Manica: Insegurança impede alunos de frequentarem as escolas
Bernardo Jequete (Chimoio)
23 de janeiro de 2020
Cerca de dois mil alunos do ensino primário poderão não frequentar as aulas este ano devido à insegurança provocada pelos ataques de homens armados no distrito de Gondola. Muitos sequer fizeram as suas matrículas.
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A maior parte dos alunos afetados são das localidades de Muda Serração, Chibuto I, Chibuto II e Pinanganga. Estima-se que dois mil alunos matriculados não poderão assistir as aulas. A situação também inviabilizou o alcance das metas de matrículas para a primeira classe.
Dos 10.500 alunos previstos para serem matriculados no distrito de Gondola, província central de Manica, apenas três mil foram inscritos, segundo revelou João Tricano, porta-voz da Direção Provincial da Educação e Desenvolvimento Humano de Manica.
No entanto, Tricano sossegou dizendo que, com o reforço da segurança ao longo da Estrada Nacional 1, onde ocorrem com frequência os ataques de homens armados, a situação tende a normalizar-se com o regresso paulatino da população que se havia refugiado em regiões mais seguras.
"Segundo as informações que recolhemos ao nível daquele distrito e dos nossos gestores das escolas, em algumas situações comprometeram o processo de inscrição dos alunos da primeira classe. E nós, quando fomos reportados pelas escolas, orientamos de modo que possam trabalhar com os conselhos de escolas no sentido de identificar onde foram as crianças ou se refugiaram e, caso haja escolas circunvizinhas, podem inscreverem-se e daí, quando o ambiente for tranquilo, podem regressar e frequentarem normalmente as aulas nas suas escolas de origem", relatou.
"O registo que temos até então [de escolas que estão na iminência], são apenas da zona de influência pedagógica de Chibuto I que engloba cinco escolas - são as que estão na zona em que o ambiente não é seguro", acrescentou Tricano.
Falta segurança reflete nas matrículas
Para abranger mais alunos, a Direção Provincial da Educação e Desenvolvimento Humano de Manica orientou a sua representação no distrito, no sentido de prosseguir com as matrículas. O objetivo é absorver as crianças que se encontram em casa com os pais em outros pontos das províncias de Manica e Sofala.
Algumas escolas da região não conseguiram alcançar a meta de matrículas. É o caso da Escola Primária de Pinanganga. O diretor, Luís Gua, diz que a insegurança naquela zona é que originou a situação.
"Neste momento, conseguimos matricular 52 alunos de um universo de 130, porque ainda alguns pais estão fora do local, mas esperamos que a qualquer momento regressem", revelou o diretor da escola.
Moçambique: Insegurança impede alunos de frequentarem as escolas em Manica
Fuga para Chimoio
Além de prejudicar as metas das matrículas em Gondola, a situação da insegurança naquele distrito da província de Manica está a provocar o êxodo de pessoas para a sede do distrito e cidade de Chimoio.
Um dos exemplos é o de Luciando Fernando, aluno da 11ª classe que frequentava as aulas na Escola Secundária de Amatongas e se recusa a continuar com os estudos naquele estabelecimento de ensino por temer ser morto pelos homens armados associados à autoproclamada "Junta Militar" da RENAMO.
"Aqui, já tenho medo de estudar em Amatongas, por isso vou estudar na sede do distrito de Gondola. Meus amigos também vão à sede de Gondola. Aqui em Amatongas, poderão ir outros. Mas não tenho a certeza que poderão frequentar aulas aqui, porque aqui não há segurança, pois houve muitos ataques enquanto eu tenho idade para estudar. Com esses ataques, não dá", disse o aluno.
Lucas Chambwera, um dos pais residente em Chipandaúme, no distrito de Gondola, entrevistado pela DW África, disse que os pais e encarregados de educação fugiram da zona com receio de ataques armados.
"Houve um ataque no mês passado e houve um menino que estudava na 12ª classe. Quando ia para casa, foi queimado no carro. Então, foi esse ataque que fez com que os pais retirassem todas as crianças. Na zona, existem muitos alunos", contou o pai à DW África em Manica.
O primeiro livro escolar de matemática de Moçambique
Foi um professor alemão que escreveu o primeiro livro de ensino escolar de matemática de Moçambique, Angola e Guiné-Bissau. À volta do livro e do seu autor, Achim Kindler, há muitas histórias sobre a FRELIMO no exílio.
Foto: DW/J. Beck
Ensino de matemática no contexto africano
Quando Achim Kindler, um professor alemão vindo da Alemanha Oriental (RDA), começou a ensinar matemática aos filhos dos líderes da FRELIMO no exílio na Tanzânia, não gostou do material didático dos portugueses. Estes livros foram desenhados para um contexto europeu. Kindler achou que seriam precisos livros escolares que refletissem a vida dos africanos e evitassem estereótipos colonialistas.
Foto: DW/J. Beck
Primeiro livro de matemática moçambicano
Entre 1968 e 69, Kindler desenhou o protótipo com meios improvisados. "Usámos batatas para os gráficos", contou numa entrevista. Mas faltou dinheiro para a impressão profissional. Em 1971, igrejas evangélicas europeias prometeram pagar 50% dos custos dos livros da primeira e segunda classe (foto). O Partido Socialista Unificado da Alemanha não quis ficar atrás e a RDA pagou o resto.
Foto: DW/J. Beck
Palmeiras, tangerinas e machetes
Para a época, o visual era revolucionário. Para a adição, usou quilos de peixe descarregados por membros de uma cooperativa que se encontravam em baixo de palmeiras (à esq.). Para a divisão, o exemplo foi uma tangerina cortada com um machete. Os textos refletiam o espírito comunista da época, cheios de referências à solidariedade, às lutas operárias e aos movimentos anti-colonialistas.
Foto: DW/J. Beck
Como Achim Kindler chegou à Tanzânia
Em 1966, o líder da recém criada FRELIMO, Eduardo Mondlane, visitou a Rep. Dem. Alemã para procurar apoio na luta contra o colonialismo. Como Mondlane falava bem inglês, os representantes da RDA tiveram a impressão de que inglês seria a língua de trabalho da FRELIMO. Enviaram Kindler para apoiar o partido no exílio na Tanzânia. Depois da sua chegada, Kindler teve, primeiro, que aprender português.
Foto: Gerald Henzinger
Mondlane e o apoio da RDA à FRELIMO
Até ao seu assassinato, em 1969, Eduardo Mondlane (à dir.) teve um papel fundamental nas relações entre o Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED) e a FRELIMO. A RDA evitava o apoio direto e canalizava os fundos através do Comité de Solidariedade. Após o seu primeiro encontro com Kindler, Mondlane escreveu ao comité: "Estou muito impressionado com o grande sentido de responsabilidade dele."
Foto: casacomum.org/ Documentos Mário Pinto de Andrade
Livro para três movimentos de libertação
Antes da independência de Portugal, a carência de material didático era grande. Os livros escolares eram importados da Europa, não somente em Moçambique, mas também nas outras colónias portuguesas em África. Por isso, os livros feitos pela FRELIMO também tiveram edições especiais para os movimentos independentistas de Angola e da Guiné-Bissau e Cabo Verde, o MPLA e o PAIGC.
Foto: DW/J. Beck
Amílcar Cabral agradeceu pessoalmente
Através da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), os livros chegaram também ao Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. "No VII congresso do Partido Socialista Unificado da Alemanha, que visitei para acompanhar Samora Machel, Amílcar Cabral [líder do PAIGC] aproximou-se e agradeceu-me pessoalmente", contou Kindler.
Um efeito da associação do livro aos movimentos da luta de libertação foi a presença de armas e guerrilheiros nos exercícios matemáticos. Nos livros de matemática de Kindler, encontram-se perguntas como "Quantos guerrilheiros há no campo de manobras?", ilustrações da espingarda típica AK-47 ("Kalashnikov") ou histórias de crianças que enchem lâminas de armas com balas.
Foto: DW/J. Beck
Realidade no exílio
As igrejas que pagaram os livros não gostaram da presença de armas. Mas, para Kindler, isto era natural, pois a luta armada fazia parte da vida real das crianças. "Queremos apoiá-los na libertação ou queremos discutir se é viável lutar sem armas contra Portugal?", contou Kindler na entrevista no livro "Wir haben Spuren hinterlassen" ("Deixámos marcas", editado por Matthias Voss em 2006).
Foto: DW/J. Beck
Primeiro logotipo da FRELIMO
"Para diferenciar as edições para os diferente movimentos, colocámos logotipos na capa. O MPLA e o PAIGC já tinham logotipo, mas a FRELIMO ainda não", contou Kindler. "Desenhámos um símbolo da FRELIMO para o livro. Mais tarde, alguns elementos foram usados no primeiro logotipo oficial. Isto foi motivo de grande alegria para nós", disse Kindler na entrevista conduzida em 2005, antes da sua morte.
Foto: DW/J. Beck
Amigo íntimo de Samora Machel
Ao ensinar os filhos dos líderes da FRELIMO durante vários anos no exílio, Achim Kindler tornou-se amigo íntimo de figuras importantes do partido, como Samora Machel. Quando Machel assumiu a Presidência de Moçambique, após a independência, em 1975, Kindler foi nomeado primeiro secretário da embaixada da República Democrática da Alemanha (RDA) em Maputo.
Foto: Fundação Mário Soares/Estúdio Kok Nam
Dúvidas de lealdade
Mas o autor do primeiro livro de matemática de Moçambique não ficou muitos anos na embaixada. "Acusaram-me de ser mais moçambicano que representante da RDA", contou Kindler, que depois de encontros privados com Samora e Graça Machel teve que voltar à RDA. Pelos seus méritos, Kindler recebeu a medalha de Nachingwea, uma das ordens mais importantes da República de Moçambique.
Foto: Fundação Mário Soares/Estúdio Kok Nam
Guebuza foi buscar os documentos de Kindler
Até à sua morte, Kindler guardou um valioso espólio de documentos históricos dos primeiros anos da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Em 2007, o então Presidente de Moçambique, Armando Guebuza, deslocou-se à Alemanha e levou os documentos de volta a Moçambique. Na foto: Guebuza quando encontrou o então edil de Berlim, Klaus Wowereit, no âmbito da sua visita de Estado.