O apoio militar anunciado pelos EUA levanta preocupações, não só em Moçambique. Em entrevista à DW, a especialista em contraterrorismo Jasmine Opperman considera este o caminho errado para pacificar Cabo Delgado.
Publicidade
As Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos iniciaram esta segunda-feira (15.03) um programa de formação de dois meses para reforçar a capacidade dos militares moçambicanos no combate aos insurgentes que têm protagonizado ataques em Cabo Delgado, no norte do país.
Na semana passada (10.03), o Departamento de Estado norte-americano também designou como terroristas a organização ISIS-Moçambique, também conhecida como Ansar al-Sunna, e o seu líder Abu Yasir Hassan.
Na vertente geoestratégica, Jasmine Opperman, investigadora do ACLED, plataforma norte-americana de análise de conflitos armados, entende o apoio dos EUA como um "verdadeiro passo para expansão da sua influência e presença" em Moçambique. Em entrevista à DW África, a especialista em contraterrorismo diz recear uma militarização de Cabo Delgado excessiva e contraproducente.
DW África: O facto de os EUA terem categorizado o ISIS-Moçambique como organização terrorista internacional vai lhes dar o poder de interferir na gestão interna da crise em Cabo Delgado?
Jasmine Opperman (JO): O que estamos a ver com a designação pelos EUA é verdadeiramente um primeiro passo para expandir a sua influência. E não apenas influência, mas também presença em termos de treino e o que se seguirá a isso. Não só em Moçambique, como também na República Democrática do Congo. Embora a Tanzânia não tenha sido mencionada, incluo também este país. É uma clara tentativa dos EUA se enraizarem em Moçambique e em vários países de África.
DW África: Esta classificação do grupo ISIS-Moçambique pode ofuscar as origens internas do conflito?
JO: Antes de mais, acho que foi uma grande surpresa ver os Estados Unidos anunciar o ISIS-Moçambique. Mesmo que tenha sido feita referência ao líder, há questões em aberto. Será ele [o tanzaniano Abu Yasir Hassan] o líder da insurgência? mas não concordo. Penso que dizer que se trata de um único líder é uma total simplificação. É a internacionalização de Cabo Delgado, ignorando as raízes locais do problema em causa. E ao dizer isto não estou a negar a voz dos extremistas. Mas isso dá um estatuto ao Estado Islâmico em Moçambique que este não tem. A preocupação agora é que a narrativa americana está a apoiar a narrativa do Governo de Moçambique, que não quer reconhecer as origens locais [do problema]. Por isso, é bem provável que vejamos - e o risco é extremamente alto - a população de Cabo Delgado e toda a insatisfação local serem negligenciadas.
DW África: Então, a soberania usada como escudo pelo Governo moçambicano para impedir a entrada estrangeira no país, cai?
JO: Por enquanto, não vejo Moçambique recuar na sua posição em termos de tropas estrangeiras no terreno. A enfase mantém-se no apoio ao treino militar. Mas o período de treino de dois meses previsto pelos EUA é demasiado curto para fazer qualquer diferença. Entendo que os EUA tentem expandir a sua influência e não me surpreenderia ver um aumento da presença estrangeira em Cabo Delgado.
DW África: Que contrapartidas quererão os EUA com o apoio militar que estão a dar às Forças de Defesa e Segurança?
JO: Estamos a assistir a uma política norte-americana focada no fornecimento de apoio e equipamento militar. Tal como já fez o Governo moçambicano, o objetivo é obter êxitos militares. O Iraque ensinou-nos que isto não é a solução. Mas os EUA e Moçambique vão permitir a militarização da região e a solução sustentável para as populações negligenciadas passará a ter uma importância secundária.
O desterro forçado dos deslocados em Cabo Delgado
São mais de 450 mil no norte de Moçambique. O terrorismo cortou-lhes as raízes e tomou-lhes o chão. Os deslocados internos procuram vingar noutras paragens. E Pemba tem sido lugar de eleição. Sobreviverão na nova terra?
Foto: Privat
A dor da perda e da impotência
Um olhar que diz mais do que mil palavras, a imagem poderia ser "sem legenda". Foi depois de um ataque à aldeia "Criação", Muidumbe, a primeira investida terrorista ao distrito, em novembro de 2019. Os insurgentes começaram os seus ataques em Cabo Delgado em outubro de 2017.
Foto: Privat
Histórias de vida reduzidas a cinzas
Desde então, a matança e destruição passaram a ser visitas assíduas da região. Como ninguém quer ser anfitrião, os aldeões fugiram. Em finais de outubro, Muidumbe e outros distritos sangraram de novo e a população fugiu. Muidumbe está praticamente nas mãos dos terroristas, tal como Mocímboa da Praia, desde agosto.
Foto: Privat
Quase todos os caminhos vão dar a Pemba
O único desejo destes residentes de Mueda é conseguir um canto no camião para chegar à capital provincial de Cabo Delgado. Mas a disputa entre pessoas e os seus próprios pertences ameaça deixar alguém para trás. Desde meados de outubro, Pemba recebeu cerca de 12 mil deslocados. Inicialmente, recebia à volta de mil deslocados por dia.
Foto: Privat
Quando o mato passa a ser melhor que o lar
Para muitos em Cabo Delgado, ter um teto deixou de ser sinónimo de segurança. Conseguir manter a vida, mesmo sem casa, passou agora a ser a meta. Os bichos passaram a ser mais cordiais que os irmãos terroristas, as estrelas melhores que o teto e os arbustos melhores que as paredes. Famílias procuram refúgio nas matas, onde caminham por dias dominados pelo medo, sem comida e sem norte.
Foto: Privat
Um abraço amigo em Pemba
Estes deslocados chegam de Quissanga. Mas também chegam à praia de Paquitequete, Pemba, deslocados vindos de vários lugares. Todos tentam escapar ao terror. Muitos fixam-se aqui, onde recebem apoio de ONGs, associações, indivíduos e do Governo. Há até quem abra as portas da sua casa para os receber, mesmo não os conhecendo.
Foto: Privat
Crise humanitária faz brotar solidariedade infinita
A falta de quase tudo faz despertar solidariedade que chega de todo o lado. Para quem está longe, uma angariação de fundos e bens materiais é a opção. Já cuidar dos deslocados na praia de Paquitequete, atendendo-os nas suas necessidades, é o que faz quem está no terreno. Na praia, há jovens que chegam de madrugada para dar amor a quem precisa.
Foto: Privat
Uma fuga rodeada de perigos
O medo é tanto que nem a sobrelotação parece intimidar os deslocados internos. No começo de novembro, mais de 40 pessoas morreram a tentar chegar a Pemba num naufrágio entre as ilhas do Ibo e Matemo.
Foto: Privat
Pemba a rebentar pelas costuras
O "boom" de deslocados é tão grande que o sistema de serviços básicos para a população, como água e saneamento, está no limite. Antes desta nova vaga de deslocados, a capital de Cabo Delgado tinha 204 mil habitantes. Agora, tem mais de 300 mil.
Foto: DW/E. Silvestre
Começar nova vida noutro chão
O Governo criou um comité de gestão para esta crise humanitária. Afirma que está a criar novas aldeias, centros de reassentamento, infrastruturas e a parcelar terras para acomodar os deslocados. Embora esteja garantida a segurança, as suas raízes estão noutro chão.
Foto: Privat
Que futuro?
Por enquanto não há resposta. Mas há deslocados que se vão "desenrascando" para sobreviver. Muitos dizem que não querem viver de mão estendida. Por exemplo, quem tem barco vai à pesca ou trasporta mercadorias. Outros entretêm-se a jogar futebol. Vão cuidando das suas vidas. Mas para os que não têm alternativas, que são a maioria, correrão riscos de entrar para o mundo do crime?