Em julgamento nos EUA após ser extraditado da África do Sul, o ex-ministro de Moçambique pode alegar que valor recebido foi uma "doação política", tendo "grandes chances" de ser absolvido, diz Borges Nhamirre.
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O escândalo das dívidas ocultas já é um evento histórico em Moçambique. Após ser extraditado da África do Sul para os EUA, na quarta-feira (12.07), arrancou hoje a primeira sessão do julgamento do ex-ministro moçambicano, Manuel Chang, relativo ao escândalo que lançou o país numa crise económica sem precedentes.
Como previsto, Manuel Chang declarou-se hoje inocente num tribunal de Nova Iorque. Chang foi ministro das Finanças de Moçambique entre 2005 e 2010 terá avalizado dívidas de 2,7 mil milhões de dólares (2,5 mil milhões de euros) secretamente contraídas a favor da Ematum, da Proindicus e da MAM, empresas públicas referidas na acusação norte-americana, entre 2013 e 2014.
A acusação norte-americana diz que Chang fez parte um grupo de dirigentes corruptos moçambicanos que terão conspirado com banqueiros do Credit Suisse para garantir um empréstimo avalizado pelo Estado para projetos marítimos que nunca se concretizaram, mas que avolumaram a dívida pública moçambicana.
No EUA, durante o julgamento que arrancou hoje, o juiz negou o pedido do ex-ministro de libertação sob fiança, sob risco de fuga. Além disso, os procuradores defendem que Chang deve permanecer sob custódia porque Moçambique não tem um acordo de extradição com os EUA. Agora, qual deverá ser a estratégia de defesa de Chang no contexto norte-americano?
Borges Nhamirre (BN): A delação premiada está fora de questão porque Manuel Chang já se declarou "não culpado". Isso ficou esclarecido quando ele foi ouvido pela primeira vez pelo Tribunal. Ao declarar-se não culpado, ele decide ir para julgamento.
Agora, eu penso que a defesa dele vai usar a mesma estratégia que a defesa de Jean Boustani usou, até porque membros da equipa de advogados desse fazem parte da equipa de advogados de Chang. Precisamente, os advogados moçambicanos.
Eu penso que eles vão usar o mesmo argumento de que ele recebeu dinheiro – porque é difícil dizer que não recebeu – mas vai dizer que a quantia recebida é "doação", é "política" – o que também acontece nos EUA, e em qualquer parte do mundo. Mas [poderá dizer] que nunca prejudicou ninguém, nenhum norte-americano, e nunca esteve neste país para mobilizar fundos - "não tem nada a ver com isso". Assim, tentará convencer o júri e lhe declarar não culpado, e se o júri assim o fizer, é o fim da história.
DW África: Acha que estes argumentos poderiam ser aceitos?
BN: Neste momento, qualquer tentativa de adivinhar, ou prever, uma decisão seria muito arriscada. Simplesmente porque quem decide não é o Tribunal, mas são os cidadãos que residem na área de jurisdição onde o caso será julgado. [Por isso,] é muito difícil entender e prever quais serão os sentimentos daqueles cidadãos. [Porque, por exemplo,] no caso de absolvição de Jean Boustani… não significa que ele não tenha cometido os crimes.
Significa que o júri entendeu que ele é um cidadão libanês, que nunca esteve na América, vendeu barcos num país africano. Depois, viajou de férias para São Domingo, onde foi capturado pelo FBI [a polícia federal norte-americana] e mandado para os EUA e diz: "mas os EUA não são a polícia do mundo". Eu penso que essa estratégia pode funcionar para Chang.
Outra coisa que, penso, vai funcionar, é que Chang dirá que é viúvo, que perdeu a esposa e não vê os filhos há muitos anos. Além disso, que está detido há muito tempo e é doente, diabético, e passou muito mal na cadeia. Ele tentará, assim, captar a empatia do júri. Então, não sabemos. Nesta situação de julgamento decidido por júri, é preciso esperar para ver o que as pessoas dirão.
DW África: O juiz distrital considerou haver risco de fuga e negou o pedido do ex-ministro de libertação sob fiança. Há razão para temer sua fuga?
BN: Ah sim. Primeiro, ele não tem residência nos EUA. Segundo, é uma pessoa com muito dinheiro. É fácil para ele organizar uma fuga. Aliás, não é a primeira vez que lhe é negada liberdade mediante caução. Na África do Sul, já tinha pedido e foi negado pelo risco de fuga, um dos argumentos apresentados na altura.
Ele tem muito dinheiro e influência. Pode mandar emitir um passaporte a qualquer momento, até conseguir um voo particular e desaparecer. É considerado um milionário. E, só da parte dos milhões que recebeu das dívidas ocultas, era previsível, penso, que o pedido de libertação mediante caução fosse rejeitado.
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)