"Muitas vezes a relação é mais um tipo de marketing, para fortalecer imagem dos grupos africanos. Basta dizer que fazem parte do EI que já chama mais atenção, já pode provocar mais medo entre o povo", diz pesquisadora.
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Já não restam dúvidas para vários especialistas de que as origens da insurgência no norte de Moçambique são endógenas, embora ela esteja a desenvolver a sua vertente exógena. Mas a pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos Internacionais (CSIS) nos EUA, Emília Columbo, alerta para o risco de se dar demasiado enfoque a sua vertente externa, descurando do mais importante: os motivos do descontentamento interno. Entrevistamos a pesquisadora sobre a situação em Cabo Delgado, província nortenha de Moçambique:
DW África: Considera no seu artigo que o Governo moçambicano cometeu erros estratégicos em relação aos insurgentes em Cabo Delgado. Pode apontar algum?
Emília Columbo (EC): Parece-me que o maior erro estratégico que tem cometido é contar mais com as Forças de Defesa e Segurança (FDS) para combater a insurgência. Esta não é uma situação que se pode resolver apenas utilizando as FDS. Estudos académicos de insurgência, desde a Segunda Guerra Mundial, indicam que governos com mais sucesso contra as insurgências utilizam estratégias que incluem, sim, operações militares, mas também programas para aliviar os motivos da insurgência, programas económicos e sociais.
DW África: Entende também no mesmo artigo que os insurgentes demonstraram maior sofisticação, planenamento e confiança, para além de uma mudança para atingir as estruturas governamentais e atrair o apoio civil. Esse é um sinal inequívoco de que os insurgentes estariam, efetivamente, a servir o EI?
EC: Eu não diria que estão a servir o EI, mas sim, há uma relação entre os dois. Os vídeos e fotografias que os insurgentes têm publicado desde março são a maior evidência desta nova relação entre o grupo de Moçambique e a rede internacional do EI.
DW África: Há quem entenda que as origens do descontentamento são endógenas, mas por necessidade de financiamento os insurgentes se tenham juntado ao EI, assumindo assim também um caráter exogeno. Acha que houve um "casamento" por conveniência"?
EC: Sim, mas não por motivos financeiros. Olhando para os grupos extremistas africanos armados que fazem parte desta rede internacional do EI, muitas vezes esta relação é mais como um tipo de marketing, uma maneira de fortalecer a imagem dos grupos africanos. Basta dizer que fazem parte do EI que já chama mais atenção, já pode provocar mais medo entre o povo. E eu acho que é uma situação parecida, por enquanto em Moçambique também.
DW África: Parece-lhe, então, que a origem deste conflito seja endógeno, baseado num descontentamento interno?
EC: Sim, absolutamente. E um perigo dessa relação com o EI é que estes motivos domésticos vão-se perder de vista, que se vai concentrar mais nesta relação com a rede internecional e focar-se no aspeto desta violência e vai-se perder os motivos, a razão pela qual a insurgência está, em primeiro lugar. É uma preocupação agora que temos outro aspeto para considerar.
DW África: Entende que o Governo tem sido incoerente na sua resposta. O Presidente Filipe Nyusi declarou os insurgentes como uma potencial ameaça à soberania nacional, enquanto o ministro da Defesa Jaime Neto afirmou que os serviços de segurança têm a situação sob controlo. Isso resulta de falta de coordenação ou de tentativas mal sucedidas de lidar com a situação?
EC: Esta é uma questão um pouco difícil de responder. Parece-me que é uma falta de coordenação, mas também é uma indicação de que, no Governo, ainda não estão todos de acordo sobre este problema. E parece-me que esse é o primeiro passo, definir qual é o problema e depois podem começar a desenvolver uma estratégia, mas enquanto vemos vários membros do Governo e das FDS a falarem de diferentes motivos desta insurgência, diferentes estatutos, se está tudo a correr bem ou se está a correr mal, é difícil entender como eles vão responder. E é uma forma do povo começar a perder a confiança no Governo. Acho muito importante o Governo desenvolver uma mensagem coerente e que todos tenham o apoio desta mensagem e depois publicá-la de uma forma a encorajar a fé do povo, que o Governo tem isto em mão.
DW África: E como vê os esforços do Governo para combater a insurgência neste contexto da pandemia da Covid-19?
EC: É importante haver uma estratégia para a segurança, mas também das raízes sociais, económicas e políticas da insurgência. Vemos o Governo, ainda durante esta situação muito focado em questões militares, e enquanto estas operações ajudam a proteger os cidadãos de Cabo Delgado, ajuda a melhorar a segurança na província, muito bem. Mas, ao mesmo tempo, o Governo tem uma oportunidade para demonstrar e melhorar a sua presença na província oferecendo ao povo mais assistência médica, mais programas de educação, apoio económico e alimentar aos que estão a sofrer mais com estas paragens económicas. É uma grande oportunidade para começar a criar essa confiança que falta na estratégia. E essa seria uma boa oportunidade para começar.
Quais as motivações dos ataques armados em Cabo Delgado?
Há mais de nove meses que o norte de Moçambique tem sido palco de violentos ataques armados. Suspeitas há muitas e até já há um estudo, mas até hoje não está claro quem são os atacantes e nem o que os move.
Foto: Privat
Mocímboa da Praia: Era uma vez um lugar pacato...
Até 5 de outubro de 2017 a província de Cabo Delgado vivia na tranquilidade, pelo menos aparentemente. Mas desde essa data tudo mudou quando cerca de 30 homens armados desconhecidos atacaram três postos da polícia do distrito de Mocímboa da Praia, matando cinco pessoas, entre elas polícias, e ferindo mais de dez. Na altura a Polícia disse que estava a investigar o caso.
Foto: DW/G. Sousa
O alastramento dos ataques
Dois meses depois Mocímboa viveu novos ataques e desde essa altura os ataques armados têm vindo a alastrarar-se muito rapidamente para outros distritos. Palma começou a ser alvo a partir de janeiro de 2018.
Foto: DW/Estácio Valoi
Marcha contra um "Islão que não existe"
Uma semana depois do primeiro ataque Mocímboa da Praia marchou pela paz. A iniciativa juntou líderes de diferentes religiões, cristã e muçulmana, estes últimos a maioria na região. Os atacantes, que se dizem muçulmanos, defendem uma visão radical do Islão. As autoridades do distrito consideram que esse é um "Islão "que não existe", e acusam "os bandidos" de usaram a religião como "capa".
Foto: Estácio Valoi
Os indícios que não terão sido tomados a sério
Já em 2016 supostos pregadores do Islão foram expulsos do país por estarem ilegais no país. Também já foi intercetado um angariador de crianças a cujos pais era prometida educação e bons tratos. Mas o destino, passando por Nampula, eram escolas corânicas com o fim de radicalização. Há também detenções de pessoas que propagam a insurgência contra as instituições do Estado.
Foto: Colourbox/krbfss
Detenções e excesso de zelo
Cinco dias após o início dos ataques, a Polícia já tinha detido 52 pessoas, o que assustou alguns líderes religiosos. Mas havia outros líderes que eram a favor, justificando a necessidade de denunciar malfeitores para "purificar fileiras", mesmo que isso leve a excesso de zelo. Mas a Polícia ainda não sabe dizer quem são os atacantes, justificando sempre que está a trabalhar no assunto.
Uma das maiores reservas de gás de mundo está em Cabo Delgado. Em Palma as multinacionais operam no setor. Em Mocímboa da Praia há minas de rubis que são bem cotados nos mercados internacionais. O IESE, MASC e um líder muçulmano realizaram um estudo na sequência dos ataques e concluiram preliminarmente que o objetivo dos atacantes é garantir o tráfico dos inúmeros recursos da região.
Foto: ENI East
Erik Prince, o salvador da pátria?
Empresário norte-americano na área de segurança tem interesses nas empresas envolvidas nas dívidas ocultas. Uma delas a Proindicus, criada para garantir a segurança nas águas moçambicanas. Por outro lado acredita-se que tenha criado uma empresa de segurança e estaria a contar como pagamento pelos serviços os dividendos do gás. Eric Prince já prestou serviços para o Governo dos EUA no Iraque.
Foto: Imago/UPI Photo
Deslocados internos: Existem ou não?
O medo dos violentos ataques fez com que a população fugisse. Mas as autoridades locais garantem que ela regressa às suas comunidades graças à patrulha feita pelo exército e afirmam que são poucas as deslocações. Entretanto, não há números exatos. Quem está a lidar com esses deslocados são as autoridades locais. Até ao momento nenhuma agência da ONU ou ONG humanitária foram chamados a intervir.
Foto: Privat
Participação das FDS na reconstrução
Embora as FDS, Forças de Defesa e Segurança, não consigam impedir as ações dos atacantes elas garantem o patrulhamento depois dos ataques. Também auxiliam diretamente na reconstrução das casas incendiadas pelos atacantes. Isso, segundo as autoridades, permite o retorno da população às suas aldeias.
Foto: Borges Nhamire
Participação das comunidades
Supõe-se que os jovens que integram os grupos armados sejam recrutados nas comunidades. As autoridades pedem, por isso, que as populações se mantenham vigilantes e denunciem qualquer ilícito ou movimentação suspeita.
Foto: Privat
Governador visita comunidades
Os assassinatos tornam-se cada vez mais bárbaros. Há decapitações com recurso à catanas e nem as crianças escapam. Na sequência do recrudescimento dos ataques e do nível de violência o governador da província de Cabo Delgado, Júlio Parruque, visitou familiares das vítimas.
Foto: Privat
Presidente de Moçambique em Cabo Delgado
A 29 de junho de 2018 o Presidente Filipe Nyusi esteve nos distritos alvo dos ataques. Pouco antes disso o estadista tinha sido criticado por alguns setores por nunca se ter pronunciado publicamente sobre os ações violentas. Em Cabo Delgado, Nyusi prometeu proteção contra ataques e mostrou abertura, convidando os atacantes para dialogar.
Foto: privat
Um mar de gente para ouvir Nyusi
Em Cabo Delgado, Filipe Nyusi foi ouvido por milhares de pessoas a quem exortou para que se distanciem de crenças religiosas que estariam na origem da instabilidade: "Estão a recrutar pessoas nos distritos costeiros. Estão a ir também a Nampula recrutar pessoas para vir morrer aqui. Não deixem que isso aconteça. Estão a semear luto nas vossas famílias. E são jovens que vocês conhecem, denunciem".