Na província de Inhambane, docentes denunciam que Governo não está a pagar por horas extraordinárias. Impasse ameaça o futuro dos professores e a aprendizagem dos alunos.
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Mais de um mês depois do início do ano letivo em Moçambique, há turmas na província de Inhambane que ainda não tiveram aulas de matemática, física e química. O alerta vem dos professores em Inhambane, que pedem soluções ao Governo para acabar com as muitas horas extraordinárias que têm de fazer, ou pelo menos para lhes pagar essa horas.
No início das aulas, em plena pandemia, os professores começaram a lecionar também aos sábados. Era uma tentativa de fazer com que os alunos não perdessem matéria importante, até porque, antes da pandemia, uma aula tinha a duração de 45 minutos; depois da Covid-19 passou a ter 25.
Na altura, avançou-se que os professores receberiam uma compensação pelo trabalho aos sábados - cerca de dois mil meticais por mês (menos de 30 euros). Mas essa compensação nunca chegou e as aulas aos sábados pararam.
"Os subsídios de sábado não foram possíveis, porque os professores não estavam a colaborar com os trabalhos. Elaborou-se um horário para evitar trabalhar aos sábados", conta Paulino Sevene, professor em Inhambane.
Horas extra não pagas
Horas extra foram outra solução apresentada, mas também não são pagas. "Na minha escola, aboliram nos princípios deste mês. Já não se fala em horas extra", afirma Morena Alguineiro, docente no distrito de Zavala.
Joaquim Vilankulo, diretor de uma escola em Inhambane, disse à DW África que os professores perderam a vontade de dar aulas, quando ouviram que não teriam pagamento das horas extra e dos subsídios dos sábados. Alegadamente, o Governo não terá dinheiro para pagar.
"O governo do distrito, quando ouviu a reclamação dos professores, orientaram-nos para abater os sábados. O governo acabou dizendo que não tem dinheiro", acrescentou a professora.
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Promessa negada
À DW, Domingos Chibiji, porta-voz da direção provincial da Educação em Inhambane, nega que o setor tenha prometido o pagamento de horas extra ou subsídios dos sábados na sequência da pandemia. "Não prometemos nada, mandou-se estas propostas ao Ministério e não nos deu resposta. No âmbito da Covid-19, não há horas extra", disse.
Mas, com tudo isto, quem fica a perder são os alunos, sublinha Carlos Zaqueu, diretor da Escola Secundária de Mucoque, em Vilankulo. Há muito mais turmas do que antes da pandemia, porque as turmas foram reduzidas e faltam professores.
O diretor diz que os docentes nas escolas estão completamente sobrecarregados. "Quatro semanas depois do início do ano letivo, algumas turmas ainda não tiveram aulas de matemática, física e química devido à falta dos professores", afirma.
Samissone Macamo, professor em Massinga, pede clareza em relação às regras das horas extra e dos sábados. Sem clareza, é difícil trabalhar: "A nossa exigência até agora é de trazer os documentos normativos que regulam o nosso funcionamento, porque nós conhecemos o regulamento anterior".
O primeiro livro escolar de matemática de Moçambique
Foi um professor alemão que escreveu o primeiro livro de ensino escolar de matemática de Moçambique, Angola e Guiné-Bissau. À volta do livro e do seu autor, Achim Kindler, há muitas histórias sobre a FRELIMO no exílio.
Foto: DW/J. Beck
Ensino de matemática no contexto africano
Quando Achim Kindler, um professor alemão vindo da Alemanha Oriental (RDA), começou a ensinar matemática aos filhos dos líderes da FRELIMO no exílio na Tanzânia, não gostou do material didático dos portugueses. Estes livros foram desenhados para um contexto europeu. Kindler achou que seriam precisos livros escolares que refletissem a vida dos africanos e evitassem estereótipos colonialistas.
Foto: DW/J. Beck
Primeiro livro de matemática moçambicano
Entre 1968 e 69, Kindler desenhou o protótipo com meios improvisados. "Usámos batatas para os gráficos", contou numa entrevista. Mas faltou dinheiro para a impressão profissional. Em 1971, igrejas evangélicas europeias prometeram pagar 50% dos custos dos livros da primeira e segunda classe (foto). O Partido Socialista Unificado da Alemanha não quis ficar atrás e a RDA pagou o resto.
Foto: DW/J. Beck
Palmeiras, tangerinas e machetes
Para a época, o visual era revolucionário. Para a adição, usou quilos de peixe descarregados por membros de uma cooperativa que se encontravam em baixo de palmeiras (à esq.). Para a divisão, o exemplo foi uma tangerina cortada com um machete. Os textos refletiam o espírito comunista da época, cheios de referências à solidariedade, às lutas operárias e aos movimentos anti-colonialistas.
Foto: DW/J. Beck
Como Achim Kindler chegou à Tanzânia
Em 1966, o líder da recém criada FRELIMO, Eduardo Mondlane, visitou a Rep. Dem. Alemã para procurar apoio na luta contra o colonialismo. Como Mondlane falava bem inglês, os representantes da RDA tiveram a impressão de que inglês seria a língua de trabalho da FRELIMO. Enviaram Kindler para apoiar o partido no exílio na Tanzânia. Depois da sua chegada, Kindler teve, primeiro, que aprender português.
Foto: Gerald Henzinger
Mondlane e o apoio da RDA à FRELIMO
Até ao seu assassinato, em 1969, Eduardo Mondlane (à dir.) teve um papel fundamental nas relações entre o Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED) e a FRELIMO. A RDA evitava o apoio direto e canalizava os fundos através do Comité de Solidariedade. Após o seu primeiro encontro com Kindler, Mondlane escreveu ao comité: "Estou muito impressionado com o grande sentido de responsabilidade dele."
Foto: casacomum.org/ Documentos Mário Pinto de Andrade
Livro para três movimentos de libertação
Antes da independência de Portugal, a carência de material didático era grande. Os livros escolares eram importados da Europa, não somente em Moçambique, mas também nas outras colónias portuguesas em África. Por isso, os livros feitos pela FRELIMO também tiveram edições especiais para os movimentos independentistas de Angola e da Guiné-Bissau e Cabo Verde, o MPLA e o PAIGC.
Foto: DW/J. Beck
Amílcar Cabral agradeceu pessoalmente
Através da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), os livros chegaram também ao Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. "No VII congresso do Partido Socialista Unificado da Alemanha, que visitei para acompanhar Samora Machel, Amílcar Cabral [líder do PAIGC] aproximou-se e agradeceu-me pessoalmente", contou Kindler.
Um efeito da associação do livro aos movimentos da luta de libertação foi a presença de armas e guerrilheiros nos exercícios matemáticos. Nos livros de matemática de Kindler, encontram-se perguntas como "Quantos guerrilheiros há no campo de manobras?", ilustrações da espingarda típica AK-47 ("Kalashnikov") ou histórias de crianças que enchem lâminas de armas com balas.
Foto: DW/J. Beck
Realidade no exílio
As igrejas que pagaram os livros não gostaram da presença de armas. Mas, para Kindler, isto era natural, pois a luta armada fazia parte da vida real das crianças. "Queremos apoiá-los na libertação ou queremos discutir se é viável lutar sem armas contra Portugal?", contou Kindler na entrevista no livro "Wir haben Spuren hinterlassen" ("Deixámos marcas", editado por Matthias Voss em 2006).
Foto: DW/J. Beck
Primeiro logotipo da FRELIMO
"Para diferenciar as edições para os diferente movimentos, colocámos logotipos na capa. O MPLA e o PAIGC já tinham logotipo, mas a FRELIMO ainda não", contou Kindler. "Desenhámos um símbolo da FRELIMO para o livro. Mais tarde, alguns elementos foram usados no primeiro logotipo oficial. Isto foi motivo de grande alegria para nós", disse Kindler na entrevista conduzida em 2005, antes da sua morte.
Foto: DW/J. Beck
Amigo íntimo de Samora Machel
Ao ensinar os filhos dos líderes da FRELIMO durante vários anos no exílio, Achim Kindler tornou-se amigo íntimo de figuras importantes do partido, como Samora Machel. Quando Machel assumiu a Presidência de Moçambique, após a independência, em 1975, Kindler foi nomeado primeiro secretário da embaixada da República Democrática da Alemanha (RDA) em Maputo.
Foto: Fundação Mário Soares/Estúdio Kok Nam
Dúvidas de lealdade
Mas o autor do primeiro livro de matemática de Moçambique não ficou muitos anos na embaixada. "Acusaram-me de ser mais moçambicano que representante da RDA", contou Kindler, que depois de encontros privados com Samora e Graça Machel teve que voltar à RDA. Pelos seus méritos, Kindler recebeu a medalha de Nachingwea, uma das ordens mais importantes da República de Moçambique.
Foto: Fundação Mário Soares/Estúdio Kok Nam
Guebuza foi buscar os documentos de Kindler
Até à sua morte, Kindler guardou um valioso espólio de documentos históricos dos primeiros anos da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Em 2007, o então Presidente de Moçambique, Armando Guebuza, deslocou-se à Alemanha e levou os documentos de volta a Moçambique. Na foto: Guebuza quando encontrou o então edil de Berlim, Klaus Wowereit, no âmbito da sua visita de Estado.