Mia Couto afirma que esta nova geração vai preencher a lacuna que existia na literatura moçambicana. Sobre a sua trilogia, explica que Ngungunhana foi um “pretexto” para “questionar o passado recente” do seu país.
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O moçambicano Mia Couto foi uma das figuras de destaque entre os oito escritores de língua portuguesa que marcaram presença na Feira do Livro de Leipzig, na Alemanha, que terminou no último domingo (26.03). Em entrevista à DW África, Mia Couto abordou o rumo da literatura moçambicana e da arte, de uma maneira geral. Falou claro, também, sobre a sua última obra, a trilogia "As Areias do Imperador", que tem como figura central o imperador de Gaza Ngungunhana, famoso por ter resistido aos colonialistas portugueses em Moçambique.
DW África: Na sua trilogia apresenta um Ngungunhana diferente das outras abordagens feitas até aqui, portanto, nem herói, na sua forma idealizada, nem um diabo. Pretende mostrar o seu lado mais real e humano com fraquezas e qualidades?
Mia Couto (MC): Eu não procuro exatamente fazer o retrato de Ngungunhana. O Ngungunhana é o pretexto, o personagem trágico, digamos, que me autoriza a falar de um tempo e esse tempo é que me interessa. O tempo em que se definiram algumas das bases, dos fundamentos que hoje ainda marcam muito aquilo que é a nossa identidade nacional, portanto, eu quero questionar o passado recente de Moçambique. É isso que me interessa.
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DW África: Uma das coisas pouco destacada na história moçambicana sobre a vida de Ngungunhana e das suas esposas é a sua prisão em Portugal, nos Açores. O que é que percebeu que nos possa revelar em relação a este episódio da vida de Ngungunhana?
MC: Eu fui aos Açores, tive lá um mês a fazer pesquisa e a ver os lugares onde ele este preso, onde ele morreu e foi enterrado, onde ele chegou num barco que o trouxe e que, curiosamente, se chamava "Zambeze”. O que me interessou não foi exatamente a recolha de informação, eu tinha muita informação, mas a recolha daquilo que não pode ser dito em nenhum livro que seria eu colocar-me na pele de um africano que tinha o mar como uma interdição. Para o povo Nguni o mar é um lugar que não tem nome, que não pode ser tocado. Tudo isso me interessou e olhar aquela ilha como uma inteira prisão, ele não estava só preso no forte, ele tinha uma ilha como prisão e a parede dessa prisão era o próprio mar. Tudo isso me ajudou a escrever uma parte do livro.
DW África: Existe uma nova geração de escritores em Moçambique que vai surgindo muito timidamente. No entanto, não lhes é dada a exposição necessária no mercado, principalmente, internacional, para que sejam conhecidos. É possível garantir a continuidade de escritores ou da literatura moçambicana nestas condições?
MC: Esse passo nacional e internacional conquista-se e é uma luta muito dura mais ainda agora nesta geração que tem muita qualidade, porque os critérios de publicação estão todos entregues ao mercado, se o livro vende ou não vende. Acontece que a maior parte dos grandes talentos jovens de Moçambique surgem na área da poesia e a poesia vende-se pouco, como dizem os editores. O que eu tenho grande esperança, e tenho realmente uma esperança fundamentada em coisas que eu conheço, há uma jovem geração moçambicana que é muito boa e que vai preencher uma certa lacuna que havia. Durante uns quinze, havia aquilo a que se chamava um vazio. (Perguntava-se) "Então não surgem novos (talentos)?”Estão a surgir e com uma grande força.
DW África: E como se explica este surgimento repentino?
MC: Eu acho que houve um momento em que estávamos um pouco perdidos. A guerra civil também teve o seu papel, pois quebrou elos dentro de Moçambique, matou a escola, matou o professor. Acho que também há um momento em que Moçambique se precisa de interrogar, questionando "Quem somos nós afinal?”. E a literatura surge com muita força quando há estas crises.
DW África: A literatura infantil também tem merecido algum destaque em eventos frequentes, não só em termos de literatura, mas noutras artes também, como por exemplo, a pintura. Isso é indicador de alguma mudança positiva no país?
MC: Acho que ao mesmo tempo que o país vive uma crise grande do ponto de vista financeiro e do ponto de vista daquilo que é a tranquilidade, a cidade de Maputo, falo nesta porque não conheço todas as outras, tem uma vitalidade cultural enorme que contrasta muito com o que se poderia esperar de uma cidade que viveu este longo trauma. Todos os dias acontecem coisas em Maputo, há vários sítios com musica ao vivo, é difícil acompanhar essa grande dinâmica que existe na cidade.
Cinemas únicos em Angola
São obras únicas vistas pela lente do fotógrafo angolano Walter Fernandes - cinemas e cine-esplanadas desconhecidos de muitos. As fotos foram reunidas em livro e estão em exposição em Lisboa, a partir desta semana.
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
"Uma ficção da liberdade"
O Cine Estúdio do Namibe inspira-se nas obras do arquiteto Oscar Niemeyer. É um dos edifícios únicos de Angola destacados no livro "Angola Cinemas - Uma Ficção da Liberdade" e fotografados por Walter Fernandes. Esta é uma das imagens em exposição no Goethe-Institut de Lisboa que revelam uma arquitetura desconhecida por muitos de cinemas construídos antes do fim do domínio colonial português.
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
Património mal preservado
O Cine Tômbwa, também no Namibe, obedece a uma lógica de salas fechadas, mas já apresentava algumas linhas mais modernas. Segundo o fotógrafo Walter Fernandes, o edifício foi construído com materiais "sui generis". Mas o património herdado está muito mal preservado, lamenta o angolano.
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
Moçâmedes: A pérola do Namibe
No Cine-Teatro Namibe (antigo Moçâmedes) nota-se bastante a influência da arquitetura do regime ditatorial português, o Estado Novo. Este é considerado um dos cinemas angolanos mais antigos e também aparece no livro "Angola Cinemas - Uma Ficção da Liberdade", apadrinhado pelo Goethe-Institut em Luanda e pela editora alemã Steidl.
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
Conceito futurista
O arquiteto Botelho Pereira não só desenhou o Cine Estúdio do Namibe, como também o Cine Impala. Botelho Pereira inspirou-se no movimento deste antílope e planeou espaços abertos e arejados, de forma futurista. O livro "Angola Cinemas - Uma Ficção da Liberdade" também destaca estas cine-esplanadas, que ganharam popularidade a partir de 1960 por se adaptarem mais ao clima tropical do país.
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
Cinema-esplanada para as elites
Este é um dos cinemas preferidos de Miguel Hurst, um dos editores do livro "Angola Cinemas". Foi aqui, no Cine Kalunga, em Benguela, que se pensou em fazer a obra. Cine-esplanadas como esta adequavam-se mais ao clima, mas serviam também um propósito do regime português - criar locais de convívio entre as populações locais e os colonos. A elite branca e a pequena burguesia negra vinham aqui.
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
A "grande sala"
A "grande sala" de Benguela era o Monumental - pelo menos, ganhou essa reputação. Os colonizadores portugueses construíram o Cine-Teatro nesta cidade costeira pois evitavam o interior do país - normalmente, as companhias portuguesas só atuavam nas grandes cidades da costa angolana.
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
Imperium: "Art decó" em Benguela
Aqui, são imediatamente visíveis traços da passagem da "art decó" (um estilo artístico de caráter decorativo que se popularizou na Europa nos anos 20) para o modernismo. O interior do Cine Imperium, fotografado por Walter Fernandes, representa bem essa mistura estética, com os cubos, retas, círculos e janelas. Benguela tinha várias salas, porque era das províncias mais populosas de Angola.
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
O arquiteto que pensava as cidades
Este é o interior do Cine Flamingo: mais uma pérola da província de Benguela. A parte de trás é uma esplanada. Sentado, o espetador está em contacto com a natureza, mas não está exposto. Até hoje, a estrutura mantém-se, mas o espaço está um pouco vandalizado. Miguel Hurst sublinha a importância de manter obras como esta do arquiteto Francisco Castro Rodrigues, um homem que pensava cidades.
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
Primeiro cine-teatro de Angola
"O Nacional" Cine-Teatro foi a primeira sala construída em Luanda, no início do Estado Novo, nos anos 40. Esta é uma das imagens patentes na exposição no Goethe-Institut em Lisboa. A mostra pretende ser "um testemunho do modo como estes edifícios constituíam um enquadramento elegante que sublinhava uma simples ida ao cinema, promovendo assim a reflexão sobre esta herança sociocultural e afetiva."
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
Memória para gerações futuras
Os irmãos Castilho são os principais responsáveis pela introdução das cine-esplanadas em Angola. A primeira da sua autoria foi o Miramar, encostado a uma ribanceira virada para o mar em Luanda. Depois surgiu o Atlântico, na foto. Para os autores do livro "Angola Cinemas - Uma Ficção da Liberdade", este é um documento de memória que pode ser útil para as futuras gerações.