Migrantes etíopes detidos na Arábia Saudita vivem "inferno"
Lusa | AFP | mc
2 de outubro de 2020
Milhares de migrantes etíopes que usaram a rota marítima Corno de África/Iémen permanecem detidos na Arábia Saudita em condições infernais e desumanas, denuncia a Amnistia Internacional.
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"É um inferno. Nunca tinha visto nada assim na vida. Não há casas de banho, urinamos no chão, próximo de onde dormimos, e às vezes temos de caminhar sobre os dejetos."
O relato é de Zenebe, de 26 anos, detido no centro de reclusão de Al-Dayer, no sul da Arábia Saudita, e consta de uma investigação da organização de defesa dos direitos humanos Amnistia Internacional (AI), publicada esta sexta-feira (02.10).
Zenebe é apenas um de milhares de migrantes etíopes que usaram a rota marítima Corno de África/Iémen e que permanecem detidos na Arábia Saudita em condições descritas pelos próprios como infernais e suscetíveis de pôr em risco as suas vidas.
Maus-tratos a grávidas
O relatório da investigação, onde constam testemunhos de dezenas destes detidos, descreve celas com 350 pessoas em média, por vezes "acorrentadas aos pares", onde são mantidas mulheres grávidas. Denuncia ainda que os maus-tratos por parte dos guardas são quotidianos.
"Milhares de migrantes etíopes, que deixaram as suas casas em busca de uma vida melhor, enfrentam uma crueldade inimaginável", explica Marie Forestier, investigadora e especialista em direitos dos refugiados e migrantes da AI.
A responsável adianta que os migrantes que foram para a Arábia Saudita a partir do Iémen foram confinados "em celas imundas, rodeados de morte e doenças" e acrescenta que "a situação é tão terrível que pelo menos duas pessoas tentaram suicidar-se".
"Todos os entrevistados disseram conhecer pessoas que tinham morrido durante a detenção", lê-se ainda no relatório.
Travessia do Iémen um perigo para os migrantes africanos
03:07
Detidos no Iémen
Antes da pandemia, milhares de trabalhadores etíopes concentraram-se no norte do Iémen à espera de uma oportunidade de conseguir emigrar para a Arábia Saudita, quando as autoridades huzi lhes ordenaram que fossem para a fronteira, onde foram apanhados no fogo cruzado entre as forças sauditas e os huzi.
Uma vez na Arábia Saudita, foram presos pelas forças de segurança, que confiscaram os seus pertences e, em alguns casos, os espancaram antes de os transferirem para o centro Al-Dayer e de lá para as prisões de Jizany, Jeddah e Meca, de acordo com a AI.
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Repatriamento digno
"Nada, nem sequer uma pandemia, pode justificar a continuação da detenção arbitrária e do abuso de milhares de pessoas", afirma Forestier, que apela à comunidade internacional para ajudar a Etiópia a "aumentar o número de espaços" disponíveis para estas pessoas serem colocadas em quarentena.
"Instamos as autoridades sauditas a libertarem imediatamente todos os migrantes detidos arbitrariamente e a melhorarem significativamente as condições de detenção antes que se percam mais vidas", diz Forestier.
A AI apela também às autoridades etíopes e sauditas para trabalharem em conjunto para assegurar um repatriamento "voluntário, seguro e digno", observando que, entre abril e setembro de 2020, 3.998 etíopes já puderam deixar a Arábia Saudita e regressar a casa.
Tsion Teklu, ministro de estado do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Etiópia, disse à AFP em setembro que o número total de imigrantes etíopes nas instalações de detenção sauditas era de 16.000 no início deste ano, mas que desde então tinha diminuído.
Rota mais movimentada do mundo
Em 2019, o número de migrantes que utilizam a rota entre o Corno de África e o Iémen excedeu o fluxo no Mediterrâneo pelo segundo ano consecutivo, informou em fevereiro a Organização Internacional para as Migrações (OIM). Esta é agora a rota marítima mais movimentada do mundo.
No ano passado, 138.000 pessoas, na sua maioria etíopes, atravessaram o Golfo de Adem para o Iémen, apesar do perigo de chegarem a um país em guerra civil, para procurarem trabalho noutras nações da região, especialmente na Arábia Saudita, para onde se dirigiu 90% deste fluxo.
Estima-se que até meio milhão de etíopes estavam na Arábia Saudita quando as autoridades daquele país lançaram uma repressão contra os migrantes ilegais em 2017, de acordo com a OIM. A partir desse momento, uma média de cerca de 10.000 etíopes foram deportados mensalmente até ao início deste ano, quando a Etiópia solicitou uma moratória por causa da pandemia.
Desalojados: Crise negligenciada na Etiópia
A Etiópia enfrenta uma das piores crises de desalojados do mundo - cerca de três milhões de pessoas no país fugiram das suas casas nos últimos anos.
Foto: DW/M. Gerth-Niculescu
Recomeçar
As autoridades começaram a fazer retornar à casa algumas das centenas de milhares de membros do grupo étnico Gedeo que fugiram dos ataques na região de Oromia, sul da Etiópia. Mas organizações humanitárias acusam o Governo de forçar os Gedeos a regressarem às aldeias onde perderam tudo e continuam a não sentir-se seguros.
Foto: DW/M. Gerth-Niculescu
Escassez de terra
Há cerca de dois meses, as estradas de Hinche - junto das colinas verdes da zona de Guji Ocidental - estavam vazias. Agora, quase todos da etnia Gedeo que viviam aqui regressaram, depois de fugir da violência étnica no ano passado. Guji Ocidental é parte da região de Oromia, e casa para a maior parte da etnia Oromo. O longo conflito etnico é principalmente por causa da posse de terra.
Foto: DW/M. Gerth-Niculescu
Acusações de retorno forçado
Os residentes de Hinche, bem como outros Gedeos, não tiveram outra escolha se não regressar às suas aldeias, depois de o Governo ter destruído os campos de desalojados e limitado a ajuda humanitária na zona Gedeo. Observadores acusam as autoridades de organizar retornos forçados, que entendem que irão agravar a já tensa situação.
Foto: DW/M. Gerth-Niculescu
Casas saqueadas e destruídas
Zele está contente por regressar a casa com a sua esposa e os seus seis filhos. Contudo, a vida aqui em Hinche é muito difícil, especialmente quando começa a época chuvosa. A casa de Zele foi destruída e os seus bens roubados durante a violência, então ele construiu o seu abrigo. A família vive de ajuda mensal de cerca de 40kg de grãos e dois litros de óleo.
Foto: DW/M. Gerth-Niculescu
Medo de mais ataques
Muitos dos retornados são agricultores, mas não conseguiram cultivar as suas terras desde que regressaram. Dingete agora trabalha como diarista em outra propriedade para alimentar os seus filhos. "A nossa quinta é longe daqui e estou com medo de lá ir, porque algumas pessoas disseram que viram grupos armados Oromo na região", disse ela.
Foto: DW/M. Gerth-Niculescu
Esforços de reconciliação
As autoridades locais dizem que a segurança não é problema. Dizem que as milícias e as comunidades estão a trabalhar em conjunto para identificar os malfeitores. "Gedeos e Oromos acreditam que somos irmãos e que vivemos juntos. Eles têm os mesmos valores, o mesmo mercado, casam entre eles", diz Aberra Buno, o administrador da zona Ocidental de Guji.
Foto: DW/M. Gerth-Niculescu
Fraqueza da Justiça
Vários Gedeos estão frustrados com o que entedem ser a fraca atuação da Justça. Em Cherqo, mais de mil pessoas fugiram e quase todas as casas foram destruídas. "Aqueles que cometeram essas coisas não foram presos ou enfrentaram a Justiça - nem uma única pessoa foi capturada", diz Abebe, administrador de Cherqo. A Polícia de Guji diz que já deteve mais de 200 pessoas no contexto da violência.
Foto: DW/M. Gerth-Niculescu
Esquecimento
As autoridades dizem ter trazido de volta quase 100% dos desalojados resultantes dos conflitos entre Gedeos e Gujis, grupo pertencente à etnia Oromo. Contudo, milhares de pessoas originárias de Guji Oriental continuam a viver na zona Gedeo, aparentemente esquecida. A ajuda alimentar parou de chegar há cerca de dois meses. Centenas de crianças vivem em condições alarmantes e não vão a escola.
Foto: DW/M. Gerth-Niculescu
Doenças e má nutrição
"Estamos a morrer a fome, as pessoas morrem de diarreia, as nossas crianças têm de sair a rua para apanhar comida no lixo e trazer para as suas famílias", diz Almaz, que vive neste campo em Dilla na zona Gedeo há mais de um ano.
Foto: DW/M. Gerth-Niculescu
A ajuda alimentar parou
As autoridades da zona Gedeo dizem que solicitaram comida ao Governo Federal e então poderão enviar as famílias para Guji Oriental. Mas vários Gedeos não se sentem seguros para voltar. Houve diversos relatos de assassinatos étnicos de Gedeos em Guji Oriental em finais de maio.
Foto: DW/M. Gerth-Niculescu
Estatísticas incompletas
Organizações humanitárias dizem que os Gedeos que fugiram das suas casas em Guji Ocidental estão a viver em assentamentos informais ou a alugar casas. Esnfrentam dificuldades em monitorá-los e o grupo não aparece nas estatísticas oficiais. Os Gedeos também não recebem nenhuma ajuda.