Moçambicanos apanham o comboio para evitar ataques
Amós Fernando (Tete)
24 de novembro de 2016
A estação dos Caminhos de Ferro de Moçambique na vila de Moatize, no centro do país, regista um fluxo de pessoas fora do normal. Os passageiros preferem esperar e apanhar o comboio a viajar pela estrada.
Publicidade
A estação está apinhada de gente com destino às províncias de Sofala, Zambézia, Nampula e Cabo Delgado.
Enquanto o comboio não parte, alguns passageiros aguardam deitados no chão, outros acomodam-se nos bancos ali existentes. Muitos preferem esperar aqui e apanhar os comboios da linha de Sena a viajar pelas estradas, onde é preciso aguardar durante horas por escoltas militares, correndo-se mesmo assim o risco de ser atacado por homens armados.
"Há mais segurança no comboio do que nas estradas", diz Ana Biquiane, que viaja para a Beira, na província de Sofala. "É melhor ir segura do que correr riscos."
Com os confrontos entre as forças governamentais e os homens armados do maior partido da oposição, a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), o número de passageiros aumentou, e os Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM) introduziram uma nova carreira. Há agora comboios para a Beira duas vezes por semana, a partir da vila de Moatize - à quarta-feira e ao domingo.
As locomotivas para a cidade moçambicana costumam ir cheias, segundo um agente dos CFM. Também levam consigo passageiros que vão para as províncias da Zambézia, Nampula e Cabo Delgado, que descem na vila de Caia, de onde seguem de autocarro para os seus destinos finais.
Alexandre José vai para Nampula. Conta que também está "a fugir aos ataques, porque de Changara a Vanduzi há coluna [de carros com escoltas militares], tal como de Inchope a Caia."
O jovem prefere o comboio ao automóvel, porque, atualmente, com escolta militar, a viagem não demora muito mais do que o percurso de carro, e é mais segura. De Moatize a Caia, o comboio demora cerca de onze horas.
Viagem desgastante
Eduardo Remígio é funcionário público. Trabalha e mora na vila de Changara, a sul da província de Tete, e é natural de Mocuba, na Zambézia. Por isso, faz com frequência as rotas Changara-Tete, Tete-Moatize, Moatize-Caia e Caia-Mocuba.
24.11.16 neu comboios Tete - MP3-Mono
As viagens de comboio são desgastantes, diz. "Se pudéssemos usar os transportes inter-provinciais seria melhor."
António Andissene concorda. O passageiro, de 74 anos, vai para Dondo, na província de Sofala, e considera a viagem um sofrimento. "É o sofrimento do povo", desabafa.
Só o Governo pode parar a guerra, afirma António. Mas "como vejo as coisas, a guerra não vai acabar, porque está no gabinete", lamenta.
Em Maputo, representantes da RENAMO e do Governo da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) debatem formas de pôr termo à tensão político-militar. Mas as negociações não têm fim à vista.
Gonçalo Mabunda: a arte pacífica das armas
O artista moçambicano Gonçalo Mabunda transforma armas em objetos de arte para promover a paz no país. Mabunda recolhe as armas usadas em 16 anos de guerra civil para criar máscaras e cadeiras.
Foto: R. da Silva
Artista universal
Gonçalo Mabunda começou a trabalhar no meio artístico da capital moçambicana, Maputo em 1992. Na altura colaborava no Núcleo de Arte como assistente de galeria. Hoje expõe a sua arte em todo o mundo, tendo passado com as suas obras por cidades como Tóquio, Londres e Düsseldorf. Por onde passo,: “as pessoas quando vêem estes trabalhos ficam curiosas" e entusiasmadas, conta.
Foto: R. da Silva
Tronos irónicos
A oficina está cheia de restos de espingardas, AK-47, rockets e cadeiras feitas com recurso a estes artefatos. No seu site online, Mabunda diz que os tronos - uma das suas imagens de marca - funcionam como atributos do poder, símbolos tribais e peças tradicionais de arte étnica africana. São ainda um comentário irónico à experiência de violência que viveu em criança na guerra civil moçambicana.
Foto: R. da Silva
Recolha de material
Em 1995, o Conselho Cristão de Moçambique lançou o projecto "Transformar Armas em Enxadas". O projeto continua a ser um dos fornecedores do material de que o artista precisa para criar as suas peças. Mas hoje em dia, contou Mabunda à DW África "também consigo comprar artefactos de guerra já destruídos" na sucata.
Foto: R. da Silva
Arte com assistência
Gonçalo Mabunda precisa de assistentes para completar as suas obras. O material bélico desativado exige um tratamento especial para poder ser trabalhado artisticamente. Mabundo orienta os seus ajudantes. Mas acrescenta que também troca ideias com eles, criando uma obra conjunta. Algo que, na sua opinião, os políticos também deviam fazer.
Foto: R. da Silva
A cara da guerra
O artista conta que muitas pessoas ficam impressionadas com a capacidade de transformar em arte positiva material usado para semear a morte e a miséria. Como ainda acontece em Moçambique hoje. Mabunda não poupa críticas aos governantes: "Estamos perante uma situação em que apenas um grupinho de pessoas é que decide sobre como é que queremos viver.”
Foto: R. da Silva
A cara da guerra
A situação de conflito que o país atravessa novamente preocupa o artista: “Foram 16 anos de guerra e 22 de paz. Quem nasceu em 1992 vivia em liberdade. E agora nem sei explicar como voltámos a esta situação.” Talvez por isso as máscaras que produz com o material de guerra tenham um ar mais assustado do que assustador.
Foto: R. da Silva
As armas falam de paz
As armas também podem falar de paz. Pelo menos aquelas que passaram pelas mãos de Mabunda. As máscaras que cria exprimem o horror da matança. O percurso de Mabunda passou pela África do Sul, mais precisamente Durban, graças à ajuda do artista sul-africano, Andreies Botha. Aos 18 anos, Mabunda teve a possibilidade de ali fazer um curso de metal e bronze, como contou ao semanário português Expresso.
Foto: R. da Silva
Reconhecimento internacional
Nascido em 1975, Mabunda trabalha como artista a tempo inteiro desde 1997. Optando por reciclar material bélico criou um estilo muito próprio, hoje reconhecido em todo o mundo. Sobreposta à arte está a mensagem de promoção da paz, num país em que as armas que falam da guerra ainda não se calaram.