Moçambique: ONG sugere novas práticas nos ritos de iniciação
Lusa
11 de janeiro de 2023
Fórum das Organizações Femininas de Niassa quer reduzir as uniões prematuras e gravidez precoces no país. Para isso, entregou ao governo um guião com regras e condições a cumprir antes, durante e depois dos rituais.
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O Fórum das Organizações Femininas de Niassa (Fofen) propôs ao governo provincial uma "série de novas práticas" nos ritos de iniciação para reduzir as uniões prematuras e gravidez precoces no país.
O denominado "Guião Orientador sobre os Ritos de Iniciação" propõe uma série de regras e condições a serem observadas antes, durante e depois dos rituais, prevendo-se "sanções para quem não obedecer", indica um documento da instituição, a que a Lusa teve acesso.
A proposta foi enviada ao governo do Niassa, para aprovação, província na qual as "mulheres enfrentam uma exclusão social multidimensional influenciada por fatores culturais, com enfoque para os ritos de iniciação".
As organizações sugerem que se estabeleça um período para prática dos ritos de iniciação, além de um limite de idade para entrada no processo, que parte dos 10 anos para os rapazes e 15 anos para as meninas.
"O período para o estabelecimento da prática deverá obedecer ao calendário do sistema nacional de educação, com maior destaque para as férias maiores de dezembro, para evitar que haja choque com o período escolar", refere o documento.
As organizações pretendem que as crianças optem pela escola, em detrimento do casamento, sugerindo por isso que os cânticos entoados durante a cerimónia sejam "mais didáticos" e os conteúdos lecionados, entre outros, sejam sobre "os direitos da criança e as consequências da gravidez precoce e da união prematura".
"[As crianças] devem levar consigo algum material escolar e livros de histórias infantis para dar continuidade ao processo de ensino e aprendizagem para estudos individual e em grupos nos acampamentos", aponta o guião do Fofen.
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Punição
Nas novas práticas sugeridas pelas organizações, o promotor dos ritos que não obedecer às regras deverá pagar uma multa de 200 meticais (três euros) por cada criança e, se for reincidente, será impedido de exercer a prática por dois anos.
"A expectativa do Fofen é que, sendo aprovado, o guião seja um instrumento eficiente para alavancar os segmentos sociais mais desfavorecidos", concluiu-se no documento.
Os últimos dados oficiais indicam que 48% das raparigas moçambicanas casam-se antes dos 18 anos, uma situação que para as organizações não-governamentais é agravada pela ineficiente implementação da legislação, além da pobreza das populações e costumes.
O Fofen faz parte de um consórcio de quase 10 organizações moçambicanas que promovem a igualdade de género e a capacitação de mulheres e raparigas..
"Unhago": O ritual de iniciação dos Yao no Niassa
No Niassa, norte de Moçambique, o "unhago" repete-se todos os anos. Durante mais de um mês, rapazes vivem isolados no mato e raparigas fechadas numa casa para aprenderem sobre a vida adulta. No fim, faz-se a festa.
Foto: DW/M. David
Isolados no mato
Durante 45 dias, rapazes entre os 5 e os 10 anos submetidos aos ritos de iniciação vivem numa cabana instalada para o efeito nas matas. A ideia é estarem longe de casa e da comunidade - no mínimo, a um quilómetro de distância. É proibido o contacto com mulheres. Se alguma entrar na área protegida, é castigada. Depois do período de isolamento, a cabana é incinerada, marcando o regresso à sociedade.
Foto: DW/M. David
Lembrados em casa
Todas as famílias que têm crianças no "unhago" devem içar bandeiras em casa – indicando o número de crianças submetidas à prática. As bandeiras nos telhados e árvores junto às residências servem também para convidar pessoas a preparar produtos para a festa de recepção aos "iniciados". Durante o ritual, há uma bandeira também no acampamento – um símbolo de que as crianças estão bem de saúde.
Foto: DW/M. David
Proibida a passagem a não circuncidados
O trilho que vai dar ao acampamento do ritual só pode ser percorrido por homens circuncidados. Quando uma criança é encontrada neste caminho, pode ser circuncidada à força. A entrega de refeições aos rapazes no "unhago" faz-se num ponto chamado "paragem obrigatória", onde os familiares usam um sino para chamar o acompanhante, uma espécie de padrinho que vive com as crianças durante este período.
Foto: DW/M. David
Aprender a ser adulta
Enquanto os rapazes ficam isolados num acampamento na mata, as raparigas são fechadas dentro de uma casa durante 30 dias. Neste período, recebem orientações sobre a vida adulta, sobretudo instruções para cuidarem do futuro lar.
Foto: DW/M. David
De visita à família com folhas de bananeira
A duas semanas da sua saída das matas, os rapazes são levados para visitarem os seus parentes. Os acompanhantes fazem roupas com folhas de bananeira para o momento da visita, para que as crianças não sejam reconhecidas. Os familiares são obrigados a pagar 50 meticais (cerca de 70 cêntimos de euro) para poderem ver a criança. Se não pagam, não têm direito a ver os filhos.
Foto: DW/M. David
45 dias sem tomar banho
A saída das matas fica também marcada pelo primeiro banho das crianças, após 45 dias de isolamento sem se poderem lavar. Depois de uma noite de "cukuiwe" – cânticos de agradecimento pela saída do esconderijo – é altura de tomar banho e vestir as roupas novas compradas pelos familiares.
Foto: DW/M. David
Recepção nas ruas
Depois do banho, as crianças fazem uma curta caminhada – ainda sem a família, só com os acompanhantes – e várias pessoas vêm entregar-lhes o pequeno-almoço. Só depois desta pequena marcha são recebidos pelos seus familiares com cânticos de alegria e de boas-vindas aos novos homens da sociedade.
Foto: DW/M. David
Adeus à rainha e ao rei
Depois do banho e da marcha, as crianças voltam para casa dos responsáveis pelos ritos de iniciação – a "rainha" e o "rei" - onde os encarregados são obrigados a "levantarem" os seus filhos com uma taxa que vai dos 300 aos 500 meticais. Nos ritos dos rapazes, o rei tem o nome de Inkaliba. As meninas ficam em casa da rainha Anakaga.
Foto: DW/M. David
Ofertas dos pés à cabeça
A chegada a casa é um momento de festa e inclui um ofertório. O acompanhante do rito de passagem também recebe agradecimentos. O dinheiro pousado no prato é para este responsável, como forma de pagamento pelos cuidados prestados no mato, no caso dos rapazes, ou na casa, no caso das raparigas. Já o valor depositado na cabeça e nos bolsos da criança fica para ela.
Foto: DW/M. David
Marchas para celebrar
A aproximação do fim dos ritos de iniciação leva às ruas familiares e convidados em diversas marchas de celebração. Munidos de latas, galões velhos e outros objetos, marcham para marcar o fim do sofrimento das crianças. Dizem "imarile chenene" – em português, acabou bem.
Foto: DW/M. David
Terminar em grande
No final do ato, têm lugar grandes manifestações. Familiares e convidados celebram, sujam-se e chegam a dormir na lama. As bebidas são o prato forte para marcar o fim das festividades dos ritos de iniciação. Por estes dias, o trânsito é caótico. Os manifestantes ocupam estradas e os condutores têm de aguardar até que as marchas passem para poderem prosseguir.