"É preciso remover a norma da corrupção em Moçambique"
26 de agosto de 2019
À DW África, a ativista social Fátima Mimbire diz que governantes devem começar a agir por exemplo e mostrar que a corrupção não é mais tolerada. Em relatório, Governo reconhece falhas no combate à corrupção sistémica.
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No "Relatório sobre Transparência, Governação e Corrupção", elaborado pelo Executivo moçambicano, o Governo reconhece as falhas existentes na estratégia de combate à corrupção no país.
"O Estado de Direito é enfraquecido pela fraca aplicação das leis e regulamentos existentes e, nalguns casos, pela ausência de regulamentação e de orientações explicativas necessárias", diz o documento de 50 páginas.
"É preciso remover a norma da corrupção em Moçambique"
O relatório reconhece que o quadro de governação e anticorrupção em Moçambique não é aplicado de forma consistente e completa e que a gestão da dívida pública é fraca e pouco transparente.
Em entrevista à DW África, a ativista social moçambicana Fátima Mimbire analisa as raízes do fracasso do Executivo moçambicano na luta contra a corrupção sistémica e refere que o Governo, os parlamentares e os funcionários públicos precisam enviar uma mensagem clara à sociedade de que a corrupção não será mais tolerada.
DW África: Qual é a sua avaliação sobre o relatório emitido pelo Governo?
Fátima Mimbire (FM): Creio que há uma descrição realística daquilo que é a situação do país na medida em que de facto há evidências bastantes de que há algum fracasso naquilo que é o combate à corrupção. Mais do que questões ligadas a constrangimentos de ordem financeira e técnica, há questões da própria postura, o exemplo que deve vir de cima. A forma como a nossa elite política se comporta dita muito a forma como a sociedade e os cidadãos também se vão comportar. Se os dirigentes tomam decisões em função dos seus próprios interesses, não vamos esperar que um funcionário público exerça as suas funções tendo em conta o interesse público. O documento refere que a corrupção está a transformar-se num padrão de comportamento. A sociedade não aceita ou estranha quando um indivíduo não é corrupto e tolera muito mais facilmente um indivíduo que se corrompe. É preocupante termos um documento do próprio Governo que reconhece que a corrupção vai se transformando numa norma.
Ao olhar para essas falhas, o que o Governo moçambicano precisa fazer, principalmente, em relação ao funcionamento das instituições públicas?
FM: Falha sempre a implementação, porque não há interesse que essas mesmas normas, regras e leis sejam cumpridas. Nós vemos uma tentativa de enfraquecimento das próprias instituições. É preciso lembrar que a forma como nós desenvolvemos em Moçambique o funcionamento das nossas instituições é mesmo para defender os interesses de grupos. Será que nós não podemos selecionar por concurso público ou temos que fazer por indicação política? Então, nós não vamos ter instituições a funcionar enquanto houver este controlo de quem detém o poder público. O facto de as instituições estarem controladas vai constranger qualquer responsabilização. Como é que eu vou agir para responsabilizar alguém que me nomeou?
O documento também refere que o Estado de Direito é enfraquecido pela fraca aplicação das leis e dos regulamentos existentes. É necessária uma maior atuação do Parlamento?
Sim, não haja dúvidas. O nosso Parlamento não foge muito daquilo que é a nossa arquitetura institucional. Nós não vamos ter um Estado de Direito democrático enquanto tivermos deputados na Assembleia da República que, quando chegam a hora de votar, estão a pensar nos interesses do partido que lhes colocou na lista para representar os seus interesses. Temos um Parlamento bastante fragilizado que não representa os interesses da sociedade.
São necessárias evidentemente várias mudanças. Por onde o Governo moçambicano deveria começar a agir?
Há uma norma que está dentro das próprias instituições e que tem de ser removida. E temos que começar pelo exemplo. É do interesse de quem governa controlar o Estado. Entretanto, ele não controla o Estado para o gerir, mas para manipulá-lo em função dos seus interesses. Então, é preciso mudar a ordem. Quando começarem a controlar o desempenho das pessoas, as pessoas vão perceber que a corrupção não é mais tolerada, que a incompetência não vai mais ser premiada. Não há uma liderança forte que esteja comprometida a acabar com a corrupção.
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)