Moçambique: Centenas marcham contra lixeiras a céu aberto
Leonel Matias (Maputo)
30 de junho de 2018
"Não às lixeiras a céu aberto, sim aos aterros sanitários" foram as palavras de ordem da marcha deste sábado (30.06), em Maputo, contra um "problema nacional". Participantes lembraram vítimas da tragédia de Hulene.
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O objetivo da marcha, promovida pela organização não governamental Livaningo, era sensibilizar o Governo para adotar políticas que garantam uma gestão sustentável dos resíduos sólidos.
Segundo esta organização virada para a advocacia e educação ambiental, desenvolvimento sustentável e justiça social, todos os municípios em Moçambique fazem o depósito de resíduos sólidos em lixeiras de céu aberto.
"Este é um problema nacional. Por isso, o nosso apelo é para que o Governo resolva o problema em todo o país", disse à DW África Alves Talala, gestor de programas de governação ambiental urbana da Livaningo.
Alves Talala explicou que uma das consequências desta prática é a poluição ambiental, que, para além de afetar a saúde pública, contribui para a degradação imediata e futura da vida das pessoas que vivem ao redor desses locais.
Hulene ainda presente
Os manifestantes percorreram várias artérias da cidade até à Praça da Independência, empunhando faixas e cartazes com slogans como "são 17 anos de apelos e promessas que resultaram hoje numa tragédia".
Este dístico fazia alusão ao desabamento de uma lixeira no bairro do Hulene, em Maputo, no passado dia 19 de fevereiro, que causou 17 mortos, cinco feridos e destruiu várias habitações.
Uma das participantes na marcha, Amélia Carlos, disse que ainda guarda na memória os momentos vividos naquela tragédia em que perdeu amigas e conhecidos. "Foi muito triste. O que pedimos ao Governo é que retire a lixeira, porque lá não se está a viver condignamente, devido ao cheiro e às moscas", afirmou Amélia Carlos, residente do Hulene.
Por seu turno, Nera Rupia, residente no Bairro do Ferroviário, que acolheu as vítimas da tragédia, lamentou, igualmente, que o Governo não esteja a cumprir com a promessa de retirar a lixeira do Hulene. "O Governo havia dito depois da tragédia de Hulene que dentro de dois meses iria encerrar a lixeira, mas, até agora, não há nenhum avanço", explicou Alves Talala, acrescentando que "a construção do novo aterro sanitário, em Mathemele, também está parado".
Talala lembrou ainda que o Governo prometeu reassentar num período de três meses as pessoas afetadas pela tragédia "com todas as condições de vida", mas não há nenhum avanço.
Marracuene não quer lixeira
Um dos objetivos da marcha era precisamente manifestar solidariedade para com as vítimas da lixeira de Hulene e exigir ao Executivo maior celeridade e transparência no processo de transferência das famílias afetadas.
As autoridades admitem a possibilidade de transferir a lixeira de Hulene para o distrito de Marracuene. Porém, os residentes dizem que não aceitam esta transferência e adiantam que manifestaram a sua posição ao Governo há 90 dias, estando ainda a aguardar resposta.
Vasco Axá, ambientalista residente em Marracuene, lamenta que as comunidades não estejam a ser envolvidas na adopção de políticas sobre a gestão dos resíduos sólidos e acusa o Governo de trabalhar sozinho.
Vasco Axá defende a disseminação de boas práticas e ainda a sensibilização das comunidades sobre o saneamento do meio ambiente, e como gerir os resíduos sólidos, tendo em conta que metade do lixo em Moçambique é biodegradável.
Mas, para Alves Talala, da Livaningo, enquanto "o Governo não começar a levar a sério a questão da construção de aterros sanitários, podemos ter mais vítimas".
Um mundo à parte: a lixeira de Hulene
Em Moçambique, os resíduos sólidos urbanos são depositados em lixeiras a céu aberto, tal como acontece em Hulene, nas proximidades do Aeroporto de Maputo. Isto causa diversos problemas ambientais e sociais.
Foto: DW/Marta Barroso
Resíduos sólidos sem tratamento adequado
Em Moçambique, os resíduos sólidos urbanos são depositados em lixeiras a céu aberto, tal como acontece em Hulene, nas proximidades do Aeroporto de Maputo. Este modelo de gestão do lixo traz consigo graves problemas de diversa ordem. Entre outros a possível poluição do ar, da terra e da água. A queima descontrolada dos resíduos também causa maus cheiros e problemas respiratórios na vizinhança.
Foto: DW/Marta Barroso
Cidades cheias
Desde a independência, a urbanização em Moçambique tem sido rápida e desordenada. Em meados dos anos 1970, nem 10% da população residia em zonas urbanas. A guerra civil empurrou comunidades inteiras para os centros urbanos. Hoje, o número de citadinos é quatro vezes mais alto e em 2025, calcula-se, mais de metade dos moçambicanos viverá em zonas urbanas. Aumentam os problemas com o lixo.
Foto: DW/Marta Barroso
Crescimento desordenado
Em Maputo, o custo de vida aumentou de tal forma que muitos se viram empurrados para a periferia e a cidade foi-se espalhando de forma desordenada. Tal como noutras zonas urbanas, o crescimento da capital não foi acompanhado por serviços públicos. Uma das áreas com graves deficiências é o tratamento dos resíduos sólidos urbanos.
Foto: DW/Marta Barroso
Invisíveis perante a lei
Mais de metade da população ativa de Moçambique trabalha no sector informal. Também em Hulene, a lixeira é, para muitos residentes do bairro, a única fonte de rendimento. Lá dentro, os catadores são tolerados, mas para lá dos muros, permanecem à margem da sociedade que os vê como gente falhada. Excluídos das políticas e estratégias nacionais, os catadores permanecem invisíveis aos olhos da lei.
Foto: DW/Marta Barroso
Poucos avanços na separação do lixo
A Política Nacional do Ambiente, de 1995, define a gestão do ambiente urbano e a gestão de resíduos domésticos e hospitalares como prioridade de intervenção, visando melhorar o sistema de coleta, tratamento e deposição de lixo. Mas apesar de esta legislação ter sido adotada há quase vinte anos, poucos avanços se fizeram na separação do lixo.
Foto: DW/Marta Barroso
Lugar de tudo
De tudo um pouco se procura, se reforma e se vende em Hulene: restos de comida, alimentos enlatados fora do prazo, retirados dos supermercados da cidade, objetos de ferro, alumínio, latão e estanho, fio de cobre de eletrodomésticos avariados, garrafas de vidro e plástico, madeira, cartão, papel, pedras, filtros de cigarro, mobília danificada, algodão, borracha, lixo hospitalar e informático.
Foto: DW/Marta Barroso
Sem espaço para reciclagem
Em Moçambique, a reciclagem é feita de forma muito limitada, normalmente no âmbito de projetos ou iniciativas individuais. Um entrave à promoção da reciclagem no país prende-se com a escassez de indústrias que usem material reciclado e, consequentemente, a escassez de mercados para a sua compra. Muitos materiais têm de ser exportados, daí que este ainda não seja um negócio sustentável.
Foto: DW/Marta Barroso
Recicla, Fertiliza e Amor
Apesar disso, há alguns projetos de reciclagem no país. Recicla, Fertiliza e Amor são alguns exemplos. O primeiro produz paletes de plástico para venda em fábricas locais de utensílios domésticos, o segundo faz adubo a partir de lixo orgânico e o último compra lixo reciclável em ecopontos na capital, Maputo.
Foto: DW/Marta Barroso
Encerramento adiado
A última previsão de encerramento da lixeira marcava o ano de 2014 como prazo para transformar Hulene em espaço verde. Agora diz-se que a lixeira só será encerrada depois de construído um aterro sanitário que deverá ser partilhado tanto pela cidade de Maputo como pela vizinha Matola e custará aos dois municípios, ao Governo e a doadores mais de 20 milhões de dólares.
Foto: DW/Marta Barroso
E o lixo aqui continuará
Até a lixeira de Hulene ser encerrada, o lixo continuará a acumular-se aos montes. Montes que, segundo o Conselho Municipal de Maputo, chegaram já a atingir os 15 metros de altura. Mesmo depois de fechada, a decomposição dos resíduos aqui depositados ao longo de tantas décadas irá levar muitos anos.