Quanto vale uma miséria no mercado internacional? Muito dinheiro que alimenta uma cadeia. Sociólogo fala em perversão da ajuda ligada à burocracia internacional. E há consequência para os países pobres: a dependência.
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Os ciclones Idai e Kenneth que devastaram o centro e norte de Moçambique este ano trazem a ribalta questionamentos sobre o lado obscuro da ajuda humanitária internacional: Quanto vale uma miséria no mercado das contribuições? O que se pede em nome de um país? Quanto beneficia no final o necessitado e quanto é usado para salários e outros custos relativos aos expatriados que vão dar apoio? As respostas levam a sistematização do que se denomina de indústria da ajuda humanitária.
Silvestre Baessa trabalha na área da ajuda ao desenvolvimento e entende que "esta é uma indústria que sobrevive muito da incapacidade ou das grandes limitações, sobretudo os Estados do terceiro mundo, nas suas limitações em responder a situações dessa natureza e tudo indica que essas limitações de capacidade vão continuar por muito anos."
E lembra que "até porque na grande maioria dos países esta questão de prevenção, etc, não está ainda no centro da agenda de desenvolvimento desses países."
Mas do outro lado da moeda estão os governos dos chamados países em desenvolvimento. Tem sido prática de alguns potencializar as desgraças para angariar apoios. No caso de Moçambique, Baessa recorda que a tendência, desde os anos oitenta, tem sido de redução. Mas o hábito de estender a mão ainda está longe de ter terminado.
"O maior desafio é político e não técnico"
Será que a ajuda humanitária limita os esforços dos governos, incluindo o moçambicano, de lutar por soluções?
O sociólogo Elísio Macamo acredita que, na verdade, falta é outra coisa: "Em algum momento temos de ter presença de espírito suficiente no nosso país para assumirmos os nossos problemas e é aqui onde precisamos de ajuda."
O académico identifica o problema: "Para mim o maior desafio é político, não técnico e nós temos que formular este problema para aqueles que nos querem ajudar para podermos manter uma certa autonomia na forma como tentamos resolver este problema."
Mas soberania só tem quem consegue dar conta dos seus assuntos. E ainda não é o caso de Moçambique, os ciclones vieram expor a incapacidade das instituições do Estado de responder ao desastres.
A cidade da Beira, uma das mais afetadas pelo ciclone Idai, transformou-se num acampamento de ONGs e os seus voluntários bem intencionados, e com elevado espírito de humanismo, deram o apoio que foi vital. E tudo ficou mais caro, os hotéis estavam lotados, surgiram oportunidades de negócios temporários, para alimentar esse ciclo. Mas foi tudo temporário, não proporcionaram reais oportunidades para os locais. Mas são essas ONGs que pedem fundos em nome de carenciados.
Há interesse em travar a "perversão" da ajuda humanitária?
Angariadores de fundo profissionais
Silvestre Baessa lembra que "as indústrias têm profissionais, as ONGs internacionais muitas delas se profissionalizaram e, portanto, são uma fonte de sustento para essas ONGs."
Baessa também sublinha a responsabilidade dos governos: "Mas o grande desafio está também do lado do recetor da ajuda, como os Governos que estão expostos a essas situações e se reorganizam para reduzir o efeito dessa indústria, porque ela sobrevive porque efetivamente há carências muito grandes em países expostos a essa situação."
O caso da Organização Mundial da Saúde (OMS), que pertence às Nações Unidas mas também vive de contribuições, é exemplo de um mau uso de fundos coletados em nome de necessitados. A organização terá gasto cerca de 192 milhões de dólares em despesas com viagens em 2018, de acordo com a agência de notícias AP (Associated Press). Alguns funcionários terão viajado em classe executiva, violando regras internas sobre deslocações.
A perversão da ajuda ligada à burocracia internacional
Mas de uma forma geral, o sociólogo Elísio Macamo entende que o ciclo vigente visa essencialmente manter um sistema externo e não resolver os problemas: "Há uma burocracia internacional que vive disso. O principal problema é que há um processo de transformação de perversão do processo de ajuda que está muito ligada a esta burocracia internacional. E essa perversão consiste em, transformar esse tipo de situação em razão para a reprodução dessa burocracia."
E Macamo entende que os objetivos não são os que se enunciam: "Então, nós estamos aqui num ciclo vicioso muito perverso, em que este tipo de situação pode ser utilizada, menos para resolver os problemas, de facto, e mais para garantir a reprodução dessa burocracia internacional."
Decorre de 31 de maio a 1 de junho na cidade da Beira a conferência de doadores. Estima-se que Moçambique precisa de 3,2 mil milhões de dólares para a reconstrução. As autoridades deverão "estender a mão" e assim contribuir para carburar a chamada indústria da ajuda humanitária...
No interior do hospital de campanha de Macurungo na Beira
As estruturas do centro de saúde que é referência no atendimento de cerca de 35 mil pessoas na região foram severamente danificadas com a passagem do ciclone Idai. Hospital de campanha já atendeu dois mil pacientes.
Foto: DW/F. Forner
A rotina
O hospital de campanha nos arredores do centro de saúde Macurungo, na Beira, está a funcionar desde 24 de março. "Montamos um centro médico avançado com uma tenda para cirurgia e consultas, além de mais duas tendas para avaliação pós-parto das mães", descreve a médica infectologista Telma Susana Vieira Azevedo, que liderou por dois meses a equipa da Cruz Vermelha em Macurungo.
Foto: DW/F. Forner
Um passeio pelas tendas em Macurungo
Um enfermeiro da equipa da Cruz Vermelha caminha pelas tendas de lona do hospital de campanha gerido em parceria com a ONG Médicos do Mundo. Já foram realizadas mais de duas mil consultas, além de uma média de sete partos diários. Este hospital é referência no atendimento de 35 mil pessoas na região, onde as condições habitacionais ficaram muito debilitadas após a passagem do ciclone Idai.
Foto: DW/F. Forner
No interior do hospital destruído
A noite de 14 de março na Beira foi marcada pelos fortes ventos que arrancaram telhas, chapas e coberturas das casas e edifícios públicos. O hospital de Macurungo sofreu sérios danos estruturais. Mesmo assim, algumas áreas do edifício continuam a ser utilizadas. “Nosso objetivo é conseguir reconstruir o centro de saúde e só depois deixar a Beira”, diz a médica Telma Susana Vieira Azevedo.
Foto: DW/F. Forner
Balanço pós-Idai
Segundo dados do fundo de redução de desastres do Banco Mundial (GFDRR), Moçambique ocupa a terceira posição no ranking de países africanos mais expostos a múltiplos riscos associados às mudanças climáticas, como ciclones periódicos, secas, inundações e epidemias. Esta foto mostra o coração do hospital de campanha montado em um dos bairros que mais carecem de atenção à saúde.
Foto: DW/F. Forner
Os grandes desafios de Beira
Esta é uma foto aérea do hospital de campanha em Macurungo na Beira. Além da reestruturação de hospitais, as cidades afetadas pelo ciclone Idai também encaram os desafios de reconstrução de moradias, escolas e das infraestruturas urbanas. A ONU estima que o país necessite de pelo menos 200 milhões de dólares de ajuda internacional nestes três primeiros meses pós-ciclone.
Foto: DW/F. Forner
O estoque de medicamentos
Além de servirem como consultórios e locais de operação, algumas tendas do hospital de campanha foram construídas para armazenar equipamentos, medicamentos e demais suprimentos médicos. Nesta foto, o médico Luís Canelas opera um dos computadores que realiza exames de ultrassonografia. O hospital de campanha também realiza exames laboratoriais, como exames de sangue e testes de malária.
Foto: DW/F. Forner
Apoio à população
Em momento de descanso, o enfermeiro da Cruz Vermelha de Cabo Verde Mariano Delgado brinca com uma das pacientes no pátio externo. Estima-se que cerca de 400 mil crianças foram afetadas. "Precisamos fazer um trabalho mais ativo de equipas móveis para ir às populações deslocadas", diz Michel Le Pechoux, representante adjunto do UNICEF em Moçambique.
Foto: DW/F. Forner
Pulverização contra a malária
Homens uniformizados com luvas e protetores fazem a pulverização contra a malária em casas nas ruas de Búzi, a 150 km ao sul da Beira. Os casos de malária aumentaram e um mutirão tenta conter a proliferação do mosquito transmissor.
Foto: DW/F. Forner
Cadastro de pacientes
Esta é a tenda de triagem onde os pacientes são recebidos para a marcação de consultas. "Recebemos pacientes com doenças crónicas, hipertensão, doenças cardiovasculares e parasitárias, bem como pacientes que sofrem de desnutrição e portadores do VIH/SIDA", explica a infectologista da Cruz Vermelha portuguesa Telma Susana Vieira Azevedo.
Foto: DW/F. Forner
À espera de consultas
As salas de espera no centro de saúde Macurungo ficam diariamente superlotadas com pacientes que sofrem das mais variadas doenças. O cólera está sob controle, mas os casos de malária estão a ser acima do habitual. "As chuvas fazem com que haja poças d’água que são óptimas para a proliferação dos mosquitos havendo mais vetores para transmitir a doença", diz a infectologista Telma Susana Azevedo.
Foto: DW/F. Forner
Atendimento
Esta é uma das tendas do hospital de campanha Macurungo destinada às consultas médicas e atendimento aos pacientes. Nesta foto, o doutor Miguel e o enfermeiro de Cabo Verde Mariano Delgado dividem o espaço realizando atendimentos e curativos.
Foto: DW/F. Forner
Nos bastidores
Num momento de descanso após o almoço, estes três profissionais de saúde aproveitam a pausa no início da tarde antes de continuar com os atendimentos. Esta sala com macas também serve de refeitório e sala de reuniões. As equipas de médicos, enfermeiros e pessoal de apoio técnico trabalham diariamente sem cessar e se revezam a cada três semanas.