Depois da trilogia "As Areias do Imperador", Mia Couto quer assentar os pés na terra e escrever sobre a cidade onde cresceu, a Beira, no centro de Moçambique. Escritor pretende "reinventar" as memórias de infância.
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Mia Couto terminou, no ano passado, a trilogia "As Areias do Imperador", que tem como pano de fundo os últimos dias do segundo maior império em África governado por um africano, Ngungunyane, no final do século XIX. O escritor moçambicano diz agora que a sua próxima obra será diferente - mais pessoal.
"Depois de viajar por tempos tão distantes, por gente tão antiga, apeteceu-me tomar uma coisa mais com chão, mais concreta, que seriam as minhas memórias", afirma em entrevista à DW África.
Mia Couto prepara livro sobre memórias na Beira
O autor quer reinventar o lugar onde nasceu e cresceu: a cidade da Beira, no centro de Moçambique. O próximo livro não será autobiográfico. Mia Couto pretende, antes, celebrar a sua infância.
"Estou a reinventar aquele lugar [a Beira], para que ele permaneça vivo dentro de mim", conta o escritor. "Não vou falar de mim nem da minha família, mas desse tempo terminal de um mundo colonial e como é que ali já se adivinhava qualquer coisa que vinha. São mais as minhas lembranças. Não quero falar de mim. A minha história não interessa tanto assim."
É o que diz Mia Couto. Outras pessoas, particularmente os seus fãs, poderão discordar.
Digressão na Alemanha e 25 de Abril
Mia Couto está a fazer uma digressão pela Alemanha. Em cinco dias, o escritor visita cinco cidades, de leste a oeste do país: Berlim, Leipzig, Colónia, Heidelberg e Frankfurt. É uma maratona, mas o escritor moçambicano parece fazê-la com gosto.
"Eu acho notável que haja gente que se interesse. Há 15 anos não havia tanta gente com interesse por África e por alguma coisa que ainda continua a ser desconhecida. Acho que isso é muito bom num momento em que se criam tantos muros e se procura empurrar o outro para longe", afirma. "A literatura contraria um pouco essa distanciação."
Em Colónia, Mia Couto apresentou o seu último livro publicado em alemão, "Imani" ("Mulheres de Cinza" no título original). Dezenas de fãs - sobretudo alemães, portugueses e brasileiros - foram ver o escritor.
Apesar da agenda cheia, Mia Couto arranjou tempo para todos os que quiseram falar com ele. Assinava cada livro que lhe era dado para assinar (às vezes, uma mão cheia deles) e respondia a todas as perguntas do público - sobre a sua obra, mas também sobre as suas vivências. Um dos tópicos abordados pelo escritor foi a revolução do 25 de Abril, que os portugueses comemoram esta semana.
"Sem desvalorizar esta festa, para nós, em Moçambique, esse dia foi vivido de uma outra maneira", contou ao auditório em Colónia, que o escutava em silêncio absoluto. "Aqueles que apareciam anunciando o 25 de Abril estavam misturados. Havia inclusive rostos nesse movimento de militares que tinham chefiado o regime colonial em Moçambique e na Guiné. Portanto, não conseguíamos ter completa confiança em relação ao nosso grande objetivo, que era, além de fazer cair aquele regime, conseguirmos a independência nacional."
Há um mês, Mia Couto esteve na sua cidade natal, a Beira, a revisitar os lugares da sua infância e a preparar o livro baseado nas suas memórias. A digressão na Alemanha termina esta sexta-feira (27.04) em Frankfurt. Talvez depois o escritor possa ter mais tempo para continuar a escrever.
As artes como arma anticolonial
A luta contra o colonialismo fez-se em várias frentes. Uma caneta, uma música e um pincel também podem ser uma arma. Recordamos algumas figuras que fizeram da arte o seu grito de revolta contra o regime vigente.
Foto: Casa Comum/ Documentos Malangatana
Amílcar Cabral, o "Chefi di Guerra" que era poeta
Nasceu na Guiné, mas o percurso e luta dividiu-se entre o país natal e Cabo Verde. Promotor da cultura e educação, que via como partes integrantes do processo de revolução. O poeta português Manuel Alegre descreveu-o como” o mais inteligente, o mais criativo e o mais brilhante de todos os dirigentes da luta de libertação dos povos africanos".
Foto: casacomum.org/Documentos Amílcar Cabral
Deolinda Rodrigues: As mulheres também lutam
Langilia era o nome de guerra de Deolinda Rodrigues (no canto superior direito da foto) contra o império colonial. Perdeu a vida pela causa que defendia. É também um símbolo feminista – é ela a origem do Dia da Mulher Angolana. Excerto de um dos seus poemas: "Mamã África geraste-me no teu ventre, nasci sob o tufão colonial, chuchei teu leite de cor, cresci, atrofiada, mas cresci".
Foto: Casa Comum/Fundo Mário Pinto de Andrade
Mário Pinto de Andrade e a identidade africana
Passou grande parte da sua vida exilado, o que não o impediu de ser uma das grandes vozes dos nacionalismos africanos e do pan-africanismo. Idealista, acaba por deixar o MPLA, partido que fundou, por não se identificar com o rumo tomado. Em 1953, com o são-tomense Francisco Tenreiro, organizou o volume "Poesia Negra de Expressão Portuguesa", um testemunho da expressão africana dentro da lusofonia.
Foto: DW/J. Carlos
As "três Marias": Denunciar o Estado Novo internacionalmente
Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho Costa escreveram "As Novas Cartas Portuguesas", que denunciava a repressão do regime, especialmente no que dizia respeito às mulheres. O livro foi censurado e as autoras levadas a tribunal. O caso teve grande repercussão internacional, com várias manifestações em sua defesa e contra o regime ditatorial em Portugal.
Foto: privat
José Luandino Vieira: Consciência nacionalista
É um dos grandes da literatura angolana. A sua obra reflete a consciência nacionalista, não foi por acaso que adotou um pseudónimo que inclui o nome "Luandino". Lutou pelo MPLA. Foi um dos que foram presos na sequência do conhecido "Processo dos 50". Esteve vários anos preso, incluindo no Tarrafal. Venceu o prémio Camões, o mais importante para escritores de língua portuguesa, que recusou.
Foto: Imago/GlobalImagens
Zeca Afonso: A voz da revolução
Português, com a infância passada entre Angola e Moçambique. Voz incontornável da música de intervenção contra a ditadura e o colonialismo. A sua música "Grândola Vila Morena" foi um dos sinais para dar início à Revolução dos Cravos. É reconhecido internacionalmente e as suas músicas permanecem um símbolo da luta contra regimes opressivos.
Foto: Casa Comum/Arquivo Mário Soares
Alda do Espírito Santo: "Independência total"
Figura mítica do nacionalismo são-tomense (à esquerda na foto), não fora ela a autora da letra do hino nacional onde por várias vezes reclama a "Independência total". A sua poesia é um elogio à sua terra e ao seu povo. Em Lisboa conviveu com intelectuais como Mário Pinto de Andrade e Amílcar Cabral, na famosa Casa dos Estudantes do Império.
Foto: Casa Comum/Fundo Mário Pinto de Andrade
Malangatana: O herói moçambicano
Esteve 18 meses preso pelos ideais anticolonialistas que defendia. Os anos de cárcere estariam depois presentes também presentes nos seus trabalhos. É conhecido internacionalmente pela pintura, mas também explorou outras formas de expressão como a escultura, cerâmica e a tapeçaria. Em 1997 foi nomeado pela UNESCO "artista pela paz".