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Doentes mentais vivem acorrentados em todo o mundo - HRW

Lusa
6 de outubro de 2020

É um problema conhecido pelas autoridades, mas contra o qual não há medidas internacionais, denunciou hoje a Human Rights Watch. Moçambique consta da lista dos países com tais práticas.

Togo, ein psychisch kranker Patient wird in einem Gebetslager in Atakpamé, Zentral-Togo, angekettet
Foto: DW/L.Salm-Reifferscheidt

Num relatório divulgado esta terça-feira (06.10), a organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch (HRW) alerta para a existência de 60 países da Ásia, África, Europa, Médio Oriente e Américas onde é prática frequente acorrentar homens, mulheres e até crianças, algumas com menos de 10 anos, em espaços confinados, durante semanas, meses ou mesmo anos.

"Embora vários países estejam a prestar mais atenção à questão da saúde mental, a prática do acorrentamento continua fora do 'radar'. Não há dados ou esforços internacionais ou regionais para erradicar o acorrentamento", critica a HRW.

Por isso, a organização diz que está a preparar, em conjunto com especialistas de saúde mental e com organizações de direitos humanos de todo o mundo, o lançamento de uma campanha global, #BreakTheChains, que em português significa quebrar as correntes, por ocasião do Dia Mundial da Saúde Mental, que se assinala a 10 de outubro.

"O objetivo é acabar com o acorrentamento de pessoas com problemas de saúde mental", explica, em comunicado.

Atos desumanos

"Acorrentar pessoas com problemas de saúde mental é uma prática brutal generalizada que é um segredo de polichinelo em muitas comunidades", afirma a investigadora de direitos das pessoas com deficiência da organização e autora do relatório, Kriti Sharma.

"As pessoas podem passar anos acorrentadas a uma árvore, trancadas numa gaiola ou num barracão para ovelhas, porque as famílias lutam para sobreviver e os governos não fornecem serviços de saúde mental adequados", refere, acrescentando que muitas famílias têm medo de ser estigmatizadas.

"Muitos são forçados a comer, dormir, urinar e defecar numa área minúscula. Em instituições públicas ou privadas ou em centros de cura tradicionais ou religiosos, são frequentemente forçados a jejuar, tomar medicamentos ou misturas à base de ervas e enfrentam violência física e sexual", alerta o relatório.

Moçambique na lista

A HRW aponta casos no Afeganistão, Burkina Faso, Camboja, China, Gana, Indonésia, Quénia, Libéria, México, Moçambique, Nigéria, Serra Leoa, Palestina, no autoproclamado Estado independente da Somalilândia, no Sudão do Sul e no Iémen.

Entre as 350 entrevistas feitas em 110 países para a realização do relatório, os investigadores encontraram exemplos de pessoas com deficiência mental e acorrentadas por isso em todas as faixas etárias, etnias, religiões, estratos socioeconómicos e áreas urbanas e rurais.

"Não é assim que um ser humano deve viver. Um ser humano deve ser livre", disse à investigadora da HRW um homem do Quénia que atualmente vive acorrentado. 

"O acorrentamento é tipicamente praticado por famílias que acreditam que as condições de saúde mental são resultado de espíritos malignos ou de pecado. Muitas vezes, consultam primeiro curandeiros e só vão aos serviços de saúde mental como último recurso", explicou Sharma.

"Estou acorrentado há cinco anos. A corrente é tão pesada. Isto não está certo, deixa-me triste. Estou numa pequena sala com sete outros homens. Não tenho permissão para usar roupas, só roupas íntimas. Como uma mistela de manhã e, se tiver sorte, tenho pão à noite, mas nem sempre", descreveu Paul, um homem com um problema de saúde mental que vive em Kisumu, no Quénia, e é citado no relatório.

Sem acesso adequado a saneamento, sabonete ou mesmo cuidados básicos de saúde, as pessoas acorrentadas correm maior risco de contrair Covid-19, avisa a HRW.

"E em países onde a pandemia da Covid-19 interrompeu o acesso aos serviços de saúde mental, as pessoas correm maior risco de serem acorrentadas", acrescenta a organização.

Kriti Sharma, investigadora da HRWFoto: Human Rights Watch

Negação da dignidade

Uma mulher moçambicana relata a sua experiência dizendo que foi levada para um centro de cura tradicional onde lhe cortaram os pulsos para introduzir medicação e depois foi levada para um centro onde um feiticeiro a obrigou a tomar banho com sangue de galinha.

"As pessoas da vizinhança dizem que estou maluca (ou n'lhanyi)", refere Fiera, de 42 anos e residente em Maputo.

"Na ausência de suporte de saúde mental adequado e por falta de conhecimento, muitas famílias sentem que não têm outra opção a não ser acorrentar os seus parentes. Muitas vezes ficam preocupadas com a possibilidade de a pessoa fugir ou de se magoar, a si ou a outras pessoas", relata a investigadora da HRW.

Sharma sublinha que a prática "afeta a saúde mental e física", podendo causar "stress pós-traumático, desnutrição, infeções, lesões nervosas, atrofia muscular e problemas cardiovasculares", além de negar a dignidade que é devida a todos os humanos.

Qual o papel dos governos?

"É horrível que centenas de milhares de pessoas em todo o mundo vivam acorrentadas, isoladas, abusadas e sozinhas", disse a investigadora, sublinhando que "os governos têm de parar de varrer este problema para debaixo do tapete e agir de verdade e de imediato".

"Os governos têm de agir urgentemente no sentido de proibir os acorrentamentos, reduzir o estigma e desenvolver serviços de saúde mental comunitários de qualidade, acessíveis e baratos", exige a HRW.

As autoridades, apelou a organização, "devem ordenar imediatamente inspeções e fazer um monitoramento regular de instituições públicas e privadas para tomar as medidas adequadas contra instalações abusivas".

Em todo o mundo, uma em cada 10 pessoas (cerca de 792 milhões) tem problemas de saúde mental, mas os governos gastam menos de 2% de seus orçamentos para saúde com a saúde mental, conclui o relatório.

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