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O Níger e o drama dos refugiados nigerianos

António Cascais
27 de fevereiro de 2017

O mundo tem prestado pouca atenção ao drama dos nigerianos que fogem da violência dos jihadistas do Boko Haram ao país vizinho Níger. Como consegue um dos países mais pobres do mundo receber milhares de refugiados?

Niger Flüchtlinge aus Nigeria  (DW/A. Cascais)
Foto: DW/A. Cascais

Quem viaja pela “Estrada Nacional número 1”, que liga a cidade de Diffa à capital nigerina de Niamey, depara-se com centenas de campos de refugiados clandestinos, sobretudo ao longo do troço paralelo ao Kamadougou, o rio que constitui a fronteira entre o Níger e a Nigéria. Logo à primeira vista fica bem claro que aqui não é fácil sobreviver, apesar da segurança relativa que se vive, em comparação com o outro lado da fronteira, na Nigéria, onde existem regiões sob controlo dos jihadistas do Boko Haram.

Segundo dados fornecidos pelo Governo do Níger, já são mais de 250 mil pessoas vindas sobretudo do estado nigeriano de Borno que se instalaram em campos de refugiados mais ou menos improvisados e ali sobrevivem com muitas dificuldades. 

Aqui, no Níger, os maiores inimigos são o calor, a fome e a sede. Nesta região semi-árida e em parte mesmo desértica, são problemas que afetam sobretudo os habitantes dos campos de refugiados.

Temperaturas a rondar os 50 graus centígrados durante o dia são normais durante o ano inteiro. Acresce que nos meses de inverno as temperaturas noturnas baixam consideravelmente, chegando mesmo a atingir graus negativos.

A falta de água é uma constante: as pessoas conseguem sobreviver apenas porque algumas organizações humanitárias internacionais mandaram fazer furos, aqui e acolá, para a captação de água potável.

Ngagala é um dos muitos campos improvisados, na região de Diffa, sem condições suficientesFoto: DW/A. Cascais

Campos de refugiados com cabanas feitas de paus e palha

Estamos no acampamento de Ngagala, um dos muitos campos de refugiados clandestinos ao longo da Estrada Nacional. É aqui, junto a uma bomba artesanal de água, que todas as manhãs se juntam mulheres e raparigas para encherem os seus bidões, antes de os transportarem para as suas cabanas de paus e palha.

“Hoje há água, mas isso nem sempre acontece”, conta Aisha, uma senhora de 43 anos que, devido à sua capacidade de liderança, se tornou uma espécie de “porta-voz” da comunidade de Ngagala: "A falta de água é o nosso maior problema. As pessoas continuam a afluir a este lugar, mas há cada vez menos água. Algumas das mulheres vêm mesmo de noite captar água, mas até durante a noite forma-se uma fila. Há dias em que a água falta completamente. É esse o nosso maior problema."

Aisha não gosta de falar sobre as razões que a levaram a fugir da Nigéria, apenas diz que agradece a Allah, Deus, por ter sobrevivido aos massacres do Boko Haram. Mariama, uma das suas vizinhas, revela mais pormenores. Também ela sobreviveu aos violentos ataques perpetrados em 2014 pelos jihadistas contra as aldeias junto ao rio Kamadougou. Mariama conta que conseguiu fugir e sobreviver.

Não é fácil captar água nesta região desértica. Organizações internacionais tentam dar ajuda de emergênciaFoto: DW/A. Cascais

Traumas de guerra e feridas não cicatrizadas

No entanto, revela, as feridas, sobretudo as psicológicas, ainda não cicatrizaram: "O ataque contra a minha aldeia na Nigéria aconteceu num sábado às cinco da manhã. Os terroristas tinham armas de fogo e dispararam indiscriminadamente sobre as pessoas. Apenas poucos de nós conseguiram fugir atravessando o rio. Seis dos meus filhos foram sequestrados. Uma das minhas filhas estava grávida de oito meses. O meu marido desapareceu. Não sei o que lhe terá acontecido."

Mariama é uma de mais de mil habitantes do campo de Ngagala. Ela perdeu praticamente toda a família, apenas uma sobrinha de quatro anos de idade sobreviveu. Todos os habitantes de Ngagala sofreram atrocidades parecidas, cometidas pelos terroristas do Boko Haram. 

Aqui na província de Diffa, no Níger, os refugiados da Nigéria vivem em relativa segurança, uma vez que a zona está fortemente militarizada. Uma coligação internacional de forças nigerinas, chadianas e camaronesas tentam impedir o avanço dos jihadistas da Nigéria para território do Níger, mas nem sempre é bem sucedida.

Uma família nigeriana refugiada no Níger: "Na nossa terra tínhamos tudo, aqui não temos nada"Foto: DW/A. Cascais

Vaga de refugiados poderá provocar conflitos

Em toda a região de Diffa foi imposto um recolher obrigatório durante a noite. Foi também proibida a circulação de motorizadas, pois estas frequentemente tinham sido utilizadas em atentados suicidas. O comércio transfronteiriço - sobretudo entre o Níger, a Nigéria e o Chade - colapsou, incluindo o outrora importante setor da pesca, junto ao Lago Chade, que banha os três países.

Num cenário de guerra civil é muito difícil organizar e prestar apoio aos refugiados. São poucas as organizações humanitárias internacionais que se encontram ainda na região de Diffa, por razões de segurança. Estas tentam fazer chegar aos refugiados os bens mais necessários à sua sobrevivência.

Níger: país de trânsito

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A alemã Kathryn Tätzsch, da “World Vision”, uma organização cristã norte-americana, é uma das poucas cooperantes que trabalham em Diffa. Encontramos Kathryn Tätzsch junto a um campo de refugiados, numa área deserta, a 50 quilómetros da fronteira com a Nigéria: "Verificamos que o número de refugiados do país vizinho continua a subir. Esta é uma região muito pobre, subdesenvolvida e com poucas infra-estruturas. Não há escolas, não há postos de saúde, não há hospitais, não há sistemas de distribuição de água potável", lembra a cooperante. E acrescenta: "Agora temos aqui ainda mais gente a precisar de todos esses serviços. No que diz respeito à água, a procura aumentou em 80 a 100 por cento. Esta situação não é sustentável e, mais tarde ou mais cedo, isso provocará conflitos entre as pessoas."

Diffa: região em guerra com economia falida

Os habitantes da cidade de Diffa estão descontentes: "A economia colapsou, a insegurança é insuportável", afirmamFoto: DW/A. Cascais

Estamos na cidade de Diffa, capital da região de mesmo nome: uma cidade em estado de sítio, onde as pessoas convivem com o medo constante de ataques terroristas. Praticamente todos os dias acontecem ataques perpetrados por jihadistas do Boko Haram que atravessam a fronteira ilegalmente e mesmo infiltrados entre os refugiados.

Diffa tem cerca de 60 mil habitantes. É notório o desemprego: muitos homens e jovens encontram-se nas ruas, visivelmente sem qualquer atividade. E avaliando pelas conversas de rua, o grau de frustração é elevado. "Desde os últimos ataques do Boko Haram a cidade está praticamente parada. Aqui reina o desemprego", afirma um habitante e acrescenta: "Há atentados praticamente todas as semanas. Atentados mortíferos! Ontem mataram um enfermeiro e sequestraram os seus filhos. Degolaram o homem, cortaram-lhe o pescoço com uma catana, foi a cerca de 60 quilómetros de aqui!"

Níger: um dos países mais pobres do mundo

CONTRASTE - Níger: o drama dos refugiados nigerianos que fogem do Boko Haram - MP3-Mono

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Com um produto interno bruto (PIB) de 700 dólares norte-americanos per capita, o Níger é um país em desenvolvimento com um baixo nível de educação, terreno desértico, infra-estrutura deficiente e saúde precária, o que o torna um dos países mais pobres do mundo.  

A região fronteiriça entre o Níger, a Nigéria e o Chade encontra-se em guerra desde 2014: uma guerra não declarada entre os insurgentes islamistas e as forças militares conjuntas da Nigéria, do Níger, do Chade e dos Camarões. Várias regiões no estado de Borno, no nordeste da Nigéria, são controladas pelos jihadistas do Boko Haram, a organização islamita que se auto-declarou representante do denominado Estado Islâmico no continente africano.

Mais de 250 mil nigerianos fugiram para o Níger, sobretudo para a região de Diffa, e já constituem uma minoria importante num país com cerca de 20 milhões de habitantes.

O Níger não dispõe de recursos para combater o terrorismo e, ao mesmo tempo, prestar apoio aos refugiados.

Refugiados no campo de Assaga, região de Diffa: o estado de segurança continua instávelFoto: Getty Images/AFP/B. Hama

Sayam Forage: um campo organizado, com apoio ao mais jovens

"Sayam Forage": é o nome de um campo de refugiados administrado pelas Nações Unidas e que presta mais e melhor assistência que os acampamentos improvisados ao longo da Estrada Nacional número 1. Aqui vivem cerca de cinco mil refugiados, entre os quais cerca de mil crianças.

Numa enorme tenda azul em que são bem visíveis as iniciais ACNUR, do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, encontramos Babangana Ali, um jovem de 25 anos. Ele é um dos seis educadores do acampamento, encarregues de prestar algum apoio às muitas crianças que aqui vivem.

Cantar e dançar faz parte das atividades, assim como o futebol e outros desportos. O objetivo é contribuir para que as vidas das crianças obedeçam a um determinado ritmo. Aulas escolares, propriamente ditas, aqui ainda não existem, mas as atividades na tenda azul são um começo.

Babangana Ali recorda que muitas das crianças perderam os pais, estando agora a cargo de familiares ou vizinhos. É necessário ajudar as crianças a digerir os traumas sofridos nas suas aldeias de origem, lembra o jovem: "Quase todas estas crianças presenciaram as atrocidades cometidas em Damasak, a sua terra natal, pelos terroristas do Boko Haram. Elas precisam de apoio psicológico, muito mais do que o que lhes podemos proporcionar atualmente."

Atividades para as crianças no campo de refugiados de Sayam Forage: uma forma de digerir os traumasFoto: DW/A. Cascais

Niamey: Vozes a favora e contra a política do governo

A 1.500 quilómetros de distância, em Niamey: marcámos entrevista com o ministro para os Assuntos Humanitários, Laouan Magaji. O governante confirma que o seu país precisa de melhorar o acolhimento dos refugiados.

Mas o seu país precisaria sobretudo de mais meios para controlar as fronteiras, visto que o Níger é um dos maiores países de África em termos de extensão. Para isso o país precisaria de avultados meios financeiros, somas que poderão facilmente atingir os 700 milhões de euros, segundo cálculos do ministro: "Como sabe estamos rodeados de focos de instabilidade, mas não dispomos dos meios financeiros para fazer face a essas crises", lembra o ministro. E adianta: "Os refugiados penetram no nosso país, vindos de diferentes partes do mundo. Por isso lançamos um apelo aos nossos parceiros internacionais, no sentido de nos ajudarem a superar esta crise que envolve mais de 250 mil refugiados."

O ativista Moussa Tchangari é muito crítico ao Governo do Níger. "A política destruiu a vida das pessoas", afirmaFoto: DW/A. Cascais

O nosso seguinte interlocutor é o ativista Moussa Tchangari. O presidente da associação de defesa dos Direitos Humanos "Alternative Espace Citoyen" observa com desagrado o que se está a passar na região de Diffa. Segundo este ativista, não é com meios militares e mais controlo nas fronteiras que se resolve o problema dos refugiados. O apoio deveria ser dirigido sobretudo às pessoas, ou seja, aos refugiados. O governo deveria dar-lhes o necessário para uma vida digna: comida, água, casas e escolas são bens mais importantes que armas e meios militares, afirma.

Moussa Tchangari não é bem visto pelo Governo e já foi várias vezes detido e interrogado. Mesmo assim, insiste nas suas críticas contra a comunidade internacional, nomeadamente a Alemanha, a França ou os Estados Unidos: "Lanço o seguinte apelo: se querem mesmo combater o terrorismo no Níger, não o façam com armas de fogo! Penso que os europeus nos estão a utilizar para atingir os seus próprios interesses. Eles têm medo dos terroristas e da vaga de refugiados que possa atingir os seus países. Por isso querem que os ajudemos a resolver esses seus problemas. Eles querem que nós os ajudemos e não o contrário."

O Níger é um dos países mais pobres do mundo. É certo. Mas gozou sempre de uma certa segurança e paz, que agora estão ameaçadas. Devido ao drama de refugiados, que se desenrola sobretudo na zona fronteiriça com a Nigéria, o país poderá transformar-se, a médio prazo, num dos grandes focos de instabilidade no continente africano.

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