Alteração do Código Penal permite que indivíduos sejam detidos preventivamente, sem saberem por quanto tempo. Presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados associa a mudança às "dívidas ocultas".
Mas um outro aspeto intriga. Desconfia-se que esta alteração da lei penal seja um expediente político para que os acusados no caso das "dívidas ocultas" continuem detidos, embora os prazos de detenção tenham expirado, de acordo com o Jornal Evidências.
Ferosa Zacarias, presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados de Moçambique, acredita que "o legislador está apenas a olhar para questões políticas e não para questões de legalidade". Isto porque, segundo Zacarias, a falta de prazos para prisão preventiva "é uma grave violação dos direitos humanos”.
DW África:Com a supressão dos prazos de prisão preventiva, estamos perante uma violação aos direitos humanos no país?
Ferosa Zacarias (FZ): É uma grave violação aos direitos humanos porque é importante que cada cidadão saiba porquê e por quanto tempo vai ser restringida a sua liberdade. E não é o que acontece agora com essa nova revisão.
DW África: E parece não haver consenso até mesmo entre os juízes do Conselho Constitucional. Dos cinco, sete parecem ter votado contra a declaração de inconstitucionalidade do referido artigo. Na sua opinião, o que explica essa falta de consenso entre os próprios juízes?
FZ: É inegável a associação deste ponto com a questão das dívidas não declaradas.
DW África: Acredita que há um expediente político para manter os arguidos nas cadeias, incluindo os arguidos do processo das "dívidas ocultas"?
FZ: Não poderei exercer comentários direcionados ao processo. [Mas] noto que há, sim, um certo receio de deixar como estava porque as pessoas têm advogados, os constituídos poderão beneficiar disso. E também temos o lado político do julgamento. É por isso que o legislador está a preferir cometer essa grave violação dos direitos humanos, olhando para questões políticas e não para questões de legalidade, porque é inconcebível que estejamos a debater este ponto que já era um grande ganho para o nosso país.
DW África: Como será possível um debate mais abrangente sobre o tema na sociedade? Até mesmo incluir a sociedade civil no debate, se há possibilidades para isso em Moçambique?
FZ: Esse é um nosso grande constrangimento enquanto país - esta auscultação pública, o envolvimento de todos os atores. A Ordem já fez o seu papel, conforme é do conhecimento público, as organizações da sociedade civil também têm estado a fazer o seu trabalho. Mas é importante envolver também os outros pilares da administração da justiça. Não é de se esperar que seja só uma entidade como a Ordem, como a sociedade civil, a requerer a verificação da constitucionalidade dessa norma ilegal. É importante olhar também a magistratura judicial, o Ministério Público porque é evidente não se colocar prazos para a prisão preventiva é uma grave violação dos direitos humanos.
Moçambique: Propriedades e instituições ligadas às "dívidas ocultas"
O processo denominado "dívidas ocultas" envolve não apenas pessoas de muitos quadrantes políticos e sociais, mas também empresas, propriedades e instituições.
Foto: Romeu da Silva/DW
O julgamento das "dívidas ocultas" decorre no Tribunal Judicial da Cidade de Maputo
O processo decorre no Tribunal Judicial da Cidade de Maputo desde 23 de Agosto de 2021. A sexta sessão revelou que arguidos e declarantes adquiriram residências luxuosas e criaram empresas de lavagem de dinheiro. A sociedade moçambicana ficou a conhecer a extensão da lesão que sofreu por causa das dividas ocultas.
Foto: Romeu da Silva/DW
Tudo começou no bairro de Sommerschield
Tudo começou no bairro de elite da Sommerschield, onde fica a sede do Serviço de Informações e Segurança do Estado (SISE). Não se trata do edifício na foto, já que é proibido fotografar o edifício do SISE. Mas foi nas suas instalações que foi desenvolvido o projeto de proteção da Zona Económica Exclusiva (ZEE), que acabou endividando o Estado em cerca de 2,2 mil milhões de dólares.
Foto: Romeu da Silva/DW
Lavagem de dinheiro
No julgamento, o Ministério Público (MP) acusou o réu António Carlos do Rosário de ser proprietário de vários apartamentos neste edifício chamado Deco Residence. O MP refere que do Rosário comprou, em 2013, três apartamentos, no valor de 500 mil dólares cada. O valor foi transferido pela IRS para a Txopela Investiments, de que era administrador.
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Tribunal confisca apartamentos
Alexandre Chivale, advogado do réu António Carlos do Rosário, ocupava um apartamento aqui na Deco Assos. Foi obrigado a abandonar a unidade e a entregar a chave ao Tribunal de Maputo. A área residencial está a ser construída ao longo da marginal, uma zona que passou a ser muito concorrida.
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Apartamento Xenon
António Carlos do Rosário também terá "metido a mão" neste imóvel. Na acusação consta que, em 2015, a Txopela transferiu 2,9 milhões de dólares para a Imobiliária ImoMoz para a compra de apartamentos neste edifício, que antes funcionava como cinema Xenon.
Foto: Romeu da Silva/DW
Alerta lançado pela INAMAR foi ignorado
A INAMAR é uma empresa que se dedica à inspeção naval. No processo da contratação das dívidas, a INAMAR avisou que os barcos da empresa pública EMATUM, que custaram 600 milhões de dólares, foram construídos à revelia das normas. Por causa das irregularidades, a INAMAR chumbou as embarcações. E alertou as autoridades relevantes, que ignoraram o relatório.
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Casa de câmbios transformada em "lavandaria"
A Africâmbios transformou-se numa casa na lavagem de dinheiro. Alguns funcionários foram obrigados a abrir contas, usadas pelos seus superiores para a transferência de dinheiro da empresa Privinvest, igualmente envolvida no escândalo. O proprietário da Africâmbios, Taquir Wahaj, fugiu e é procurado pela justiça moçambicana.
Foto: Romeu da Silva/DW
Presidência e reuniões do comando conjunto
A presidência da República, perto da edifício da secreta moçambicana, acolheu algumas reuniões do Comando Conjunto e Operativo onde estiveram os ministros da Defesa, Filipe Nyusi, atual Presidente da República, Alberto Mondlane, ministro do Interior e elementos do SISE. Há muita pressão para que o antigo Presidente Guebuza e Nyusi sejam ouvidos como réus e não como declarantes no caso.
Foto: Romeu da Silva/DW
MINT fazia para do Comando Conjunto
O Ministério do Interior, assim como o Ministério da Defesa, eram considerados cruciais no projeto de Proteção da Zona Económica Exclusiva. O tribunal tem na lista de declarantes o antigo ministro Alberto Mondlane para prestar declarações e o papel que este Ministério teve na contratação das dívidas ocultas.