A Privinvest terá contribuído com um milhão de dólares para a campanha de Filipe Nyusi, em 2014, segundo Jean Boustani, em julgamento nos EUA. Mas o Presidente pode ter argumentos de peso a seu favor, dizem analistas.
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Nem tudo está perdido para o Presidente de Moçambique pelo facto de supostamente ter recebido dinheiro da Privinvest. Segundo analistas ouvidos pela DW África, por um lado, qualquer um pode financiar a campanha eleitoral de um candidato no país, o que não se processa exatamente para os partidos políticos. Por outro lado, além da imunidade enquanto estadista, Filipe Nyusi pode "safar-se" ainda com um argumento abstrato: a consciência sobre a origem problemática ou não dos fundos.
Segundo o depoimento de Jean Boustani, a Privinvest, empresa para que trabalha, contribuiu com um milhão de dólares para a campanha eleitoral de Filipe Nyusi às presidenciais de 2014. Boustani revelou, no julgamento que decorre nos EUA relacionado às dívidas ocultas, que o dinheiro para Nyusi foi enviado para a Sunflower International, empresa sedeada em Abu Dabi, Emirados Árabes Unidos.
A confirmar-se a veracidade deste depoimento, como teria de ser tratado este o caso ao abrigo do quadro legal moçambicano? "Honestamente, olhando para as questões como estão, não me parece que exista ilicitude", considera o jurista Rodrigo Rocha.
Em causa, explica, está o facto de se tratar de um financiamento de campanha: "Aquilo que percebemos é alguém a receber um valor com um destino próprio, uma campanha eleitoral. E a lei permite que as campanhas eleitorais possam ser financiadas por privados".
Nyusi e dívidas ocultas: Irá o Presidente prestar contas?
Por outro lado, adianta o jurista, é preciso também ter em conta o conhecimento ou não da origem do financiamento: "Não há como chegar à conclusão de que o beneficiário tenha tido consciência ou necessidade de ter a consciência da eventual proveniência dos fundos".
Imunidade e outras bengalas
Mesmo que se provasse alguma ilegalidade por parte de Filipe Nyusi, o chefe de Estado não responderia à Justiça, pois está protegido pela imunidade enquanto Presidente da República. Mas, findo o seu mandato, o caso muda de figura. E esta não seria a única bengala do Presidente moçambicano: o facto de não ter sido o seu partido a receber o dinheiro, mas sim o próprio Filipe Nyusi, é outra bengala que o deixaria em posição tranquila.
"A eleição para o partido está sujeita à lei dos partidos políticos, [mas] o mesmo não acontece para os candidatos [presidenciais]. Qualquer pessoa pode financiar a campanha eleitoral de um determinado candidato", explica Rodrigo Rocha. Assim, Filipe Jacinto Nyusi "safar-se-ia" de prestar contas, mesmo tratando-se de dinheiro de uma dívida comercial que foi ilegalmente tornada pública e parte do dinheiro usado para interesses partidários.
Mesmo sabendo-se que o dinheiro provém de um caso criminoso como as dívidas ocultas, em que há indícios de pagamento de comissões e subornos, o Presidente da República pode também ter a seu favor um argumento abstrato: a consciência. "Nunca são irrelevantes [informações sobre a proveniência do dinheiro de um caso criminoso] porque servem para determinar a consciência ou não da proveniência ilícita dos fundos", sublinha o jurista. "Agora, se a justificação que aparece lá para ter recebido os fundos for para financiar a campanha eleitoral, não me parece que haja grande argumento, a não ser a eventual consciência da ilicitude da proveniência ilícita dos fundos para dizer que isto está no bolo do resto das comissões", acrescenta.
Caso para demissão?
Tanto o Presidente da República quanto o seu partido, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), estão com a sua imagem manchada por este caso das dívidas ocultas, que é considerado um dos mais corruptos da história do país. Com a citação do nome de Filipe Nyusi, seria caso de vir a público prestar esclarecimentos?
"Eu acho que o povo moçambicano merece [um esclarecimento] porque as pessoas não podem andar na dúvida sobre a imagem de um chefe de Estado. Penso que nalgum momento haverá um posicionamento", considera o analista político Pedro Nhacete.
É comum em democracias consolidadas os servidores públicos demitirem-se em casos em que os seus nomes são associados a ilegalidades e irregularidades, uma prática que ainda não chegou a Moçambique, uma democracia embrionária. Mas isso traz consequências para o país, lembra Nhacete: "Vai ter um impacto negativo, tanto no aspeto político como para a figura do próprio Presidente, embora o caso tenha acontecido antes dele ser Presidente, é preciso sublinhar isso. Se tivesse acontecido agora [durante o seu mandato] teria a sua imagem quebrada."
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)