Eles, por sua vez, fizeram do seu objetivo impor a lei Sharia em Gao.

A 26 de janeiro de 2013, soldados malianos apoiados por tropas francesas e forças militares do Níger e do Chade retomaram a cidade aos islamistas. Só então foi possível criar um posto de comando em Gao, com participação alemã, para a missão internacional de paz MINUSMA, que começou a operar no Mali em julho daquele ano.

Soldados da MINUSMAFoto: Nicolas Remene/Le Pictorium/Maxppp/picture alliance

Começou com um golpe de Estado

A captura de Gao e mais tarde de Timbuktu e outras áreas no norte do Mali pelo exército maliano foi precedida por um golpe de Estado na capital Bamako, que também está gravado na memória da população maliana: A 21 de março de 2012, um mês antes do fim regular do seu mandato, o Presidente Amadou Toumani Touré (conhecido como ATT) foi derrubado num golpe militar.

O porta-voz dos golpistas, Amadou Konaré, declarou na televisão estatal que o Presidente não era capaz de dirigir o Governo e de controlar a revolta tuaregue no norte do país, que estava a decorrer desde meados de janeiro de 2012. Os golpistas suspenderam simultaneamente a Constituição, cancelaram as eleições presidenciais marcadas para abril e declararam dissolvidas todas as instituições estatais anteriores.

"A miséria do Mali começou assim com um golpe - e depois seguiram-se cada vez mais golpes", Hassane Koné, perito do Mali, resume a situação numa entrevista à DW. Sob ATT, a situação de segurança no Mali tinha-se agravado cada vez mais, o que levou a um forte descontentamento no seio do exército.

"O Presidente parecia estar principalmente preocupado com o seu futuro político pessoal. Afinal, as eleições estavam a aproximar-se, e havia rumores na altura de que os apoiantes e familiares de Touré estavam a preparar uma possível emenda constitucional e uma extensão do seu mandato oficial. Assim, o Governo de Bamako teve outros problemas na altura para além de responder à rebelião tuaregue. Entretanto, os tuaregues avançavam para o Mali vindos da Líbia com armas pesadas e a situação estava a ficar fora de controlo", diz Koné, explicando os acontecimentos que acabaram por conduzir ao golpe.

O golpe, que pôs fim à era ATT, parece portanto quase inevitável na perspetiva de hoje, conclui Koné.

ATT retornou a Bamako pela primeira vez em 2017, após anos de exílio no SenegalFoto: Getty Images/AFP/M. Cattani

Malianos fazem um balanço

Da perspetiva da sociedade civil do Mali, também, o golpe contra Touré representa o ponto de partida de uma série de fracassos e derrotas que continua até hoje. Mahamadou Kane, correspondente da DW, descobriu isto em conversa com cidadãos malianos em Bamako.

Um vendedor de rua, por exemplo, recordou que a ATT havia perdido o controlo do Estado. O golpe foi "uma consequência lógica da má gestão por parte do Governo".

Outro residente de Bamako acrescentou: "Temos vivido crises profundas nos últimos dez anos que nos devem fazer repensar a nossa democracia. Não é aceitável que resolvamos os nossos problemas apenas através de golpes de Estado".

Outro transeunte também criticou: "Dois ou três dias após a queda do Presidente, o norte do país ficou sob o controlo de grupos terroristas e bandidos de todos os tipos. E em breve nos ocorreu que precisamos de ajuda do estrangeiro. Penso que nós africanos temos de compreender que temos de tomar o nosso destino nas nossas próprias mãos em vez de esperar por soluções dos países europeus".

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Um recorde devastador

Várias missões militares internacionais têm tentado estabilizar o norte do Mali a partir de Gao e apoiar operações contra organizações terroristas ao longo dos últimos dez anos. O exército alemão (Bundeswehr) estacionou até 1.700 soldados no Mali como parte de uma missão da ONU (MINUSMA) e de uma missão de formação da UE (EUTM). Mas estes esforços são considerados como tendo falhado.

Ainda está em vigor um estado de emergência a nível nacional. Os ataques terroristas são possíveis em toda a parte no Mali. Especialmente no norte e centro do país, ocorrem regularmente confrontos violentos. Os grupos terroristas também estão ativos no nordeste e no centro do país e em áreas ao longo das fronteiras com a Mauritânia, Burkina Faso e a Costa do Marfim. Vários milhares de soldados e civis já foram mortos no conflito, e dois milhões de pessoas foram deslocadas das suas casas. "O balanço dos últimos dez anos é devastador", confirma Hassane Koné do ISS.

Um golpe de Estado atrás do outro

A situação política no Mali deteriorou-se ainda mais nos últimos tempos. Em agosto de 2020, houve um golpe militar no qual o Governo eleito sob o Presidente Ibrahim Boubacar Keïta foi expulso pela força após protestos em massa. Em janeiro de 2021, sob pressão da comunidade internacional, foi formado um Governo civil de transição. Este, por sua vez, foi expulso por outro golpe militar em maio de 2021.

Desde então, o oficial Assimi Goïta, que tinha liderado os golpes em ambas as ocasiões, é agora o novo Presidente de um Governo de transição, mas com a promessa de um regresso à democracia.

Protesto contra a presença francesa em BamakoFoto: Florent Verges/AFP

Em resposta ao golpe, a União Africana (UA) e a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) suspenderam, por enquanto, a adesão do Mali. O governo francês anunciou a retirada das suas tropas, cujo destacamento tinha sido solicitado pelo antigo Governo do Mali para combater as milícias jihadistas. A França também tem denunciado repetidamente a presença e o destacamento do controverso grupo mercenário russo Wagner no Mali. Em troca, o regime de Bamako acusa a missão militar francesa de ineficácia e o Governo de Paris de interferir nos assuntos internos do país da África Ocidental.

O Governo alemão, juntamente com outros parceiros e organizações internacionais como a França, a União Africana (UA) e a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), apela ao regresso do Mali à ordem constitucional o mais rapidamente possível.

Mas será mesmo possível a restauração do Mali como um país pacífico e estável como o conhecíamos antes de 2012?

Dez anos após a revolta Tuaregue em 2012 e a invasão jihadista de Gao, Bakary Sambe, diretor regional do Instituto Timbuktu, um grupo de reflexão baseado em Dakar e Bamako, vê apenas uma pequena hipótese de reconstrução nacional: "Esta reconciliação só pode acontecer através da construção de uma verdadeira democracia que integre todas as minorias do Mali".

Em vez disso, porém, o Mali tem apenas uma "fachada democrática" que aborda questões eleitorais de curto prazo, deixando importantes desafios como a reconciliação nacional intocados, diz Sambe.