Existe um direito humano universal a cuidados de saúde adequados, tanto mais importante em tempos de pandemia. Mas para os africanos nos países mais pobres do continente é muito difícil reivindicar este direito básico.
Publicidade
"A maioria dos países do mundo, incluindo em África, assinaram e ratificaram os tratados relevantes", que estabelecem o direito humano à saúde, disse à DW Agnes Binagwaho, ex-ministra da Saúde do Ruanda e fundadora de uma escola de medicina.
O direito à saúde é abrangido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. O mesmo se aplica ao Pacto Social da ONU de 1976, vinculativo para os 171 Estados signatários, incluindo todos os países da África de subsariana.
A ativista Binagwaho salienta que o direito à saúde começa pela igualdade de oportunidade no acesso a cuidados médicos, com uma distribuição equitativa de recursos, tais como medicamentos, vacinas ou camas hospitalares. Trata-se de assegurar cuidados de saúde adequados a todos as pessoas do mundo, disse Binagwaho.
Um estudo recente levado a cabo pelo pelo instituto de investigação Afrobarmeter em Angola, Botswana, Lesoto e Moçambique mostra que a situação nos países onde o acesso à saúde já era problemático agravou-se com a pandemia.
Mais de metade dos angolanos (53%) disseram que achavam "difícil" ou "muito difícil" obter os cuidados de que necessitavam. Um terço (33%) dos angolanos afirma ter tido que pagar subornos para ter acesso aos serviços de saúde pública. Em Moçambique, 17% declararam ter pago subornos.
O dever dos governos
Como podem os cidadãos, sobretudo os das regiões mais pobres do mundo, reivindicar este direito?
"A ideia básica do direito humano à saúde é que os Estados - como principais responsáveis pela observação dos direitos humanos - não devem interferir com a saúde das pessoas, [devendo] protegê-las de interferências e tomar medidas para assegurar que tenham condições de vida e de trabalho saudáveis", disse à DW o politólogo Michael Krennerich, da Universidade de Erlangen-Nuremberga.
Mas como reivindicar este direito, por exemplo, em África? Muitos países do continente conferiram a este direito fundamental o estatuto constitucional, diz Krennerich. "Nestes países, existe, pelo menos teoricamente, a possibilidade de uma queixa perante um tribunal constitucional nacional", adianta. Na prática, porém, os tribunais nacionais raramente ouviriam tais queixas.
Nesse caso há ainda a possibilidade de recorrer a um tribunal regional. "Mas também depende sempre um pouco de os respetivos países reconhecerem as decisões dos tribunais regionais. Em África nem sempre é esse o caso", salienta o especialista em direitos humanos. A instância competente no continente é o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, um órgão da União Africana, sediado na Tanzânia.
O coronavírus levanta novas questões
Poderá dizer-se que Estados como o Burundi, a Eritreia e a Tanzânia, suspeitos de não levarem a sério a pandemia da Covid-19, violam os tratados internacionais de direitos humanos? "É evidente que o direito humano à saúde implica que o Estado tem o dever de proteger os cidadãos. Estados que não conduzem uma política de informação adequada, que minimizam e banalizam uma pandemia, não estão a cumprir o seu dever e podem ser processados", diz Krennerich.
Baseados em conhecimentos científicos, os governos têm o dever de fornecer informações sobre a doença, sobre as vias de infeção e sobre medidas razoáveis e também de fornecer o tratamento médico necessário, equipamentos de proteção e medicamentos, bem como vacinas, se estiverem capacitados.
Agnes Binagwaho discorda. A especialista afirma que não se pode impor normas internacionais aos governos dos Estados soberanos no combate à pandemia. Binagwaho acredita que cabe a cada governo decidir o que fazer: "Se um país diz: 'Temos outras prioridades', está no seu direito, ponto final".
Publicidade
O papel da Organização Mundial de Saúde
A presente pandemia levanta novas questões sobre o direito humano à saúde, nomeadamente quem determina o que são cuidados de saúde adequados? Quem estabelece as medidas que um país deve ou não aplicar para se proteger da Covid-19?
Será que todos os países devem ser obrigados a introduzir o uso obrigatório de máscara, impor o recolher obrigatório e lançar campanhas de vacinação, caso a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomende esses procedimentos?
Uma segunda questão prende-se com as acusações de que o combate a outras doenças igualmente graves está a ser negligenciado por causa da concentração dos recursos na luta contra o coronavírus. "É evidente que, não obstante o empenho contra a Covid-19, ao mesmo tempo devem ser assegurados todos os cuidados padrão", afirma o académico Krennerich, e acrescenta: "Em África temos outras doenças, tais como a malária, SIDA ou tuberculose, que não podem ser negligenciadas, para que as pessoas não morram de outra coisa, porque todos os recursos estão a ser desviados para neutralizar o coronavírus".
Estará a OMS a impor a sua agenda aos países africanos? "A OMS não impôs nada a Estado nenhum, nem sequer tem autoridade para o fazer. A OMS só aconselha o mundo sobre questões médicas", diz Agnes Binagwaho.
Antigas crianças-soldado lutam agora contra o coronavírus
A guerra civil na República Centro-Africana (RCA) envolveu milhares de crianças em grupos armados. Aquelas que tiveram a sorte de escapar estão agora a ajudar vizinhos a protegerem-se da pandemia de Covid-19.
Foto: Jack Losh
Coronavírus: Um novo inimigo
Uma equipa de antigas crianças-soldados e crianças de rua cava um poço para beneficiar moradores de um bairro pobre na capital da República Centro-Africana, Bangui. Os jovens ajudam a melhorar a higiene em áreas onde moradores vivem amontoados. O projeto da UNICEF instalou poços para 25 mil pessoas e começou antes de o coronavírus chegar à região. Agora ajuda a RCA a lutar contra a pandemia.
Foto: Jack Losh
Perfuração pela paz
Um jovem pressiona um mecanismo que os seus companheiros giram manualmente para perfurar um poço. O projeto da UNICEF é também uma forma de reabilitação social, porque oferece aos adolescentes um trabalho remunerado enquanto superam o passado violento. Também encoraja a comunidade a aceitá-los de volta. O programa foi criado em 2015, e agora integra o plano de resposta ao coronavírus.
Foto: Jack Losh
Trabalho sujo
Crianças-soldados agacham-se para retirar a terra à mão. Existem mais de 3,9 mil casos confirmados de coronavírus na RCA, embora a limitação de testes no país leve a crer que o número real seja maior. O grupo de trabalho de escavação de poços acelera a instalação de novos tubos e furos a nível nacional. Quase 80% dos lares na RCA não dispõem de instalações para lavagem das mãos.
Foto: Jack Losh
Corações e mentes vencedoras
Crianças reúnem-se para observar a escavação dos poços. As antigas crianças-soldados enfrentam rejeição - o que pode aumentar as suas hipóteses de serem novamente recrutadas. As intervenções que promovem a aceitação são cruciais. Como explicou uma delas: "Este trabalho pode mudar a minha vida. Finalmente tenho algum dinheiro. E estou a ajudar estas comunidades e o meu país".
Foto: Jack Losh
Terra marcada
Sepulturas não marcadas na periferia de Bossangoa, no noroeste da RCA. Civis massacrados no conflito foram enterrados aqui. Após décadas de instabilidade, a guerra eclodiu em 2013, quando uma aliança principalmente muçulmana de grupos rebeldes, a Séléka, varreu o país e derrubou o Presidente. Em resposta, comunidades cristãs e animistas mobilizaram-se para formar as milícias "anti-balaka".
Foto: Jack Losh
Acordo de paz desgastado
Um soldado rebelde da "FPRC" fica de guarda num posto de controlo no norte da RCA. Os rebeldes controlam grande parte do país e - apesar da assinatura de um acordo de paz em fevereiro passado entre o governo e 14 grupos armados - a instabilidade persiste. Nos últimos meses, intensificaram-se confrontos entre grupos armados rivais pelo controlo da zona rica em minerais.
Foto: Jack Losh
"Crianças, não soldados"
Uma placa de sinalização da UNICEF em Bossangoa alerta contra o recrutamento de crianças em conflitos armados. Entre 2014 e 2019, mais de 14,5 mil crianças-soldado foram libertadas das milícias da RCA. No entanto, estima-se que 5,550 crianças permaneçam nas mãos de grupos armados. Muitas são vítimas de abuso sexual, outras são combatentes e outras servem como cozinheiras, guardas ou mensageiras.
Foto: Jack Losh
Educação contra estatísticas
Crianças reúnem-se dentro de uma sala de aula improvisada debaixo de lonas, num acampamento para famílias deslocadas pelo conflito em Kaga Bandoro. Mais de 1,3 milhões de pessoas foram forçadas a deixar suas casas. Em média, uma em cada cinco crianças não frequenta a escola. Mas nas áreas mais afetadas, o número chega a quatro em cada cinco.
Foto: Jack Losh
Civis sitiados
Uma força de manutenção da paz da ONU dirige-se em patrulha por um campo de deslocados na cidade de Bria, no leste, capturada por rebeldes. Uma placa à entrada adverte guerrilheiros sobre a entrada de armas. As condições apertadas e insalubres de campos como estes também aumentam o risco de propagação do coronavírus.
Foto: Jack Losh
Resiliência face à guerra
Os civis sentam-se na parte de trás de um camião enquanto conduzem através do território detido pela facção FPRC no nordeste da RCA. A ONU adverte que o país está muito mal preparado para fazer face a um surto de coronavírus. O conflito complexo e sectário devastou o fraco sistema de saúde da RCA e forçou o pessoal médico a fugir. Atualmente, metade da população depende do apoio humanitário.
Foto: Jack Losh
Uma luta penosa
Uma criança leva água e passa por um soldado das forças de manutenção da paz perto de um campo de deslocados em Bria, uma área controlada por rebeldes. O ACNUR está a instalar pontos de água nos campos e explica aos residentes a importância da lavagem das mãos. Encarregados pela ajuda humanitária advertiram que há pouco recurso para satisfazer as necessidades da população.
Foto: Jack Losh
Tentar manter a paz
Mulheres passam por um veículo blindado da ONU, que foi retido por rebeldes em Kaga Bandoro. Há receios de que a Covid-19 intensifique as tensões entre as comunidades, gerando aumento de preços e paralisando o fornecimento de ajuda. Com as eleições presidenciais marcadas para dezembro, este é um ano crucial para a RCA. Observadores temem que as hostilidades aumentem na campanha eleitoral.
Foto: Jack Losh
Atacar violadores
Os adolescentes jogam futebol num campo de terra, numa área para deslocados em Kaga Bandoro. Embora os números possam ser muito mais elevados, mais de 500 violações graves dos direitos da criança foram relatadas no ano passado. Estão em curso esforços para levar os senhores da guerra à justiça, mas a corrupção generalizada torna tudo mais difícil.
Foto: Jack Losh
Um lampejo de esperança
Antigas crianças-soldados terminam a perfuração do seu novo poço em Bangui. A terapia profissional está fora do alcance de muitos por aqui. Mas projetos como este ajudam a lidar com sentimentos de vergonha e de culpa e a criar uma sensação de normalidade. Embora não seja de modo algum uma solução perfeita, iniciativas de base como esta oferecem às crianças da RCA um pouco mais de esperança.