Entrevista exclusiva com Carlos Gomes Júnior
4 de agosto de 2012 Após o golpe de Estado de 12 de abril, Carlos Gomes Júnior concedeu uma entrevista exclusiva à DW África. O primeiro-ministro guineense deposto partilhou os momentos de bombardeamento à sua residência, durante o golpe, e as ameaças que sofreu durante a sua detenção.
Sem entrar em detalhes, Gomes Júnior responsabiliza alguns países da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) pela instabilidade no país. Exige que os responsáveis pelo golpe de Estado sejam chamados à justiça e afirma que está pronto para voltar, assim que estejam reunidas as condições necessárias.
Carlos Gomes Júnior vincou a sua posição em entrevista, realizada em Cabo Verde, no domingo, 29 de julho, dia em que se encontrou com cerca de 500 membros da comunidade guineense na Cidade da Praia. Já na segunda e terça-feira (30 e 31.07.2012), o chefe de executivo deposto marcou presença no Comité África da Internacional Socialista, na qualidade de presidente do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).
DW África: Como é que viveu aqueles momentos do dia do golpe de Estado, 12 de abril?
Carlos Gomes Júnior (CGJ): Falando com sinceridade, devo dizer que foram momentos muito dramáticos. Felizmente, consegui ultrapassar. A grande onda de solidariedade de pessoas amigas, familiares, do estrangeiro, da juventude, militantes e da direção do PAIGC, fez-me voltar a ganhar confiança para prosseguir a luta.
A quem é que serve esta instabilidade para o país voltar à estaca zero? Falo com toda a sinceridade, se nós não voltarmos a pôr cobro a este tipo de comportamento, quiçá penalizar os autores, como a comunidade internacional está a começar a fazer agora, a Guiné-Bissau nunca mais sairá deste marasmo.
DW África: Aquando do bombardeamento estava em sua casa?
CGJ: Sim. Quando me alertaram [para o golpe] estava no partido. Viram-se carros com militares e carros civis. Estavam à minha espera.
Ainda saí do partido, fui a casa do comandante Manuel Saturnino Costa, depois fui para casa. Mal entrei em casa, começou o bombardeamento com rajadas. Depois de dominarem a minha segurança, começaram os bombardeamentos com morteiros, com bazucas. Para prender um primeiro-ministro é preciso todo esse aparato? Então, já havia planos bem delineados da eliminação física do primeiro-ministro.
Mesmo assim, eu podia ir para uma embaixada. Imagine que eu ia para a embaixada de Angola. Eles iam, certamente, tentar tirar-me da embaixada. Iria haver reação, mortes, amanhã iriam dizer, como tentaram dizer, que Carlos Gomes trouxe tropas de Angola para o proteger. Não, eu sou um cidadão comum. Sou pessoa de bem, todas as pessoas me conhecem pelo meu trabalho, tanto ao nível empresarial como político. Eu não sou violento, ninguém me conhece por ser violento, embora haja toda uma campanha para me porem o rótulo de matador.
DW África: Circulam também informações contraditórias de que terão sido elementos do general António Indjai, Chefe das Forças Armadas da Guiné-Bissau, que o levaram para sua segurança ou então de que o levaram para o prender.
CGJ: O que eu sei é que eles me prenderam e me disseram para os acompanhar. Puseram-me sentado no chão, depois levaram-me para S. Vicente. A minha mulher foi levada para o quartel d’Amura. A minha casa ficou totalmente danificada. Saquearam completamente a minha casa. O mobiliário que não conseguiram abrir foi aberto a tiro. Está filmado e fotografado.
Em todo o país democrático tem de haver justiça e todos esses atos eu vou trazê-los à justiça. Eu vou exigir que essa gente seja trazida à justiça.
Nós não podemos ter uma força de segurança, umas Forças Armadas, para proteger o Presidente da República, proteger o primeiro-ministro com todo o aparato e, de um dia para o outro, resolvem bombardear e saquear tudo. Em nome de quê? Em nome da lei? Que lei? Não é possível continuarmos nesta onda de violência.
DW África: A sua esposa foi depois levada para casa novamente? No dia seguinte ao golpe de Estado foi vista de manhã cedo em casa.
CGJ: Ela foi levada para casa naquela noite [de 12 de abril]. Mesmo em frente dela roubaram-lhe coisas, a carteira com dinheiro e documentos. Puseram-na sentada numa cadeira a ver a sua casa ser delapidada. E, como sabe, a minha mulher é cônsul honorária de Cabo Verde. Nem aí as pessoas perceberam a irresponsabilidade do seu ato. Foram ao escritório, com a bandeira de Cabo Verde, onde ela trabalha, e saquearam o cofre, saquearam tudo.
DW África: Porque é que não se preveniu sabendo que um golpe poderia acontecer a qualquer momento na Guiné-Bissau? Creio até que a segurança do Estado já lhe tinha dado o alerta.
CGJ: Sim. Mas eu decidi, de uma vez por todas, mesmo que me custasse a vida, que eu não iria para embaixada nenhuma. Portanto, eu preferi ficar para que o mundo testemunhasse, de facto, que aquilo a que nós apelamos, ou seja, a reforma no sector de Defesa e Segurança, é uma necessidade urgente da Guiné-Bissau. Caso contrário, os investidores estão a deitar dinheiro à rua, porque estão a fazer investimentos que amanhã não terão retorno, pois vão entrar num país instável.
E nós queremos provar aos investidores que a Guiné-Bissau tem potencialidades. Isso é que fez com que Angola concedesse a linha de crédito para o desenvolvimento da Guiné-Bissau. Não é só para a reforma do sector de Defesa e Segurança, havia linhas de crédito para o setor privado. Infelizmente foi tudo deitado por água abaixo.
DW África: Como é que vê a atual situação na Guiné-Bissau? Que informações tem da Guiné neste momento?
CGJ: Eu quase todos os dias falo com a direção do partido (PAIGC). Quero aproveitar para os felicitar, encorajar a nossa juventude pela resistência que tem feito para o retorno à ordem constitucional.
Não vale a pena fazer-se uma campanha, correndo todo o país, mobilizando a população, militantes, garantindo dias melhores, a execução de um programa de governação que vá trazer mudanças na vida dos seus familiares. Valerá a pena para, daí a dois ou três dias, se tirar o partido que ganhou as eleições para se pôr um partido da oposição, com a conivência das próprias Forças Armadas. Porquê?
DW África: A partir do golpe de Estado começaram as divergências com a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental, CEDEAO. A que se devem essas divergências?
CGJ: Não é só a CEDEAO. É meia dúzia de países da organização regional que, usando abusivamente o nome da CEDEAO, fizeram este golpe de Estado, com a conivência dos nossos militares.
Há países que não se sentem à vontade de ver a Guiné-Bissau a desenvolver-se. Porque nós conseguimos, com a nossa governação, provar à comunidade internacional que a Guiné é viável.
O porto de Buba já era uma realidade. O Presidente [angolano] José Eduardo dos Santos e o governo empenharam-se, diretamente, para a viabilização do projeto ainda este ano. O porto de Buba iria representar emprego para mais de três mil jovens, ia garantir escoamento de produtos porque iria ter capacidade de receção de navios até 240 mil toneladas. Seria um porto que seria concorrente direto do porto de Dacar [Senegal]. Iria ter linhas de caminho de ferro que faria Buba, Guiné-Conacri e Mali.
Já recebemos a visita do primeiro-ministro [cabo-verdiano] José Maria Neves, em que mostramos as potencialidades em nos podermos ligar a empresários de Cabo Verde, de se criar um parque industrial em Buba, com parcerias com o Brasil, Portugal, e também com empresários angolanos que estavam interessados, para importar produtos, exportar para os países limítrofes. E tentar também exportar produtos da Guiné-Bissau. Havia já empresas brasileiras que já estavam interessadas em transformar as nossas frutas em calda para exportação. Havia toda uma perpetiva de emprego, sobretudo de emprego jovem. Portanto, nós pensamos que os dirigentes da Guiné-Bissau têm que parar com esta política de baixo nível.
Brincam com o sentimento das pessoas, dos familiares. Veja o caso de Roberto Cacheu [deputado do PAIGC que está desaparecido], de quem não se sabe o paradeiro desde o dia 26 de abril. Inventaram histórias de que o Carlos Gomes é que ordenou. Dois dias depois, apareceu no "Expresso Bissau" um relato, talvez da parte verídica da história. E, há dias, houve uma cena rocambolesca em que disseram que foram cavar uma sepultura que diziam ser de Roberto Cacheu, para não encontrarem nada.
DW África: E qual a sua versão sobre o que aconteceu ao deputado desaparecido do PAIGC Roberto Cacheu?
CGJ: Ninguém sabe. Porque se mataram tem que se ver o corpo. Nós ouvimos as declarações dos responsáveis militares de que era um golpe de Estado. Estavam militares presos. E porque é que não falaram desse caso? Só depois de dois, três meses do golpe de Estado, agora é que vão ter a versão definitiva para explicar, quando garantiam a todos que estava no seminário de padres?
Agora esses políticos, que não têm nem sequer um deputado no Parlamento, é que são os detentores da verdade?
Estamos à espera. Pensamos que o povo da Guiné é um povo maduro, não se vai deixar enganar facilmente. Vamos aguardar, pois a justiça tem o seu fórum próprio.
DW África: No encontro com a comunidade guineense em Cabo Verde, no dia 29 de julho, disse que não mandou bombardear a casa de Roberto Cacheu. Pode-se entender que é uma crítica ao general António Indjai, Chefe das Forças Armadas guineenses?
CGJ: Eu não chamo o nome de ninguém. Como disse, o povo da Guiné é um povo maduro. Penso que a justiça e a investigação têm os seus fóruns próprios. Deixemos a justiça trabalhar. Um dia há-de saber-se a verdade. Um dia, os familiares, os amigos hão-de saber quem é que está a fazer barbaridade na Guiné-Bissau. Por isso é que enviamos uma carta ao secretário-geral das Nações Unidas, solicitando a instalação de um tribunal ad hoc para julgar todos os crimes de sangue cometidos na Guiné-Bissau.
DW África: Após o golpe de Estado, seguiu de Bissau, juntamente com o Presidente Raimundo Pereira para Abidjan, na Costa do Marfim. As informações que circularam é de que estaria numa espécie de prisão domiciliária. Confirma?
CGJ: Não é o momento de a gente, talvez, relatar isso. Há-de chegar um dia em que vamos contar a nossa história.
DW África: Recentemente, o Conselho de Segurança da ONU anunciou que o narcotráfico aumentou, na Guiné-Bissau, depois de 12 de abril. Acha que o golpe de Estado teve ligações ao mundo da droga?
CGJ: Quando fomos afastados do poder pelos militares, a 12 de abril, pensamos que a Guiné-Bissau era já vista com um certo respeito pelos seus parceiros. Agora se há aumento de criminalidade, a CEDEAO, que declarou tolerância zero, que assuma a responsabilidade.
DW África: Até 12 de abril, data do golpe de Estado, como eram a suas relações com o general António Indjai, Chefe das Forças Armadas da Guiné-Bissau?
CGJ: Sempre tivemos um bom relacionamento. É alguém que sempre declarou que nunca daria mais um golpe de Estado, que seria fiel ao governo legitimamente eleito. Portanto, quando chamaram o nome dele, de que estaria a chefiar o golpe de Estado, para mim foi uma surpresa.
DW África: Soube do nome de António Indjai ainda na prisão ou já depois de ter saído?
CGJ: Ainda na prisão já se ouvia falar do nome dele. Porque, de facto, não é normal que toda a chefia do Estado Maior das Forças Armadas se tivesse mantido. Portanto, isso foi um plano muito bem orquestrado.
DW África: Na prisão não foi mal tratado?
CGJ: Penso que não é um lugar condigno para um primeiro-ministro nem para um Presidente da República, mas não podemos dizer que fomos mal tratados. Mas houve situações um bocado preocupantes durante a nossa detenção, com sérias ameaças à nossa integridade física.
DW África: Ameaças do tipo de que teria de assinar a renúncia?
CGJ: Do género de assinar a renúncia, de o Presidente da República dar autorização para as Forças Armadas entrarem na Guiné-Bissau, o que nunca aceitamos e não assinamos documento nenhum.
DW África: E a suas relações com o anterior Presidente guineense Malam Bacai Sanhá?
CGJ: Nós somos pessoas de bem, nós respeitamos sempre os mais velhos. Apesar das nossas contradições políticas, houve sempre um relacionamento de respeito. Até à sua morte [em dezembro de 2011], toda a assistência que pude dar, enquanto chefe de governo, dei-lhe assim como à sua família. É uma profunda dor o seu desaparecimento físico, porque penso que, apesar das contrariedades, discutia-se e tomava-se decisão.
DW África: E como é que compreende que os principais colaboradores do anterior Presidente Malam Bacai Sanhá tenham apoiado, durante as eleições presidencias, o candidato Serifo Nhamadjo? Até mesmo familiares de Malam Bacai Sanhá estão agora com Serifo Nhamadjo.
CGJ: Eu penso que isso são ainda reflexos do Congresso de Gabu. Penso que um político deve saber ganhar e perder. É caricato que o próprio Serifo Nhamadjo, que era o presidente da comissão da verdade e reconciliação a nível do parlamento da Guiné-Bissau, pensávamos que, de facto, era uma pessoa que estava a trabalhar pela reconciliação da família guineense. Estranhamente vêmo-lo hoje numa outra barricada.
DW África: E quanto ao seu regresso à Guiné-Bissau?
CGJ: Nem que seja amanhã. Eu estou a trabalhar para que a comunidade internacional assuma a sua responsabilidade perante o povo da Guiné-Bissau.
DW África: Está à espera então que as condições sejam criadas para poder regressar?
CGJ: Sou homem, não tenho medo seja de quem for. Quando jurei servir o país, servir a memória de Amílcar Cabral [político guineense que esteve envolvido na fundação do PAIGC], jurei do fundo do coração. E não há nenhum homem que me possa fazer frente. Eu estou pronto a ir à segunda volta [das eleições presidenciais] para que, de facto, (...) se possa concluir o ciclo eleitoral [interrompido com o golpe de Estado].
DW África: Regressa ainda este ano de 2012 à Guiné-Bissau?
CGJ: Assim que forem criadas condições pela CNE (Comissão Nacional de Eleições), assim que as Nações Unidas conseguirem criar condições para uma força multinacional com a participação de todos os parceiros da Guiné-Bissau. Eu, Carlos Gomes Júnior, jurei servir o meu país. Nem que isso me leve à morte, eu vou servir o meu país.
DW África: Isso quer dizer então um regresso à situação constitucional na Guiné-Bissau entes de 12 de abril?
CGJ: A CEDEAO garantiu que transição é por um ano, esperemos que assim seja. Já se passaram mais de três meses e eu não estou a ver nada a evoluir nesse sentido. Mas, pelas decisões que têm sido tomadas no Conselho de Segurança, estamos convencidos de que as coisas vão mudar.
Autor: Nélio dos Santos (Cidade da Praia)
Edição: Glória Sousa/Madalena Sampaio