Segundo Edson Cortez, com o assumir da culpa dos bancos envolvidos no caso das "dívidas ocultas", torna-se díficil para a defesa dos réus em julgamento em Moçambique provar que este foi "um negócio transparente".
As duas instituições financeiras acordaram, em 2013 e 2014, emprestar mais de 2 mil milhões de dólares às empresas ProIndicus, Ematum e MAM, numa operação que teve a empresa Privinvest como principal pivot.
Edson Cortez, diretor-executivo do Centro de Integridade Pública (CIP), diz agora que está na hora de Moçambique tomar medidas para reaver esse dinheiro e receber uma compensação pelos danos causados ao Estado. Porque uma coisa está à vista de todos, refere Cortez: "O principal objetivo" do Estado moçambicano foi "esconder o envolvimento de todo um grupo que faz parte do regime" e, com o assumir de responsabilidades do VTB e do Credit Suisse, "a defesa dos arguidos que estão a ser julgados em Moçambique fica mais fragilizada".
DW África: Afinal, o CIP tinha razão quando advogava que os moçambicanos não deveriam pagar as "dívidas ocultas"?
Edson Cortez (EC): Acho que, para os moçambicanos que ainda tinham algumas dúvidas, fica claro que estas dívidas não são para nós pagarmos. Há pessoas que são responsáveis por elas e devem pagá-las, não o povo moçambicano. Bem recentemente, nós, CIP, publicámos um relatório e mostrámos que estas dívidas já tinham custado à economia do nosso país, entre 2016 e 2019, cerca de 11 mil milhões de dólares norte-americanos, muito mais que o valor contraído por estas empresas.
DW África: Como é que Moçambique pode fazer com que as pessoas que contraíram estas dívidas as paguem, sendo que o próprio Estado se assumiu no mercado internacional como avalista das mesmas?
EC: A forma como o Estado moçambicano correu para assumir, por exemplo, a dívida da Ematum mostra que o problema destas dívidas não é um problema do Governo do ex-Presidente Armando Guebuza. Estas dívidas são o reflexo da podridão do regime político que governa Moçambique. O regime correu para tapar o sol com a peneira e para apresentar o Estado como avalista das dívidas, sem querer perceber as reivindicações que eram feitas, não só pela sociedade civil, como também pelos diferentes atores da sociedade que já tinham sérias dúvidas sobre este negócio. A maior preocupação do Estado moçambicano foi garantir que os credores não saíssem prejudicados. Isto mostra, de facto, que o principal objetivo era tentar esconder das pessoas o envolvimento de todo um grupo que faz parte do regime.
DW África:Esta revelação do VTB, assim como do Credit Suisse, mostra que não há crimes perfeitos?
EC: Eu acho que eles cometeram um erro grave, que foi tentar defraudar investidores norte-americanos. Eventualmente, se tivessem defraudado investidores chineses, a China poderia vir cá e dizer "olha, não vamos fazer barulho sobre este assunto, mas o vosso mar está hipotecado até que me paguem a dívida". Nos Estados Unidos a história foi diferente, e por via disso foram acionados mecanismos legais.
Veja imagens da audição de Ndambi Guebuza
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DW África: Poderá estar aberta alguma janela para Moçambique reclamar que já não vai pagar as dívidas? Até porque as próprias entidades que emprestaram dinheiro reconhecem que houve falhas…
EC: Eu julgo que sim. Há espaço para o país reivindicar ou não o pagamento das dívidas e também uma justa compensação pelos danos causados. Porém é preciso notar que não se dança o tango sozinho, são precisas duas pessoas…
DW África: Ou seja…
EC: O Credit Suisse não atuou sozinho. Para atuar, precisou da Privinvest e do Governo de Moçambique para lhe dar garantias para o negócio. Por isso, neste momento, acho também que, se disserem que o Credit Suisse tem de compensar Moçambique, é legítimo que este diga "ok, posso até compensar, mas não fui o único que beneficiei do teu calote". A Privinvest deve também compensar, assim como as elites moçambicanas, que também beneficiaram, e muito, desse calote.
DW África: Isto significa que, para o Estado moçambicano se poder ver livre destas dívidas, há ainda muito em jogo?
EC: Uma das coisas que vai acontecer, na minha opinião, é que a defesa dos arguidos que estão a ser julgados aqui em Moçambique fica mais fragilizada. Porque se o Credit Suisse, que era um dos grandes "players" para se perceber toda esta engenharia que levou a esta grande fraude, já [assumiram a culpa], não me parece que haja elementos para que se possa considerar que tenha sido um negócio transparente. Isso só reforça as suspeitas da Procuradoria-Geral da República.
Julgamento das dívidas Ocultas: "Outras coisas..."
O julgamento do caso das dívidas ocultas revela aos poucos mais informações sobre o que muitos consideram o maior escândalo de corrupção de Moçambique. Conheça as peculiaridades do caso e dos seus personagens.
Foto: Fotolia/Carlson
O caso
O escândalo das dívidas ocultas veio ao de cima entre 2013 e 2014. É a maior fraude financeira de Moçambique e prejudicou a nação e a imagem do país. Em causa estão cerca de 2 mil milhões de euros. O esquema tem como "cabeças" altos funcionários do Estado e trabalhadores de bancos como o Credit Suisse. O julgamento começou a 23 de agosto e conta com 19 arguidos, 70 testemunhas e 69 declarantes.
Foto: Roberto Paquete/DW
Julgamento nas instalações de uma cadeia
A falta de capacidade para albergar muita gente terá levado o Tribunal Judicial da Cidade de Maputo a optar pelo Estabelecimento Penitenciário Especial de Máxima Segurança da Machava para o julgamento. E é na B.O., como é conhecida a cadeia, onde estão detidos a maioria dos envolvidos no caso. Alguns dos julgamentos mais mediatizados do país costumam acontecer aqui.
Foto: Romeu da Silva/DW
Juiz da causa é de índole duvidosa?
Efigénio Baptista não tem percurso profissional imaculado, foi julgado e condenado duas vezes por ameaças e ofensas corporais num caso de abuso de poder em Manica. Também terá sido alvo de contestação popular em Sofala, que culminou com a queima da sua casa. Alguns setores questionam a escolha do juiz, defendem que deveria ter sido escolhido um juiz sénior para o caso. O "juiz júnior" tem 42 anos.
Foto: Romeu da Silva/DW
"Alérgico a corrupção" e sujeito a pressão
Sobre as condenações, o juiz Efigénio Baptista, numa entrevista ao "O País" esclareceu: "Mas eu recorri da decisão e o Tribunal de Recurso da Beira anulou-a. Por isso, eu não tenho cadastro criminal". Baptista terá estado ainda sob pressão por ser o juiz do caso mais "cabeludo" do momento. A imprensa moçambicana chegou a noticiar sobre possíveis ameaças ao juiz.
Foto: Romeu da Silva/DW
Ordem dos Advogados em representação do povo
A Ordem dos Advoagados de Moçambique (AOM) intervém no julgamento na qualidade de assistente e pretende auxiliar o Ministério Público. O objetivo é assegurar que o povo moçambicano seja informado, atualizado e esclarecido sobre os contornos do processo. São sete representantes, entre eles os ex-bastonários Gilberto Correia e Flávio Menete.
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Bendita seja a mulher entre os homens...
Ana Sheila Marrengula é representante do Ministério Público no julgamento. É a única mulher entre o jurado, o que desencadeou queixas de falta de inclusão. É apreciada pelas suas questões consideradas pertinentes, mas igualmente criticada pelos seus modos pouco profissionais de questionar os réus. Pede indemnização civil ao Estado de cerca de três mil milhões de dólares acrescidos de juros.
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O uniforme da discórdia
No primeiro dia do julgamento os réus não se apresentaram de uniforme prisional, como é prática no país e conforme solicitação do juiz. A defesa contestou a exigência, alegando que a lei não obriga a isso, mas no final valeu a ordem de Efigénio Baptista que defende "tratamento igual" entre os presos. Na terça-feira (24.08) a cor laranja dominava a sala de audiências na B.O.
Foto: Romeu da Silva/DW
Alexandre Chivale, um advogado (in)suspeito?
Advogado da família Guebuza é a "sensação" entre os causídicos. Para além da sua postura destemida, e até entendida como de afronta, Chivale marcou o primeiro dia do julgamento. É que é administrador da Txopela, empresa suspeita do seu constituinte, Carlos do Rosário. E mais: ocupa uma das casas supostamente adquiridas com o dinheiro do calote. Tribunal deu-lhe 72 horas para deixar o imóvel.
Foto: privat
A memória curta de Cipriano Mutota
Foi a estreia do banco dos réus. Mutota revela que foi traído pelos seus parceiros do negócio na partilha dos "lucros" e não ficou contente. E não se lembra do destino dado a cerca de 656 milhões de euros que terá recebido como "luvas". O ex-diretor do Gabinete de Estudos da secreta praticamente confirmou a acusação do Ministério Público. Diz que Nyusi e Guebuza aprovaram o projeto.
Foto: Romeu da Silva/DW
Manuel Chang regressa no momento "H"
Justamente no dia do arranque do julgamento, a África do Sul anunciou a tão esperada extradição de uma das peças chave do crime, Manuel Chang. O juiz decidiu que o ex-ministro das Finanças será ouvido "na qualidade de declarante, quando estiver no território nacional", em resposta ao pedido da Ordem dos Advogados de Moçambique e reafirmado pelo Ministério Público e pelos advogados dos 19 arguidos.
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O "massagista" do sistema
Foi o lobista do negócio entre o Estado e a Privinvest, identifica-se como facilitador. Num dos emails trocado com a Privinvest mencionou uma "massagem ao sistema", mas no julgamento negou. Recebeu de Jean Boustani cerca de 8,5 milhões de dólares e recusa-se a devolver o valor, alegando que é resultante do seu trabalho. É visto como astuto, embora se tenha destacado por contradições no tribunal.
Foto: Romeu da Silva/DW
A amnésia da "cinderela"
É o terceiro réu a sentar-se no banco. Ndambi é filho do ex-Presidente Armando Guebuza é foi apelidado de cinderela pelos seus parceiros de negócios por ser lento a agir. Terá recebido 33 milhões de dólares de luvas de Jean Boustani, negociador da Privinvest. Não se recorda de quase nada que é questionado pelo juiz, diz que não tem memória de elefante. Foi um dos pivôs no tráfico de influência.