Julgamento das dívidas ocultas vai ser "escola" para o país
Leonel Matias (Maputo)
12 de agosto de 2021
No dia 23 de agosto começa, em Moçambique, o julgamento do caso das dívidas ocultas. A Ordem dos Advogados de Moçambique vai participar como assistente no processo e explicou hoje porquê.
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As dívidas foram contraídas à margem da lei e sem conhecimento do parlamento e dos parceiros internacionais, o que levou os doadores a suspenderem a ajuda direta ao Orçamento do Estado moçambicano em 2016. O Estado ficou lesado no equivalente a cerca de dois mil milhões de euros.
A Ordem dos Advogados convocou, esta quinta feira (12.08), a imprensa, para anunciar os principais objetivos da sua intervenção neste processo, que o bastonário Duarte Casimiro descreveu como sendo, "assegurar que o julgamento seja conduzido com respeito à legalidade e dentro das normas e garantias de um processo justo, transparente, imparcial, livre de qualquer interferência interna ou externa".
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Um julgamento importante para a boa governação
Casimiro disse ainda que a sua instituição pretende garantir que a responsabilização dos envolvidos seja feita com base na verdade da prova produzida nos autos e "consequentemente proceder-se à efetiva recuperação dos bens e produto dos crimes praticados pelos arguidos e a sua devolução ao povo moçambicano".
A ordem afirma que quer contribuir para o aumento da consciência dos cidadãos sobre a importância deste processo para a boa governação e os direitos humanos.
A instituição será representada por sete advogados, incluindo o atual bastonário e dois antecessores. Um dos integrantes da equipa, o advogado Filipe Sitói, esclareceu que há novos procedimentos na condução do julgamento.
"Mudou a lei processual penal, o juiz que intervém na fase da instrução não é o mesmo que vai intervir na fase de julgamento por força da lei aprovada pela nossa Assembleia da República".
O Estado saiu lesado em dois mil milhões de euros
O processo, agendado para 45 dias ininterruptos, envolve um total de 19 arguidos e 70 declarantes, incluindo o antigo Presidente da República, Armando Guebuza.
O julgamento no caso das dívidas ocultas, que lesaram o Estado moçambicano num montante equivalente a cerca de dois mil milhões de euros, tem início com o arguido Teófilo Pedro Nhangumele, uma das figuras-chave do caso.
Nhangumele é citado como tendo sido o elemento que desenvolveu o trabalho técnico relativo ao projeto, identificou o seu financiamento e criou e registou a empresa Proíndicus, que, juntamente, com a EMATUM e a Moçambique Asset Manangement, são responsáveis pelo escândalo das dívidas ocultas.
Apelo à comunicação social
Figuram entre os outros arguidos Ndambi Guebuza, filho do ex-Presidente, Armando Guebuza, alguns dos seus antigos colaboradores próximos e quadros superiores da secreta moçambicana, o Serviço de Informação e Segurança do Estado, SISE.
"Esta é a primeira vez que há um processo desta natureza no país, pelo menos com tanta gente envolvida, e nesse sentido, vai ser, sem dúvidas, uma escola para todos, incluindo para os juízes envolvidos no caso", disse o bastonário Duarte Casimiro.
O julgamento terá como palco a cadeia de máxima segurança, vulgo BO, na província de Maputo, estando previsto o acesso por jornalistas. "A ordem apela aos órgãos de comunicação social para realizarem a sua missão respeitando os princípios da presunção da inocência, e da independência dos tribunais, bem como promovendo o respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos arguidos, evitando promover as desnecessárias condenações, os linchamentos públicos, a desinformação e adulteração da verdade", disse ainda Casimiro.
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)