Será a Rússia a nova China para África? Há quem entenda que sim. O interesse é mútuo, no caso de Moçambique. O Governo precisa de apoio no combate ao terrorismo e Moscovo quer o gás. E com isso vem o comércio de armas.
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De 23 a 24 de outubro, Moscovo foi anfitrião da cimeira Rússia-África, um encontro que lembra bastante a cimeira Sino-África de 2000, o marco da guinada de África para o financiamento chinês. Era uma alternativa ao Ocidente, que impunha inúmeras condições de natureza política. Hoje vive-se uma réplica com a Rússia.
José Milhazes é historiador e especialista sobre relações Rússia e os PALOP e explica o que desperta o interesse de Moscovo: "Acho que é um processo mútuo. Primeiro, temos que ver que a Rússia está a querer entrar em força em África. Este é um projeto do Presidente Vladimir Putin, que ganhou força depois de 2014, quando a Rússia foi alvo de sanções por ter invadido a Crimeia, e [a Rússia] precisa de novos mercados e parceiros e tenta entrar no continente [africano]."
Moçambique é um dos países que consolidou as relações com a Rússia nos últimos anos. O que está na origem dessa guinada acentuada de Moçambique na direção de Moscovo?
José Milhazes lembra que "a Rússia está interessada em investir em campos de gás [em Moçambique]. A ofensiva russa coincide com a possibilidade dos países africanos terem mais este parceiro e jogarem entre os grandes parceiros internacionais, que são a China, os EUA e a Europa."
Rússia proporciona fôlego
De forma quase intransigente, os tradicionais parceiros de cooperação do Ocidente fecharam os cordões à bolsa a Moçambique, por causa do escândalo das dívidas ocultas, avaliadas em cerca de 2 mil milhões de euros.
Para além da China, com quem Moçambique já está altamente endividado, Maputo encontra em Moscovo mais uma chance para sair do sufoco.
"O facto de os mercados financeiros estarem secos para Moçambique" torna a cooperação com a Rússia atrativa, refere o jornalista Fernando Lima, até porque, "ao contrário do Ocidente, [Moscovo] não faz aquelas perguntas sobre direitos humanos e determinados desempenhos."
O jornalista sublinha também os interesses de Moscovo: "Moçambique tem coisas que interessam à Rússia, nomeadamente minerais e outras coisas importantes".
Para Lima, a "dívida ideológica" entra também para a jogada, recordando que "Moçambique tem um contencioso com a Rússia que ainda não foi solucionado, que é uma enorme dívida decorrente dos primeiros anos de independência relacionado com material militar. E ambas as partes têm uma aproximação diversa sobre esse assunto."
Sochi: Como está a relação entre Moçambique e a Rússia?
E como fica o Ocidente?
Apesar de tudo, Moçambique ainda tem muitos dos seus projetos de desenvolvimento financiados pelo Ocidente. Também muitas iniciativas pela transparência, integridade e democracia são financiadas pelo Ocidente.
Como é que esta aproximação Maputo-Moscovo poderá ser entendida pelos europeus e americanos?
"Moçambique tem de agir com alguma prudência para que esta reaproximação não signifique ostracizar outros parceiros e dar uma preferência à Rússia", alerta Lima.
Redução dos estandartes do Ocidente em África
Os direitos humanos, um dos cavalos de batalha do Ocidente em África, não constituem preocupação para a Rússia, tal como para a China. Mas os perigos da cooperação Rússia-África vão para além desse estandarte do Ocidente, sublinha Milhazes.
Nomeadamente, a possibilidade dessa cooperação "não ser aproveitada devidamente para o desenvolvimento do próprio país", comenta o especialista.
"Nós sabemos, por exemplo, que, no caso das dívidas ocultas, um dos bancos que está por trás é um dos maiores bancos russos, o VTB, que pertence ao Governo russo", acrescenta.
Milhazes defende que "tem de haver democratização interna nos países africanos. Caso contrário, a Rússia não vai levar nada de novo para África, porque uma das grandes componentes dessa cooperação bilateral vai ser a exportação de armas. Ora, armas em África já existem mais do que o suficiente."
Porquê a Rússia em Cabo Delgado?
Os ataques armados no norte de Moçambique são uma das maiores preocupações do Governo local.
Nos últimos meses, a imprensa moçambicana tem reportado sobre a presença de homens e equipamento militar russos na província de Cabo Delgado, facto até aqui não devidamente esclarecido por Maputo.
E a escolha da Rússia para apoiar neste caso tem uma motivação relativamente sustentada, de acordo com Milhazes, que acredita que "o exemplo da intervenção da Rússia na Síria pode levar dirigentes africanos a pensar que a Rússia pode selecionar os problemas de terrorismo nos seus países, e digo isso principalmente a Moçambique."
Quais as motivações dos ataques armados em Cabo Delgado?
Há mais de nove meses que o norte de Moçambique tem sido palco de violentos ataques armados. Suspeitas há muitas e até já há um estudo, mas até hoje não está claro quem são os atacantes e nem o que os move.
Foto: Privat
Mocímboa da Praia: Era uma vez um lugar pacato...
Até 5 de outubro de 2017 a província de Cabo Delgado vivia na tranquilidade, pelo menos aparentemente. Mas desde essa data tudo mudou quando cerca de 30 homens armados desconhecidos atacaram três postos da polícia do distrito de Mocímboa da Praia, matando cinco pessoas, entre elas polícias, e ferindo mais de dez. Na altura a Polícia disse que estava a investigar o caso.
Foto: DW/G. Sousa
O alastramento dos ataques
Dois meses depois Mocímboa viveu novos ataques e desde essa altura os ataques armados têm vindo a alastrarar-se muito rapidamente para outros distritos. Palma começou a ser alvo a partir de janeiro de 2018.
Foto: DW/Estácio Valoi
Marcha contra um "Islão que não existe"
Uma semana depois do primeiro ataque Mocímboa da Praia marchou pela paz. A iniciativa juntou líderes de diferentes religiões, cristã e muçulmana, estes últimos a maioria na região. Os atacantes, que se dizem muçulmanos, defendem uma visão radical do Islão. As autoridades do distrito consideram que esse é um "Islão "que não existe", e acusam "os bandidos" de usaram a religião como "capa".
Foto: Estácio Valoi
Os indícios que não terão sido tomados a sério
Já em 2016 supostos pregadores do Islão foram expulsos do país por estarem ilegais no país. Também já foi intercetado um angariador de crianças a cujos pais era prometida educação e bons tratos. Mas o destino, passando por Nampula, eram escolas corânicas com o fim de radicalização. Há também detenções de pessoas que propagam a insurgência contra as instituições do Estado.
Foto: Colourbox/krbfss
Detenções e excesso de zelo
Cinco dias após o início dos ataques, a Polícia já tinha detido 52 pessoas, o que assustou alguns líderes religiosos. Mas havia outros líderes que eram a favor, justificando a necessidade de denunciar malfeitores para "purificar fileiras", mesmo que isso leve a excesso de zelo. Mas a Polícia ainda não sabe dizer quem são os atacantes, justificando sempre que está a trabalhar no assunto.
Uma das maiores reservas de gás de mundo está em Cabo Delgado. Em Palma as multinacionais operam no setor. Em Mocímboa da Praia há minas de rubis que são bem cotados nos mercados internacionais. O IESE, MASC e um líder muçulmano realizaram um estudo na sequência dos ataques e concluiram preliminarmente que o objetivo dos atacantes é garantir o tráfico dos inúmeros recursos da região.
Foto: ENI East
Erik Prince, o salvador da pátria?
Empresário norte-americano na área de segurança tem interesses nas empresas envolvidas nas dívidas ocultas. Uma delas a Proindicus, criada para garantir a segurança nas águas moçambicanas. Por outro lado acredita-se que tenha criado uma empresa de segurança e estaria a contar como pagamento pelos serviços os dividendos do gás. Eric Prince já prestou serviços para o Governo dos EUA no Iraque.
Foto: Imago/UPI Photo
Deslocados internos: Existem ou não?
O medo dos violentos ataques fez com que a população fugisse. Mas as autoridades locais garantem que ela regressa às suas comunidades graças à patrulha feita pelo exército e afirmam que são poucas as deslocações. Entretanto, não há números exatos. Quem está a lidar com esses deslocados são as autoridades locais. Até ao momento nenhuma agência da ONU ou ONG humanitária foram chamados a intervir.
Foto: Privat
Participação das FDS na reconstrução
Embora as FDS, Forças de Defesa e Segurança, não consigam impedir as ações dos atacantes elas garantem o patrulhamento depois dos ataques. Também auxiliam diretamente na reconstrução das casas incendiadas pelos atacantes. Isso, segundo as autoridades, permite o retorno da população às suas aldeias.
Foto: Borges Nhamire
Participação das comunidades
Supõe-se que os jovens que integram os grupos armados sejam recrutados nas comunidades. As autoridades pedem, por isso, que as populações se mantenham vigilantes e denunciem qualquer ilícito ou movimentação suspeita.
Foto: Privat
Governador visita comunidades
Os assassinatos tornam-se cada vez mais bárbaros. Há decapitações com recurso à catanas e nem as crianças escapam. Na sequência do recrudescimento dos ataques e do nível de violência o governador da província de Cabo Delgado, Júlio Parruque, visitou familiares das vítimas.
Foto: Privat
Presidente de Moçambique em Cabo Delgado
A 29 de junho de 2018 o Presidente Filipe Nyusi esteve nos distritos alvo dos ataques. Pouco antes disso o estadista tinha sido criticado por alguns setores por nunca se ter pronunciado publicamente sobre os ações violentas. Em Cabo Delgado, Nyusi prometeu proteção contra ataques e mostrou abertura, convidando os atacantes para dialogar.
Foto: privat
Um mar de gente para ouvir Nyusi
Em Cabo Delgado, Filipe Nyusi foi ouvido por milhares de pessoas a quem exortou para que se distanciem de crenças religiosas que estariam na origem da instabilidade: "Estão a recrutar pessoas nos distritos costeiros. Estão a ir também a Nampula recrutar pessoas para vir morrer aqui. Não deixem que isso aconteça. Estão a semear luto nas vossas famílias. E são jovens que vocês conhecem, denunciem".