O que levou às mortes na seita angolana "Kalupeteka"?
15 de janeiro de 2016"Particularmente vamos falar das causas, porque até agora só se falou dos efeitos. Mas porque é que aquilo aconteceu? Durante a audiência espero que se chegue às causas", disse esta sexta-feira à agência de notícias Lusa o advogado de defesa David Mendes.
No banco dos réus sentam-se a partir de segunda-feira (18.01) José Julino Kalupeteka, líder da Igreja Adventista do Sétimo Dia "A Luz do Mundo", de 46 anos, e dez fiéis da seita, com idades entre os 18 e os 54 anos.
Estão indiciados pela co-autoria material de um crime de homicídio qualificado consumado, um crime de homicídio qualificado frustrado e ainda crimes de desobediência, resistência e posse ilegal de arma de fogo.
Na origem do caso estão confrontos entre fiéis da seita e agentes no monte Sumi, município da Caála, província do Huambo, a 16 de abril de 2015, que terão começado quando a polícia tentou prender José Kalupeteka e outros dirigentes da seita não reconhecida pelo Estado angolano.
Segundo a versão oficial, morreram nove polícias e 13 fiéis. Relatos não oficiais dão conta de centenas de vítimas mortais. Fernando Kalupeteka, um dos filhos do líder da seita e testemunha ocular dos acontecimentos no Huambo, disse ao jornalista angolano William Tonet que morreram 700 pessoas. "Eu estava no Sumi. Vi a tropa a massacrar as mulheres grávidas", relatou em julho passado.
Na altura, a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), o principal partido da oposição angolana, falou em mais de mil mortes de civis e pediu a abertura de um inquérito parlamentar sobre o caso, além de uma investigação internacional – pedido igualmente feito por várias associações de defesa dos direitos humanos, nacionais e estrangeiras.
Também o Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH) em Genebra, na Suíça, pediu que fosse nomeada uma comissão independente para investigar os confrontos no Huambo, tendo em conta os "factos por esclarecer" e "grandes diferenças no número de vítimas".
A eurodeputada socialista Ana Gomes, autora de uma resolução sobre abusos dos direitos humanos em Angola aprovada em setembro de 2015 no Parlamento Europeu, visitou Luanda em julho e insistou na necessidade de investigar com "urgência" o massacre no Sumi. "Temos de apurar exatamente o que é que se passou, quantas vítimas, quem é responsável", disse à DW África.
Estas pretensões e todas as acusações foram sempre refutadas pelo Governo angolano. Luanda repudiou as declarações das Nações Unidas, que considerou não serem "sustentadas por quaisquer provas", e chegou a exigir um pedido de desculpas. vários membros do Governo e figuras ligadas ao partido no poder, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) acusaram Ana Gomes de interferência em assuntos internos.
Dificuldades na recolha de provas
"Este julgamento poderá facilitar, ajudar a descobrir também o que aconteceu nessa matéria, apesar de não nos ter sido [à defesa] permitido ir ao local dos confrontos. Mas até agora não se fala das mortes dos civis, a polícia não nos deu o relatório - que disse que ia fazer - sobre essas mortes, não se fala sobre os seus autores", disse ainda à Lusa o advogado de Kalupeteka.
Numa entrevista recente à DW África, o advogado já tinha criticado os obstáculos impostos à defesa na recolha de provas. "Durante a primeira audiência, vamos insistir na necessidade de reconstrução do crime e da ida ao terreno, porque não podemos aceitar que o Ministério Público, isto é, a acusação, teve acesso ao espaço, a todos os meios disponíveis de provas e a defesa não. Isto torna a defesa desequilibrada".
No despacho de acusação, o Ministério Público do Huambo refere que as mortes dos agentes decorreram essencialmente de agressões com objetos contundentes, como paus, punhais e catanas, às quais alguns polícias responderam com disparos. Sobre esses disparos, a acusação refere apenas que causaram "a morte de alguns dos seguidores da seita".
No acampamento onde aconteceram os incidentes de abril do ano passado estariam concentrados milhares de seguidores da igreja angolana, que é conhecida por travar a escolarização e a vacinação dos fiéis e que advogava o fim do mundo em 2015.
David Mendes integra a equipa de três advogados que a associação Mãos Livres, de defesa dos direitos humanos, mobilizou para assegurar a defesa dos membros desta seita e do seu líder, de forma a garantir um "julgamento justo". "Porque a ideia que se criou na opinião pública, na altura, é que já estava condenado", disse ainda à Lusa David Mendes. Por isso, considera que se parte agora "para uma fase mais séria do que a anterior", quando todos já imputavam responsabilidades a Kalupeteka".