Mais de vinte associações de minorias étnicas e afrodescendentes em Portugal enviaram uma carta reivindicativa (05.12), ao Comité das Nações Unidas em Genebra, Suíça, para a eliminação da discriminação racial.
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No documento, eles criticam o Estado português por não reconhecer a necessidade de políticas específicas para estas minorias. O movimento associativo reclama "falta de diálogo” com as entidades que, segundo afirmam, não foram ouvidas sobre questões que se prendem com o combate ao racismo e à exclusão.
A polémica veio a baile na sequência de um relatório sobre a discriminação racial apresentado por Portugal e baseado em informações fornecidas por várias instituições portuguesas. Entre essas, o Alto Comissariado para as Migrações (ACM) e a Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade.
As associações criticam o facto do Governo português ter remetido um relatório às Nações Unidas sobre a problemática da discriminação racial em Portugal, sem os contributos da sociedade civil e sem ter ouvido formalmente os afrodescendentes e outras minorias.
"Falha gravíssima"
Segundo Mamadou Ba, da organização não-governamental SOS Racismo, trata-se de "uma falha gravíssima”. Ele diz que o Estado português não pode lavrar um relatório sobre discriminação racial sem ter o aporte e o contributo das pessoas que são vítimas do racismo, "por isso as associações têm se mobilizado”, explica.
A segunda causa, e mais importante, segundo ele, diz respeito ao conteúdo do relatório. "O Governo português assume neste documento que não tem necessidade de implementar medidas específicas para combater o racismo enfrentado pelas comunidades de afrodescendentes”, disse Mamadou Ba.
Para o dirigente associativo, esta postura do Governo de Portugal contraria a própria Organização das Nações Unidas (ONU) e seus decretos sobre o tema. "A ONU estipula claramente a necessidade de medidas específicas que respondam aos problemas de discriminação confrontadas pelas comunidades afrodescendentes”, diz.
O Governo português diz ter "políticas generalísticas, holísticas como as queiram chamar", mas segundo Mamadou Ba, "é preciso haver medidas específicas orientadas para as questões com que se confrontam as comunidades afrodescentes".
05.12.2016 Portugal-racismo - MP3-Mono
Carta
Perante esta falha do Governo português, pelo menos 22 associações endereçaram uma carta, nesta segunda-feira (05.12), ao Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial. Em seu último relatório, resultante da avaliação publicada em 2012, a própria ONU lamentou a falta do contributo da sociedade civil nesta matéria.
Mamadou Ba explica que "as ONG’s que intervêm nesta área devem refletir nos seus contributos para a ONU sobre os problemas dos afrodescendentes, afrobrasileiros, e africanos imigrantes e minorias étinicas que tivessem situações de discriminação racial. Portanto, o Estado português tem que cumprir para já com as suas próprias obrigações”.
Na carta, as associações apresentam reivindicações claras. Uma delas exige a recolha de dados étnico-raciais para definir o universo de pessoas abrangidas e saber qual a natureza das políticas a serem aplicadas. Também abordam os métodos para a monitorização da eficácia das políticas governamentais.
Práticas racistas
A carta evidencia a existência de várias práticas racistas e ilustra os factos com números sobre as desigualdades raciais na sociedade portuguesa. Um dos casos, ocorrido em 2015, é apontado por Carla Fernandes, da Afrolis - Associação Cultural.
"Um grupo de jovens do Moinho da Juventude, uma associação que já existe há cerca de 30 anos, em Lisboa, deslocou-se à esquadra de Alfragide para saber de um outro jovem que tinha sido detido – só para saber como é que as coisas estavam a correr – acabaram por ficar lá. Foram espancados e torturados”, disse Fernandes.
As desigualdades raciais, segundo afirmam as associações, vão da educação à habitação. Carla Fernandes diz que "há muito por fazer para melhorar as condições de vida dos afrodescentes em Portugal”. E, embora o racismo não tenha sido combatido, ele existe e cresceu institucionalmente: "A impunidade impera”, afirma Mamadou Ba.
As associações reúnem-se esta noite (05.12), no bairro da Cova da Moura, na periferia de Lisboa, para um balanço desta primeira etapa, estando prevista a elaboração de um caderno reivindicativo mais consistente a ser entregue ao Governo português e às organizações internacionais.
Bairro de imigrantes africanos demolido em Lisboa
O 6 de Maio, de génese ilegal, começou a ser construído na década de 1970 na Amadora, na periferia da capital portuguesa. Autarquia diz que demolições são de casas devolutas, antes habitadas por famílias já realojadas.
Foto: DW/João Carlos
Tudo começou nos anos 70
O Bairro 6 de Maio teve na sua génese barracas improvisadas erguidas nos anos 70, com a chegada dos retornados e dos imigrantes oriundos de países africanos de língua portuguesa. É um dos bairros degradados da Amadora, na periferia de Lisboa, que os seus habitantes não querem que se chame "problemático".
Foto: DW/João Carlos
No gueto às portas de Lisboa
O bairro fica a poucas centenas de metros da estação de comboio da Damaia, perto das Portas de Benfica, que confluia com o já extinto Estrela de África. É um dos aglomerados degradados do município em fase de iminente demolição. Os seus habitantes, na sua maioria cabo-verdianos e guineenses, fazem questão de o classificar como gueto nos dizeres e graffitis que preenchem as paredes.
Foto: DW/João Carlos
Viver em comunidade
Entrando na intimidade do lugar sente-se o pulsar quotidiano das gentes que vieram de África há cerca de quatro décadas e das que já nasceram em Portugal. Muitas delas, sem emprego e em situação de debilidade financeira, assumem que conquistaram o direito de viver no bairro, de preferência em comunidade. Reclamam por uma casa digna para as respetivas famílias.
Foto: DW/João Carlos
Conviver com a insalubridade
O bairro 6 de Maio é o que tem os piores indicadores de surto de doenças no concelho. A autarquia da Amadora diz estar atenta aos vários problemas de saúde pública ali existentes. Mesmo sob o fantasma da demolição, os próprios residentes já promoveram uma Feira da Saúde a favor de um bairro saudável, limpo e acolhedor.
Foto: João Carlos
A angústia de Justina
Justina Ramos, 54 anos, veio para aqui morar em 1999, na casa que lhe deixou a irmã, emigrada em França. A habitação acabou depois por ser derrubada por falta de condições. Dependente de 280 euros da reforma, teve de alugar um quarto por 200 euros para não dormir na rua. Sem outra alternativa, fez um apelo à autarquia. Vive angustiada porque não sabe se terá ou não direito a realojamento.
Foto: DW/João Carlos
As incertezas de Carlos
Aqui nasceu há 39 anos, tal como os dois filhos que ainda dependem dele. É outro dos afetados pelo plano de demolição. Carlos Fortes está inconformado com o facto de o seu filho de 18 anos não ser admitido no processo entregue na Câmara Municipal. Vive na incerteza, à espera de uma solução e da próxima carta em resposta à sua reclamação.
Foto: DW/João Carlos
“Trançar” a beleza de portas abertas
Enquanto não cairem as paredes da casa onde vivem desde que nasceram, Paula (sentada) e Sandra (de pé) mantêm as portas abertas à clientela que queira fazer tranças. Uma fonte de rendimento para a família. Aos fins de semana, a afluência é maior por parte de jovens, adultos e crianças que recorrem ao salão improvisado. São elas que arranjam o cabelo às meninas antes do início da semana de aulas.
Foto: DW/J. Carlos
Improvisos
Cada espaço é aproveitado como cada um entende, conforme impõem as necessidades de sobrevivência. Quem não tem uma máquina elétrica para secar a roupa improvisa um cordel como se faz nos quintais em África, aproveitando os benefícios da energia solar.
Foto: DW/J. Carlos
Homenagem a Musso
Os habitantes deram o nome de "Largo Too Sexy" a esta espécie de praceta, centro dos principais eventos e de convívio como a "festa de 6 de Maio", que este ano não se realizou. O mural em graffiti representa a homenagem dos habitantes do bairro a Musso, jovem de 16 anos de idade morto numa intervenção policial, em 2013.
Foto: DW/J. Carlos
Espaço cultural: a marca do bairro
Este é um dos rostos e uma das portas de entrada para o bairro, igualmente ponto de concentração e de encontro com amigos e visitantes. Aqui ainda nascem ideias e projetos de utilidade para os residentes, aparentemente pouco preocupados com a demolição que decorre há já dois anos. Aberto de segunda a sexta-feira, alberga atividades culturais diversas, muitas delas organizadas pelo Centro Social.
Foto: DW/J. Carlos
Baralhar as cartas
O estabelecimento de Helena, ao lado do Espaço Cultural – uma sui generis combinação de bar, café e mercearia –, é outro lugar partilhado pelos jovens, tanto para ver partidas de futebol europeu, como os jogos da Liga ou da Taça portuguesas. O animado jogo de cartas acaba por ser também um motivo para atração de potenciais clientes. O negócio vai de vento em pompa, sobretudo no final do mês.
Foto: DW/J. Carlos
Equipamento social em risco
Central é o trabalho comunitário prestado à população pelo Centro Social, dirigido pela irmã Deolinda. A instituição, gerida pelas Missionárias Dominicanas do Rosário, acolhe crianças da creche e do pré-escolar, na sua maioria de origem africana. O futuro é ainda uma incógnita, diz a irmã Deolinda, que aguarda por uma decisão da presidente da Câmara Amadora sobre o destino do Centro.