Mutilação Genital Feminina - parte 4: o papel dos homens
Helena Ferro de Gouveia
7 de outubro de 2011
Não casar significa em muitas sociedades, onde a mulher não tem acesso a fontes de rendimento, uma ameaça existencial. Por isso só é possível deixar a mutilação envolvendo os pais, os maridos e os líderes religiosos.
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"Tradicionalmente tudo o que tem a ver com a educação das meninas é tido como um assunto de mulheres. E esse foi um erro cometido no início pelas ONGs que lutavam contra a mutilação genital feminina: trabalhar apenas com mulheres", é a experiência de Franziska Gruber, ativista da ONG alemã "Terre des Femmes".
"A experiência mostra que é muito importante envolver os homens. Porque estes em última análise são a razão pela qual a mutilação é praticada", Franziska Gruber está convicta que a mudança só é possível tendo em consideração a componente masculina.
Desigualdade de género
Mutilação Genital Feminina - parte 4: o papel dos homens no abandono da prática
Nos países onde se pratica a mutilação genital feminina esta é uma manifestação de desigualdade de género profundamente enraizada em estruturas de ordem social, económica e política. Tal como a extinta prática de enfaixamento dos pés das mulheres na China, a mutilação representa uma forma de controlo social sobre as mulheres e a sua vida sexual. “Mulheres excisadas são vistas como puras, como mulheres fiéis, como mulheres que chegam virgens ao casamento”, explica Franziska Gruber.
Nas comunidades onde é praticada de uma forma generalizada a mutilação é geralmente defendida de forma acrítica quer por mulheres, quer por homens. E quem a ela se opõe pode estar sujeito à perseguição, à desonra e ao ostracismo. O medo de ser excluído socialmente ou de não arranjar um marido contribui para perpetuar esta prática.
Não casar significa em muitas sociedades, onde a mulher não tem acesso a fontes de rendimento, uma ameaça existencial. Por isso é muito difícil conseguir que a mutilação seja abandonada sem envolver os homens: pais, maridos, líderes religiosos e a comunidade alargada.
Amdou Kani é um pai que dá a cara contra a mutilação numa campanha da UNICEF. “Eu tomei a decisão de não excisar a minha filha. A família em África pressionou-me muito. Mas sou inflexível nesta questão. No século em que vivemos é inimaginável que uma mulher seja mutilada”.
O benefício de casar com uma mulher intacta
Apesar de a mutilação genital feminina ainda ser vista por muitos homens como um “assunto de mulheres”, há estudos que mostram que alguns homens se preocupam com as consequências físicas e psicológicos da mutilação e que preferem casar com mulheres que não tenham sido sujeitas a esta prática.
"É importante tornar claro aos homens que eles beneficiam do facto de terem uma mulher intacta. Uma mulher sem dores no acto sexual, que não corre o risco de perder o bebé durante o parto", sublinha Franziska Gruber. "É por isso importante envolver os homens e os líderes religiosos porque eles têm peso nas suas aldeias ou cidades. Se estes líderes disserem que a mutilação genital não tem nada a ver com o Corão então eles também podem dar um importante contributo para que esta prática acabe”.
Nenhum livro sagrado prescreve a excisão.
Nalgumas comunidades a mutilação é suportada por crenças de ordem religiosa. Ainda que esta prática possa ser encontrada entre cristãos, judeus e muçulmanos, nenhum dos seus livros sagrados prescreve a excisão.
O Íman da Mesquita Central de Lisboa, Sheikh David Munir, é muito claro na condenação da prática: "Esta prática nada tem a ver com o Islão, pelo contrário o Islão condena. Esta prática é um pecado".
Mutilação genital feminina: uma tradição que teima em persistir
A mutilação genital feminina (MGF) persiste em muitos países africanos, apesar de ser proibida oficialmente. Os Pokot, no Quénia, são uma das etnias que continuam a levar a cabo esta prática.
Foto: Reuters/S. Modola
Uma lâmina para todas
Esta lâmina foi usada para mutilar quatro raparigas do Vale do Rift, no Quénia. Para o povo Pokot, o ritual marca a passagem de menina para adulta. Apesar de esta tradição brutal ser proibida por lei, muitas raparigas continuam a ser sujeitas à mutilação genital feminina (MGF), sobretudo em zonas rurais.
Foto: Reuters/S. Modola
Preparativos para a cerimónia
As meninas e mulheres Pokot aquecem-se junto à fogueira às primeiras horas da manhã. Quem não se submete à MGF tem menos hipóteses de casar. A integração das mulheres e a sua sobrevivência económica depende do casamento, principalmente nas áreas rurais. Aquelas que se recusam a participar são renegadas pela sociedade ou até mesmo expulsas.
Foto: Reuters/S. Modola
É impossível dizer "não"
Antes de se proceder ao ritual, as raparigas são despidas e lavadas. Elas sabem de antemão que, tal como as suas mães, vão ter problemas de saúde: quistos, infeções, infertilidade, complicações no parto. A mutilação genital feminina continua a ser praticada em 28 países africanos, na península Arábica e na Ásia. Também há filhas de emigrantes na Europa que são mutiladas.
Foto: Reuters/S. Modola
Espera angustiante
Estas raparigas Pokot esperam pela cerimónia de circuncisão na província de Baringo, no Vale do Rift. O Quénia proibiu a mutilação genital feminina em 2011, 27 por cento das quenianas entre os 15 e os 49 anos foram submetidas a esta prática, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Na maioria das vezes não se usa anestesia e o material não é desinfetado.
Foto: Reuters/S. Modola
Ritual mortífero
Cerimónia de circuncisão: Os Pokot esperam que as raparigas sejam corajosas e não gritem. Segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS), 10% das raparigas morre durante esta cerimónia e 25% morre devido a complicações associadas. Na Guiné-Bissau, metade das mulheres entre os 15 e os 49 anos foi submetida a esta prática, segundo a UNICEF. Na Somália, o número ronda os 98%.
Foto: Reuters/S. Modola
Pedra ensanguentada após o ritual
A forma como se faz a excisão varia de etnia para etnia. Os Pokot fecham a abertura vaginal. A OMS distingue três tipos de MGF: no tipo 1, o clítoris é retirado. No tipo 2, retira-se o clítoris e os pequenos lábios. No tipo 3, a infibulação, os grandes lábios também são retirados e a abertura vaginal é fechada.
Foto: Reuters/S. Modola
Tingir o corpo de branco
Tingir o corpo de branco faz parte do ritual dos Pokot. Em muitos países há campanhas de esclarecimento, para alertar para os perigos da mutilação genital feminina. Mas só lentamente as campanhas dão frutos. No Quénia, há desde 2014 uma unidade da polícia que trata de questões relacionadas com a MGF. Há também uma linha SOS que recebe denúncias.
Foto: Reuters/S. Modola
Trauma para a vida
Após a cerimónia, as raparigas são cobertas com peles de animais e recolhidas para um local onde podem descansar. Na ótica dos Pokot, elas estão prontas para casar e podem receber um dote maior. Alguns povos acreditam que as mulheres submetidas à MGF são mais férteis e fiéis ao seu marido. Quando se faz uma excisão não há volta atrás. Não é possível reverter a mutilação com operações plásticas.
Foto: Reuters/S. Modola
De mãe para filha?
Esta rapariga nunca mais vai esquecer a mutilação. Em alguns países, a excisão é realizada em bebés. Sendo uma prática ilegal, um bebé a chorar dá menos nas vistas do que uma rapariga a sofrer de dores o tempo inteiro.