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CriminalidadeMoçambique

O caminho das drogas em Moçambique

7 de abril de 2023

Moçambique é uma das principais plataformas no tráfico internacional de drogas. Especialistas temem que o crime organizado tenha capturado o Estado moçambicano.

Foto: picture-alliance/dpa/J. Woitas

"Consumi drogas pesadas, cocaína, heroína. Vivi na rua. Roubei. Fiquei sem um pulmão e fiquei internado no hospital durante sete meses", conta José Carlos. Recordar esses momentos é "como se estivesse a levar uma facada", acrescenta o cidadão moçambicano em entrevista à DW África.

José Carlos foi toxicodependente, mas parou de consumir há oito anos.

"Fui um jovem que esteve perdido durante mais de 15 anos no mundo das drogas. Hoje, graças a Deus, estou recuperado. Casei e tenho família."

Ele conseguiu libertar-se do vício. Mas em Moçambique há cada vez mais jovens a consumir drogas. 

De acordo com o Gabinete Central de Prevenção e Combate à Droga, entre 2020 e 2021, houve um aumento de 14% de casos de toxicodependência em Moçambique. Foi uma subida de cerca de 9.700 casos, em 2020, para mais de 11.100, em 2021.

Os especialistas consideram que esta subida é fruto da pobreza no país e da falta de oportunidades, mas também do tráfico de droga. Segundo vários relatórios internacionais, Moçambique é uma das plataformas importantes do tráfico na região austral de África.

Este não é um fenómeno novo. No entanto, a detenção em Maputo, em 2020, de Gilberto Aparecido dos Santos 'Fuminho' – ligado ao Primeiro Comando da Capital (PCC), uma das grandes fações do tráfico de drogas no Brasil – voltou a fazer soar os alarmes.

Haxixe, heroína, cocaína e metanfetamina estão no topo das drogas que mais transitam por Moçambique com destino à África do Sul e, depois, para a Europa.

Rotas do tráfico

De acordo com a Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional, a principal rede de entrada de drogas em Moçambique está ligada à máfia paquistanesa, que introduz principalmente o haxixe e a heroína vindos do Afeganistão. A droga é transportada por navios em contentores até aos portos de Mombaça, no Quénia, e Zanzibar, na Tanzânia – dois países que ficam no extremo norte de Moçambique.

De lá, a droga segue para Moçambique, principalmente por via marítima, entrando pelos portos de Pemba, Mocimboa da Praia e Palma, na província nortenha de Cabo Delgado. Outros pontos de entrada são Angoche, Mossuril, Ilha de Moçambique, Moma e Nacala, na província de Nampula, ainda no norte de Moçambique; Macuse e Quelimane, na província da Zambézia; e Beira, em Sofala, no centro do país.

Aunício da Silva, editor do Jornal Ikweli, editado em Nampula, diz que em cada um destes portos moçambicanos há um tipo específico de drogas que por aí transita. "Em Angoche, por exemplo, era a questão do haxixe. Sempre circulou haxixe por esta região. Mais para o norte, em Nacala, Pemba, Mocimboa da Praia e Palma predominava mais a cocaína", aponta da Silva.

Aunício da Silva, editor do Jornal IkweliFoto: Sitoi Lutxeque/DW

Vários estudos referem que, nestas regiões, a droga é reempacotada em pequenas quantidades, seguindo depois via terrestre até aos mercados sul-africanos.

O aeroporto internacional de Maputo será outro ponto de entrada de drogas, principalmente a cocaína, que se presume que venha da América Latina.

Terrorismo em Cabo Delgado

O jornalista Aunício da Silva observa que, com a presença das empresas de exploração de hidrocarbonetos em Cabo Delgado e o combate militar aos terroristas na província, os traficantes começaram a ser empurrados para o sul do país.

"Começaram a descer para Nampula e para a Zambézia. Começou a entrar muita cocaína e outro tipo de drogas, como metanfetamina, através de Nacala, Mossuril, Memba. Angoche também começou a receber cocaína, que nunca recebia antes", revela o editor do Ikweli.

O jornalista investigativo Luís Nhachote alerta que, enquanto a guerra em Cabo Delgado continuar, há o risco de os narcotraficantes abrirem novas frentes em Moçambique.

Luís Nhachote, jornalista investigativoFoto: Luis Nhachote

O porto de Nacala, o terceiro mais importante do país, é atualmente um dos caminhos mais usados para o tráfico de drogas, com o envolvimento de alguma elite local, diz Nhachote, que estuda este fenómeno há vários anos.

"Aliás, quem olha para a economia local espanta-se pelo facto de pequenos grupos comerciais no norte, sobretudo em Nacala e Nampula, terem fortunas enormes que não se justificam ao nível das dinâmicas económicas de que quem está a vender geleiras, mas está a andar de Lamborghini e Ferrari", observa Nhachote.

Apreensões

Os tentáculos do tráfico de drogas parecem estender-se em várias frentes.

Em fevereiro deste ano, a polícia apreendeu 472 quilos de heroína numa praia do distrito da Ilha de Moçambique, na província de Nampula. Foi três vezes mais do que as apreensões em 2020 inteiro. A droga estava a ser baldeada de uma pequena embarcação para uma viatura. 

O Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC) disse que a droga pertencia a um cidadão que se encontra preso, acusado de tráfico internacional de drogas. E, segundo a porta-voz do SERNIC em Nampula, Enina Tsinine, esse cidadão continuava a comandar o tráfico a partir da cadeia.

"Ele é proprietário de algumas embarcações que facilitam o tráfico das mesmas [drogas]", disse Tsinine em conferência de imprensa, acrescentando que "foi possível rastrear algumas chamadas telefónicas dele no estabelecimento prisional, dando orientações ao seu gerente e irmão para darem continuidade da entrega da mercadoria aos respetivos donos".

O SERNIC apreendeu, em fevereiro, 472kg de heroína na Ilha de MoçambiqueFoto: Getty Images/AFP/O. Sierra

Para o jornalista Aunício da Silva, estas apreensões de drogas são um pequeno grão de areia no panorama geral do narcotráfico em Moçambique.

"Normalmente, quando se apreende uma certa quantidade de droga é porque uma outra maior já passou", refere da Silva. "Pode-se apreender uma certa quantidade que, a olho comum, parece bastante, mas para os traficantes não é grande coisa. E nunca será revelado quem está por detrás disso".

No informe anual de 2022, a Procuradora-Geral da República de Moçambique, Beatriz Buchili, salientou que os narcotraficantes continuam a usar o país como trânsito de drogas pesadas para a Índia, China e Estados Unidos. Porém, nem toda a droga sai do país. Alguma é posta em circulação no mercado nacional.

Tráfico interno de droga

José Carlos diz que, atualmente, a droga está muito mais acessível do que nos tempos em que consumia.

"Na altura em que comecei a fumar, não havia muitos sítios a vender drogas. Mas hoje em dia, os próprios vendedores já se aproximam das escolas e andam nos bairros a vender droga. Vende-se droga como se estivesse a vender pão ou doces na rua", comenta.

José Carlos é hoje um ativista ligado à REMAR, uma organização não-governamental que trabalha na reabilitação de toxicodependentes. De janeiro a fevereiro deste ano, a instituição recebeu mais de 70 adolescentes e jovens que procuram por reabilitação.

"Estamos a falar de jovens dos 13 aos 18 anos. Muitos deles abandonaram à escola. É muito grave", lamenta José Carlos.

Há muita droga a circular no mercado moçambicanoFoto: DW/B. Darame

Há cinco anos que Isaac (nome fictício) cumpre tratamento na REMAR para tentar vencer uma batalha de mais de uma década consumindo drogas. Começou a consumir aos 10 anos de idade, hoje tem 29.

"Comecei na escola Josina Machel [cidade de Maputo] a convite de um amigo. Fumei cannabis sativa, depois cheirei cocaína e comecei a consumir ecstasy em comprimidos", conta Isaac.

O jovem disse à DW África que a droga é vendida em todo o lado, pelo menos na cidade de Maputo, "desde as escolas, nas festas, nas discotecas. O acesso é muito fácil".

Pressão internacional?

A Procuradora-Geral da República, Beatriz Buchili, informou no ano passado que, em 2021, foram instaurados cerca de 700 processos-crime contra vários cidadãos, nacionais e estrangeiros, acusados de tráfico e consumo de drogas.

O Gabinete Central de Combate à Criminalidade Organizada e Transnacional anunciou recentemente a apreensão de nove casas e 27 viaturas de luxo na província de Maputo. Presume-se que tenham sido adquiridas em esquemas de lavagem de dinheiro vindo do tráfico de drogas.

Beatriz Buchili, Procuradora-Geral de MoçambiqueFoto: Roberto Paquete/DW

Em conexão com o caso foram detidas sete pessoas, cinco de nacionalidade moçambicana e duas estrangeiras. 

Lázaro Mabunda desconfia que estes processos têm a ver com a pressão internacional, cada vez maior, para estancar o tráfico internacional de drogas. "O negócio tornou-se bastante exposto e há um aperto muito cerrado dos circuitos internacionais de tráfico de drogas", refere.

Tudo isso, diz o jornalista, "obriga a que a elite política abandone o negócio e comece a atuar contra os traficantes, ou há novos atores que estão muito interessados em acabar com este negócio e, dentro da própria elite política, não há um acordo sobre a continuidade do negócio. Então, quem está fora do negócio detém o poder e ordena que haja apreensões", sublinha Mabunda.

Redes de traficantes vs. ligações políticas

Um relatório do Instituto de Estudos de Segurança de África sobre o crime organizado aponta duas principais redes de traficantes de drogas que operam em Moçambique: a primeira estará presente no país desde 1992 e será responsável pelo tráfico de cocaína, envolvendo cidadãos colombianos, chilenos e espanhóis, entre outros. A segunda rede opera no tráfico de haxixe, heroína e mandrax e será comandada pela máfia paquistanesa, também com alguns moçambicanos.

Outros estudos denunciam a possibilidade de existência de uma terceira rede, comandada por traficantes nigerianos, supostamente com fortes ligações a poderes políticos nacionais.

Lázaro Mabunda, jornalista de investigaçãoFoto: DW/A. Cascais

De acordo com o jornalista Lázaro Mabunda, há linhas de contacto entre os traficantes e alguns setores do Estado. "Esses são negócios que não envolvem qualquer pessoa. Envolvem figuras renomadas que controlam o próprio Estado moçambicano, que é mais fácil de alertar em caso de algum perigo", diz.

Aunício da Silva concorda. E aponta alguns fatores que facilitariam esta ligação.

"A fragilidade institucional e a corrupção fazem com que quem deveria fiscalizar seja facilmente corruptível – por um lado, por causa dos baixos salários e, por outro, pela ambição de um enriquecimento fácil", conclui Aunício da Silva.

A Procuradora-Geral da República, Beatriz Buchili, referiu no ano passado que a corrupção continua a ser um dos "grandes entraves" no combate ao crime organizado e transnacional em Moçambique. Mas não há dados oficiais concretos ou processos com evidências sobre a alegada ligação entre traficantes e poderes políticos.

Outros factores

Há outros fatores que facilitarão a entrada dos narcotraficantes ao país, diz o jornalista Luís Nhachote.

"Pelo facto de Moçambique ser um país com uma extensão enorme de costa e desprotegida, ou com ausência quase total do Estado e das suas forças de segurança, somos um caminho muito acessível para que a droga continue a andar", vaticina Nhachote.

As apreensões de droga têm aumentado em Moçambique. Cálculos feitos pela DW África com base nos informes da Procuradoria-Geral da República apontam que, entre 2018 e 2020, foram apreendidos no país cerca de 200 quilos de cocaína,  700 quilos de heroína e mais de 300 quilos de metanfetamina. Mas, só nos últimos meses, houve notícias da apreensão de 472 quilos de heroína na Ilha de Moçambique, 200kg de cocaína na fronteira sul-africana ou 751 quilos de metanfetamina na cidade da Beira, citando apenas alguns exemplos.

No início de março, as autoridades sul-africanas anunciaram também a apreensão de uma cidadã tanzaniana na posse de cerca de dois quilos de heroína e cocaína, provenientes de Moçambique. De acordo com a polícia sul-africana, a droga foi introduzida no país por correio.  

Apesar de todas estas apreensões, os especialistas são unânimes: As autoridades estão apenas a arranhar a superfície.

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