Insurgência no norte "alimentada por fatores internos"
Lusa | mc
17 de junho de 2020
Investigador diz que terroristas responsáveis por ataques violentos em Cabo Delgado, em Moçambique, são alimentados por fatores internos. E critica autoridades por terem privilegiado a teoria de uma origem estrangeira.
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O académico Salvador Forquilha considerou esta quarta-feira (17.06) que a origem dos grupos de terroristas responsáveis por ataques violentos na região de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, é complexa e alimentada por fatores internos, sobretudo étnicos e sociais.
"A insurgência é alimentada por clivagens múltiplas de origem étnica, histórica, social e política", disse o diretor e investigador sénior do Instituto de Estudos Económicos e Sociais (IESE) de Maputo, durante o seminário "Encontrar soluções para a insegurança em Cabo Delgado", organizado pelo Instituto Real de Relações Internacionais - Chatham House.
Cabo Delgado, província onde avança o maior investimento privado de África para exploração de gás natural, está sob ataque desde outubro de 2017 por insurgentes, classificados desde o início do ano pelas autoridades moçambicanas e internacionais como uma ameaça terrorista.
Em dois anos e meio de conflito naquela província do norte de Moçambique, estima-se que já tenham morrido, no mínimo, 600 pessoas e que cerca de 200 mil já tenham sido afetadas, sendo obrigadas a refugiar-se em lugares mais seguros.
Teoria Estado Islâmico errada?
Forquilha criticou as autoridades moçambicanas por terem privilegiado a teoria de uma conspiração de origem estrangeira de extremistas islâmicos ligados ao grupo Estado Islâmico quando "Informação no terreno sugere que o desenvolvimento da insurgência em Cabo Delgado foi alimentada consideravelmente por fatores internos".
O investigador moçambicano disse estar envolvido em dois estudos, um sobre o conflito e os desafios em termos de desenvolvimento no norte de Moçambique e outro sobre a coesão social e violência política, que olham para a situação em Cabo Delgado.
O que descobriu é que um fenómeno inicialmente isolado e pouco organizado tem estado a crescer junto de grupos populacionais marginalizados pelo Estado, nomeadamente jovens e muçulmanos mais conservadores.
"O discurso de oposição à ordem estabelecida funciona no sentido de acelerar o descontentamento social e radicalizar clivagens políticas e sociais", justificou, adiantando que "os insurgentes conseguiram estabelecer uma rede eficiente de apoio logístico e informação" graças aos jovens integrados nas comunidades locais.
A informação recolhida sobre o movimento das diferentes forças de segurança na região deu aos rebeldes maior mobilidade e eficiência em operações militares, explicou, alertando para a necessidade de impedir que o conflito se intensifique e espalhe para outras províncias no norte de Moçambique.
Aliança militar regional
Vítimas de ataques em Cabo Delgado em fuga pela vida
01:49
Pedro Esteves, especialista em segurança e analista da consultora Africa Monitor, sediada em Lisboa, sugeriu que uma das soluções a curto prazo pode ser a criação de uma aliança militar regional, nomeadamente com o Zimbabué, e eventualmente com o apoio da África do Sul e Angola.
Porém, salientou, estes dois últimos países "podem apoiar e ter força regional em Mocambique, mas existe uma diferença entre apoio político e meios militares".
A outra hipótese é uma maior intervenção das forças militares moçambicanas, apesar da "falta de motivação, organização, capacidades e recursos" que tem dado espaço para a intervenção de empresas militares privadas na região.
"Existe um descontentamento dos militares pela forma como o conflito tem sido abordado pela polícia. Eles sentem que estão a ser subordinados e isso agrava a falta de coordenação e a moral. Qualquer solução a curto prazo vai precisar dos militares com vontade e capacidade. O Presidente [Filipe] Nyusi tem de resolver isto em breve", disse Esteves.
Quais as motivações dos ataques armados em Cabo Delgado?
Há mais de nove meses que o norte de Moçambique tem sido palco de violentos ataques armados. Suspeitas há muitas e até já há um estudo, mas até hoje não está claro quem são os atacantes e nem o que os move.
Foto: Privat
Mocímboa da Praia: Era uma vez um lugar pacato...
Até 5 de outubro de 2017 a província de Cabo Delgado vivia na tranquilidade, pelo menos aparentemente. Mas desde essa data tudo mudou quando cerca de 30 homens armados desconhecidos atacaram três postos da polícia do distrito de Mocímboa da Praia, matando cinco pessoas, entre elas polícias, e ferindo mais de dez. Na altura a Polícia disse que estava a investigar o caso.
Foto: DW/G. Sousa
O alastramento dos ataques
Dois meses depois Mocímboa viveu novos ataques e desde essa altura os ataques armados têm vindo a alastrarar-se muito rapidamente para outros distritos. Palma começou a ser alvo a partir de janeiro de 2018.
Foto: DW/Estácio Valoi
Marcha contra um "Islão que não existe"
Uma semana depois do primeiro ataque Mocímboa da Praia marchou pela paz. A iniciativa juntou líderes de diferentes religiões, cristã e muçulmana, estes últimos a maioria na região. Os atacantes, que se dizem muçulmanos, defendem uma visão radical do Islão. As autoridades do distrito consideram que esse é um "Islão "que não existe", e acusam "os bandidos" de usaram a religião como "capa".
Foto: Estácio Valoi
Os indícios que não terão sido tomados a sério
Já em 2016 supostos pregadores do Islão foram expulsos do país por estarem ilegais no país. Também já foi intercetado um angariador de crianças a cujos pais era prometida educação e bons tratos. Mas o destino, passando por Nampula, eram escolas corânicas com o fim de radicalização. Há também detenções de pessoas que propagam a insurgência contra as instituições do Estado.
Foto: Colourbox/krbfss
Detenções e excesso de zelo
Cinco dias após o início dos ataques, a Polícia já tinha detido 52 pessoas, o que assustou alguns líderes religiosos. Mas havia outros líderes que eram a favor, justificando a necessidade de denunciar malfeitores para "purificar fileiras", mesmo que isso leve a excesso de zelo. Mas a Polícia ainda não sabe dizer quem são os atacantes, justificando sempre que está a trabalhar no assunto.
Uma das maiores reservas de gás de mundo está em Cabo Delgado. Em Palma as multinacionais operam no setor. Em Mocímboa da Praia há minas de rubis que são bem cotados nos mercados internacionais. O IESE, MASC e um líder muçulmano realizaram um estudo na sequência dos ataques e concluiram preliminarmente que o objetivo dos atacantes é garantir o tráfico dos inúmeros recursos da região.
Foto: ENI East
Erik Prince, o salvador da pátria?
Empresário norte-americano na área de segurança tem interesses nas empresas envolvidas nas dívidas ocultas. Uma delas a Proindicus, criada para garantir a segurança nas águas moçambicanas. Por outro lado acredita-se que tenha criado uma empresa de segurança e estaria a contar como pagamento pelos serviços os dividendos do gás. Eric Prince já prestou serviços para o Governo dos EUA no Iraque.
Foto: Imago/UPI Photo
Deslocados internos: Existem ou não?
O medo dos violentos ataques fez com que a população fugisse. Mas as autoridades locais garantem que ela regressa às suas comunidades graças à patrulha feita pelo exército e afirmam que são poucas as deslocações. Entretanto, não há números exatos. Quem está a lidar com esses deslocados são as autoridades locais. Até ao momento nenhuma agência da ONU ou ONG humanitária foram chamados a intervir.
Foto: Privat
Participação das FDS na reconstrução
Embora as FDS, Forças de Defesa e Segurança, não consigam impedir as ações dos atacantes elas garantem o patrulhamento depois dos ataques. Também auxiliam diretamente na reconstrução das casas incendiadas pelos atacantes. Isso, segundo as autoridades, permite o retorno da população às suas aldeias.
Foto: Borges Nhamire
Participação das comunidades
Supõe-se que os jovens que integram os grupos armados sejam recrutados nas comunidades. As autoridades pedem, por isso, que as populações se mantenham vigilantes e denunciem qualquer ilícito ou movimentação suspeita.
Foto: Privat
Governador visita comunidades
Os assassinatos tornam-se cada vez mais bárbaros. Há decapitações com recurso à catanas e nem as crianças escapam. Na sequência do recrudescimento dos ataques e do nível de violência o governador da província de Cabo Delgado, Júlio Parruque, visitou familiares das vítimas.
Foto: Privat
Presidente de Moçambique em Cabo Delgado
A 29 de junho de 2018 o Presidente Filipe Nyusi esteve nos distritos alvo dos ataques. Pouco antes disso o estadista tinha sido criticado por alguns setores por nunca se ter pronunciado publicamente sobre os ações violentas. Em Cabo Delgado, Nyusi prometeu proteção contra ataques e mostrou abertura, convidando os atacantes para dialogar.
Foto: privat
Um mar de gente para ouvir Nyusi
Em Cabo Delgado, Filipe Nyusi foi ouvido por milhares de pessoas a quem exortou para que se distanciem de crenças religiosas que estariam na origem da instabilidade: "Estão a recrutar pessoas nos distritos costeiros. Estão a ir também a Nampula recrutar pessoas para vir morrer aqui. Não deixem que isso aconteça. Estão a semear luto nas vossas famílias. E são jovens que vocês conhecem, denunciem".