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FutebolGlobal

Mundial no Catar é coroação de Messi

Philip Verminnen
18 de dezembro de 2022

Craque argentino faz Copa impecável e tem papel decisivo na conquista da única taça que lhe faltava. Copa marcada por protestos, pioneirismos e polêmicas de arbitragem é também a que eterniza Messi no Olimpo do futebol.

Tricampeã mundial: depois de 1978 e 1986, a seleção da Argentina volta a reinar no topo do futebol mundialFoto: Julian Finney/Getty Images

A polêmica Copa do Mundo no Catar chegou ao fim e o seu desfecho não poderia ter um roteiro mais cinematográfico. A dramática vitória – somente nas grandes penalidades –  contra a poderosa seleção francesa recolou a Argentina no trono do Olimpo do futebol. Com o tricampeonato mundial, a Albiceleste reina agora sozinha como a quarta seleção mais vitoriosa em Copas, atrás somente de Brasil, Alemanha e Itália.

Mas, independentemente da conquista argentina, o Mundial de 2022 ficará nos anais do futebol muito mais pela indubitável coroação de um gênio da bola, que conseguiu encerrar seu rito pela Albiceleste com o maior dos desejos de qualquer futebolista: a conquista da Copa do Mundo.

Gerações futuras lembrarão da vigésima segunda edição de Copa do Mundo como aquela que colocou um ponto final na sempre polêmica discussão sobre quem foi melhor nas primeiras décadas do século 21: Lionel Messi ou Cristiano Ronaldo.  

Dois craques, cada um em seu lugar. Entretanto, ao passo que o português alcançou o mais alto nível muito por sua disciplina, ética de trabalho e sua obsessão física e técnica, o argentino representa a expressão natural de um talento que não é treinável, um dom quase divino. E no futebol, enquanto a eficiência tem seus dias contados por questões físicas, a magia perdura e transcende o tempo.       

Messi e Cristiano Ronaldo disputaram cinco Mundiais, mas com desempenhos bastante distintos. Enquanto o português se despede do palco supremo com nenhum golo marcado em fases mata-mata (seus nove golos em Copas igualam o recorde de Eusébio, com o diferencial que o Pantera Negra marcou todos no Mundial de 1966), o argentino disputou duas finais e foi decisivo.        

Aos 35 anos, Messi foi indiscutível o melhor jogador da Copa do Mundo de 2022 – uma honraria que ele já havia conquistado no Mundial de 2014. No deserto do Catar, ele só não fez chover, literalmente. Após susto na estreia, quando a Albiceleste sucumbiu frente à Arábia Saudita, numa das maiores zebras da história, Messi conduziu – e carregou – a seleção argentina até à grande final.

Messi incorpora espírito de Maradona

No Catar, La Pulga incorporou o espírito de Diego Maradona e fez em campo tudo aquilo que não conseguiu executar nas quatro edições anteriores. Nas sete partidas, Messi marcou em seis. Balançou as redes em todos os jogos eliminatórios – Austrália, nas oitavas de final, Países Baixos, nas quartas de final, contra a Croácia, na semifinal, e por duas vezes na grande final. E com 13 golos e nove assistências, Messi detém agora a maior participação em golos da história de todas as Copas.

Curiosamente, Messi não conseguiu brilhar da mesma forma em elencos melhor qualificados da Argentina. Em 18 anos na seleção, La Pulga foi conquistar seu primeiro título com a Albiceleste somente no ano passado: a Copa América de 2021, com golo de Ángel Di Maria, contra o Brasil. Muito por isso, chegou a ser fortemente contestado na Argentina. Depois de perder duas Copas Américas para o Chile, chegou inclusive a se aposentar da seleção.

Mas o treinador Lionel Scaloni – que inicialmente assumiu a seleção de forma interina e levou a Argentina em 2021 ao seu primeiro título internacional desde 1993 – conseguiu convencer o retorno de Messi. E agora, no Mundial de 2022, justamente quando a Argentina compilou um de seus elencos mais fracos tecnicamente, Messi brilhou e se tornou o maior artilheiro argentino em Copas.

O perdão popular pelas amargas derrotas nas Copas Américas de 2015 e 2016, além daquela do Mundial de 2014 frente à Alemanha, é evidente dada a idolatria expressada por Messi nas arquibancadas. Em números, La Pulga alcançou feitos maiores do que Maradona. Resta agora ao povo argentino colocar um segundo trono no seu átrio de jogadores míticos – a reverência divina dos hinchas tem agora dois deuses do futebol na Argentina.

Lionel Messi está nos sete céus: beijo na taça da Copa do Mundo com troféu de melhor jogador do torneio no coloFoto: CARL RECINE/REUTERS

Marrocos histórico e feitos de Embolo e Khazri

Mas além da coroação de Messi, a Copa do Mundo do Catar teve outros momentos marcantes e históricos. Destaque para a seleção do Marrocos, que com uma solidez defensiva louvável quebrou uma barreira que parecia intransponível: pela primeira vez, uma seleção africana alcançou as semifinais numa Copa do Mundo – e no caminho, eliminou adversários de calibre, como Bélgica, Espanha e Portugal. Com isso, os Leões do Atlas repetem o pioneirismo continental – em 1986, foram os primeiros africanos que conseguiram passar da fase de grupos num Mundial.   

O feito de Marrocos é também um reflexo da globalização do futebol. Dos 26 atletas convocados, 14 não eram nascidos no Marrocos. Apenas quatro seleções – Brasil, Argentina, Coreia do Sul e Arábia Saudita – não tinha "estrangeiros" em seus elencos. Ao todo, 137 jogadores convocados para o Mundial de 2022 não nasceram nos países que defendem em campo – um recorde.

E isso levou a dois casos curiosos: pela primeira vez ocorreu numa Copa a chamada "lei do ex", uma expressão utilizada quando um jogador marca um golo contra sua antiga equipa. No caso de seleções, seria contra sua terra natal, conforme ocorreu com os atacantes Breel Embolo – nascido nos Camarões e que marcou o golo da vitória da Suíça contra a seleção africana – e Whabi Khazri – nascido em território francês e que marcou o golo da vitória da Tunísia frente à França.

Nascido em Camarões, Breel Embolo marca pela Suíça contra seu país natal na fase de grupos e decide não celebrarFoto: Carl Recine/REUTERS

Stéphanie Frappart: primeiro apito feminino em Copas

Outro momento histórico ocorreu na arbitragem. Pela primeira vez uma mulher apitou uma partida da edição masculina da Copa do Mundo. A francesa Stéphanie Frappart arbitrou a goleada da Alemanha frente à Costa Rica, ainda na fase de grupos.

Mas este acontecimento histórico não foi a única manchete gerada pela arbitragem, que também esteve nos holofotes por erros crassos, que deveriam ser evitáveis com o apoio do árbitro de vídeo (VAR). Grandes penalidades contestadas foram marcadas para Argentina e Portugal – justamente as seleções dos chamarizes Messi e Cristiano Ronaldo – e outras infrações capitais claríssimas inexplicavelmente não sofreram a intervenção do VAR, como na semifinal entre Marrocos e França ou nos duelos entre Canadá e Bélgica ou entre Uruguai e Gana, que acabou por eliminar o sul-americanos.

A Copa do Mundo deixou, enfim, escancarado que o auxílio tecnológico em decisões subjetivas não cumpre com seu principal objetivo de garantir a justiça desportiva. Isso porque as regras do futebol são majoritariamente interpretativas – o importante é o árbitro em campo seguir uma linha de conduta. E dentro deste campo da subjetividade, o VAR é apenas tão eficaz quanto a eficácia dos próprios operadores. A problemática maior é que cada árbitro tem critérios diferentes e segue uma linha própria e individual de arbitragem – e que pode diferir naquela incorporada pelo árbitro na sala do VAR. Não foram poucas as críticas neste Mundial – Marrocos inclusive fê-la de forma oficial à FIFA.

No duelo Alemanha e Costa Rica, a francesa Stéphanie Frappart se tornou a primeira mulher a apitar um jogo de MundialFoto: THAIER AL-SUDANI/REUTERS

Alemanha: muita política, pouco futebol

Ainda no campo esportivo, houve também algumas surpresas. Além da campanha histórica de Marrocos, destaque positivo para as campanhas de Coreia do Sul e Japão, que em seus grupos venceram Portugal e Espanha e eliminaram Uruguai e Alemanha. Por outro lado, Bélgica e Dinamarca, duas seleções que tiveram ótimas campanhas nas eliminatórias, ficaram abaixo das expectativas – alguns especialistas inclusive colocaram a Bélgica como candidata ao título.

Mas a maior decepção certamente foi a Alemanha, eliminada pela segunda vez consecutiva na fase de grupos. Embora o elenco alemão seja carente em diversas posições, especialmente no comando de ataque e nas laterais, a campanha desastrosa da Nationalelf tem como fio condutor turbulências extracampo. O debate sobre a braçadeira de capitão com as cores que simbolizam o movimento dos direitos LGBTQ e a pressão da imprensa europeia em exigir um posicionamento político dos atletas pode ter contribuído para o desfecho melancólico.

Curiosamente, as duas nações – Alemanha e Dinamarca – que mais ativamente criticaram as condições precárias dos trabalhadores migrantes e a escassez de direitos para minorias no Catar acabaram por decepcionar em campo. O protesto dos jogadores alemães, que colocaram a mão na boca na foto oficial da equipa na estreia contra o Japão, recebeu críticas no mundo árabe.

Embora a mão na boca tenha sido um sinal de mordaça direcionada à FIFA, o gesto foi recebido também como uma intromissão europeia em assuntos árabes. A antipatia pela Alemanha foi sentida nas arquibancadas. Houve pouco apoio e até um protesto de qataris com cartazes com o rosto de Mesut Özil, que acusou a Federação Alemã de Futebol (DFB) de racismo e desrespeito em 2018, após ter sido atacado pela opinião pública alemã por ter tirado uma fotografia com o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan. Depois disso, Özil deixou a seleção alemã.

Proibida de usar a braçadeira com as cores do arco-íris, seleção alemã fez este gesto de mordaça em protesto contra a Fifa Foto: Pressebildagentur ULMER/picture alliance

Homenagens a Pelé e protestos políticos

Uma das grandes lembranças desta Copa serão as diversas homenagens a Pelé, que passou boa parte do Mundial internado num hospital em São Paulo. Torcedores e jogadores, em especial Kylian Mbappé, reverenciaram o Rei do Futebol.

Mas também não faltaram protestos de cunho político nas arquibancadas no Catar. Além de casos isolados pela causa LGBTQ, houve manifestações efusivas por parte da torcida iraniana – a República Islâmica está imersa desde meados de setembro numa onda de protestos. A onda de violência no Irã eclodiu após a morte da jovem curda Mahsa Amini, que teria sido presa pela famigerada polícia da moralidade por supostamente não vestir corretamente o véu islâmico, e gerou centenas de mortes, além de execuções sumárias de manifestantes acusados de terrorismo por Teerão. No Catar, vários relatos apontaram haver agentes da inteligência iraniana à paisana a reprimir os protestos.    

Internado em São Paulo para tratar de um infecção respiratória, Pelé recebeu homenagens de adeptos e jogadoresFoto: Kyodo/picture alliance

Melhor Copa da história? Para a FIFA, sim!

Embora pela ótica argentina, o presidente da FIFA, Gianni Infantino, tem razão quando afirmou que o torneio no Catar foi a melhor Copa do Mundo da história, é inegável que no contexto esportivo – mas especialmente político – a escolha do Catar como sede de uma Copa do Mundo foi um equívoco, no mínimo. A tradição do Catar no futebol é quase nula. E os diversos problemas sociais do emirado eram muito bem conhecidos antes da votação que elegeu Catar como sede da Copa do Mundo de 2022. Sem mencionar os tantos trabalhadores migrantes que morreram nos canteiros de obras no Catar.

No entanto, estas são questões irrelevantes para os xeques do Catar e para a FIFA. Afinal, o emirado segue sua construção de uma reputação positiva mundo afora por meio do chamado "sportswashing", com gastos espantosos em equipas de futebol ou na organização de competições internacionais de outras modalidades. E a FIFA fechou o ciclo da Copa de 2022 com o faturamento recorde de 7,5 bilhões de dólares – e um lucro de 1 bilhão de dólares.  

Com este golo, o defensor luso-brasileiro Pepe se tornou o jogador mais velho a marcar na fase mata-mata de um MundialFoto: Tom Weller/dpa/picture alliance

Recordes, recordes e mais recordes

Mas a Copa do Mundo de 2022 também foi palco de recordes esportivos. O país-sede Catar bateu a marca de pior campanha de um anfitrião na história, com três derrotas. O Mundial no deserto igualou as edições de 1982, 2006, 2010 e 2014 com o maior número de empates sem golos.

E enquanto Messi se tornou o jogador com mais partidas disputadas (26), Cristiano Ronaldo se tornou o primeiro jogador a marcar em cinco edições diferentes – o recorde anterior era de Miroslav Klose e Pelé, que marcaram em quatro Mundiais. O defensor luso-brasileiro Pepe se tornou o jogador mais velho a marcar um golo na fase mata-mata, aos 39 anos e 283 dias, na goleada sobre a Suíça.

E, apesar da decepção pela eliminação precoce, o Brasil se tornou a seleção com maior número de jogos em Copas. Brasil e Alemanha estavam empatados neste quesito – agora o placar é de 114 a 112 jogos para os pentacampeões. Além disso, o Brasil quebrou outro recorde que pertencia à Alemanha, Com as vitórias sobre Sérvia e Suíça, chegou a 17 jogos sem perder na fase de grupos – o recorde antigo era da Alemanha, que ficou 16 jogos sem perder em fase de grupos entre 1990 e 2010.

Meia-bicicleta de Richarlison contra a Sérvia: certamente um dos golos mais bonitos da Copa do Mundo 2022Foto: Simon Stacpoole/Offside Sports Photography/IMAGO

Seleção da Copa do Mundo de 2022

Compilar uma seleção dos melhores jogadores de um torneio não é das missões mais fáceis, sempre haverá discordâncias. Curiosamente, as defesas mais sólidas acabaram por perder na semifinais, portanto pode haver estranheza por poucas nomeações de jogadores finalistas neste setor. Já do meio-campo para frente, domínio total de Argentina e França.

Eis aqui uma tentativa de honrar os destaques deste Mundial no Catar:

No esquema 4-3-3: Dominik Livakovic (Croácia); Achraf Hakimi (Marrocos), Roman Saiss (Marrocos), Josko Gvardiol (Croácia) e Theo Hernández (França); Sofyan Amrabat (Marrocos), Enzo Fernández (Argentina) e Antoine Griezmann (França; Kylian Mbappé (França), Lionel Messi (Argentina) e Julián Álvarez (Argentina). Treinador: Walid Regragui (Marrocos).

Menções honrosas: Yassine Bounou (Marrocos), Nicolás Otamendi (Argentina), Alexis Mac Allister (Argentina), Aurélien Tchouaméni (França), Bruno Fernandes (Portugal), Luka Modric (Croácia) e Olivier Giroud (França).