José Reis, um dos sobreviventes dos assassinatos que sucederam o 27 de maio de 1977, diz que os responsáveis pelos crimes cometidos naquele período negro da história de Angola devem responder perante os tribunais.
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José Eduardo Reis esteve preso cerca de três anos na cadeia de São Paulo, em Luanda. Foi uma das vítimas de tortura, apanhada pelos acontecimentos que geraram a chacina do pós-27 de maio de 1977. Conta que são inúmeros os casos de pessoas desaparecidas e barbaramente massacradas: "O que é um facto é que eu vi diariamente, principalmente nos primeiros meses, desaparecerem pessoas que estavam na cadeia de São Paulo e que nunca mais foram vistas."
Da cadeia de São Paulo José Reis foi transferido para um chamado "campo de recuperação", que, afirma "mais não era do que um campo de concentração." No seu livro "ANGOLA – O 27 de Maio – Memórias de um Sobrevivente”, Reis fala de tudo aquilo porque passou e o que viu nesses três anos. Presta homenagem também a figuras heróicas, como o "camarada Rui Coelho”, a quem deve a vida, como contou à DW África: "Tenho a noção de que o seu desaparecimento foi a minha safa e de outros companheiros que militávamos nos mesmos grupos de ação do setor da educação e dos intelectuais. Ou seja, o Rui Coelho assumiu responsabilidades de coisas que não fez para nos safar."
Eslarecimentos exigem-se
Quarenta anos depois, José Reis quis romper o silêncio em torno do 27 de Maio na sociedade angolana: "Uma das coisas que se tem que acabar é com o medo. As pessoas não podem continuar a se autocensurarem e não dizerem aquilo por que passaram e aquilo que viram."
José Reis não esconde a sua satisfação pela iniciativa atual de um grupo dos jovens órfãos que decidiu endereçar uma carta ao Presidente da República de Angola, José Eduardo dos Santos, com o objetivo de exigir a verdade, 40 anos após os eventos. E querem sobretudo conhecer finalmente os resultados da investigação da Comissão de Inquérito, criada por decisão do então presidente Agostinho Neto, e dirigida por José Eduardo dos Santos, para averiguar se os elementos da corrente de Nito Alves e José Van Dúnem eram ou não fraccionistas.
Reis reivindica ainda um processo para a devolução dos corpos às famílias, lamentando que as viúvas não têm certidão de óbito dos seus respetivos maridos e companheiros, e que há filhos que não têm o nome do pai nos seus bilhetes de identificação: "Quer dizer, as pessoas cometem crimes e não podem ficar impunes para o resto da vida! A nós não nos foi dado o direito de responder a um tribunal, mas nós temos que exigir que se forme um tribunal para ouvir as pessoas que cometeram crimes.”
27 de Maio José Reis e Edgar Valles - MP3-Stereo
A angústia das famílias
Edgar Francisco Valles foi poupado a destino semelhante a de José Reis por ter vindo para Portugal cinco meses antes do 27 de maio. O advogado, irmão de Sita e Admar Valles, vítimas da chacina, salienta que foi ocultada à comunidade internacional a dimensão do massacre que, segundo estimativas da organização não governamental Amnistia Internacional, vitimou cerca de 30 000 angolanos. E houve ainda o sofrimento das suas famílias: "Para a minha família foi a angústia que se seguiu após o "27 de maio no que respeita a saber neste caso [o paradeiro] dos meus irmãos. Foi algo de terrível porque corriam os mais diversos boatos: ora que a minha irmã [Sita Valles] estava refugiada na União Soviética, ora que tinha conseguido refugiar-se numa embaixada; até sabermos o que se tinha passado decorreram muitos meses e isto foi uma angústia terrível sobretudo para os meus pais, que sofreram imenso,” contou Valles à DW África.
Quanto ao seu irmão Admar, na altura diretor nacional da Indústria Pesada no Ministério da Indústria, Edgar Valles diz que "era um cidadão angolano sem grande atividade política, embora fosse militante do MPLA. Logo a seguir ao 27 de maio, julgando ele que se ia salvaguardar, apresentou-se voluntariamente à polícia política (DISA) sem que tivesse qualquer responsabilidade no que quer que fosse, com receio de ser vítima de algum atentado na rua." Admar Valles esteve detido até 23 de março de 1978: "Na noite desse dia foram buscá-lo, a ele e a outros, e pura e simplesmente desapareceu da cadeia."
Edgar Valles admite que havia um grupo pro-soviético no seio do MPLA. Naquela altura, lembra, só depois da queda do muro de Berlim é que muitas pessoas de esquerda ficaram a saber o que se passava na União Soviética e nos países do bloco soviético. Até então havia uma grande ilusão em relação a isso. "Julgava-se que era um regime incomparavelmente superior aos países ocidentais", precisa.
A influência soviética
O grupo de que fazia parte considerava que o caminho correto seria seguir o modelo soviético. Entendia que o regime de Agostinho Neto estava a seguir um caminho que se poderia considerar ligado ao modelo jugoslavo ou terceiro-mundista. Mas a principal divergência era outra e residia no facto do chamado grupo de Nito Alves considerar que o regime angolano estava a caminhar para uma situação de acentuada corrupção e a desprezar os interesses do povo, diz Edgar Valles.
Também o Partido Comunista Português (PCP) está na mira da crítica de Valles. Tendo Sita Valles sido uma militante deste partido, o advogado acha "notório" o silêncio do PCP no tratamento do tema anda considerado tabu. A União Soviética foi acusada, mas não publicamente, pelos dirigentes do MPLA, designadamente Agostinho Neto, de estar por detrás do Movimento do Nito Alves. Com receio de que essas acusações se tornassem públicas, o PCP manteve um silêncio cúmplice em relação aos massacres do 27 de maio de 1977, salienta Valles.
Hoje Valles sublinha ser da mais elementar justiça um pedido de perdão por parte das autoridades angolanas: "Não se está a pedir reparações de natureza económica. Está-se apenas a exigir que seja respeitada aquilo a que poderíamos chamar a memória coletiva. As pessoas foram vítimas de uma repressão atroz, não tiveram o direito à defesa, não foram julgadas, não tiveram a possibilidade de manifestar o seu ponto de vista como acontece em qualquer outro país e é da mais elementar justiça que haja um memorial e que ao fim ao cabo o regime reconheça as atrocidades que cometeu," diz Valles.
Um livro de testemunhos
José Reis concorda que o pedido de perdão público seria um gesto nobre. No entanto, perante a dimensão do crime cometido, não é o suficiente, afirma. Mas Edgar Valles diz ser importante: "Para que não se repitam tragédias como esta; que seja feita a maior divulgação do que se passou. Não há qualquer espírito de vingança, não há qualquer intenção de represálias em relação aos dirigentes do regime. Mas o que se pretende é que assumam os trágicos erros cometidos para que no mínimo, seja reposta a memória coletiva e que não se volte a repetir em África situações como esta."
O irmão de Sita Valles apresenta o livro de José Reis este sábado (27.05.) em Lisboa. Longe der ser uma obra ideológica ou a dissecação das divergências internas no MPLA o livro pretende reunir os testemunhos e as denúncias de companheiros seus que viveram aquele período de chacina e de tortura.
Uma relação especial: a Alemanha Oriental e África
A República Democrática Alemã manteve relações estreitas com os países africanos de orientação socialista. Entre eles estavam Angola, Etiópia, Moçambique e Tanzânia. A cooperação terminou com a reunificação em 1990.
Foto: Ismael Miquidade
Formação de profissionais africanos
A República Democrática Alemã (RDA), extinta após a reunificação da Alemanha a 3 de Outubro de 1990, formou muitos trabalhadores vindos de países africanos socialistas. Estes angolanos participam num curso em Dresden, em 1983, no Instituto para Segurança no Trabalho. Angola estava em guerra nessa altura. O chamado "Bloco de Leste" apoiava o Governo marxista-leninista do MPLA.
Foto: Bundesarchiv/183-1983-0516-022 /U. Häßler
Ajuda ao desenvolvimento para aliados políticos
Depois do fim do colonianismo português em África, em 1975, a Alemanha Oriental (RDA) apoiou os partidos socialistas que foram conquistando o poder. A ideia era fazer desses novos Estados africanos aliados e parceiros económicos do Bloco de Leste. Aqui, o angolano Eduardo Trindade recebe formação de mecânico de máquinas agrícolas (1979).
Foto: Bundesarchiv/183-U0213-0014/P. Liebers
Formação para jornalistas africanos
Não havia só formação para profissões técnicas. A Alemanha Oriental também formava jornalistas africanos. Centenas de jornalistas, de quase todos os países de África, passaram pela Escola de Solidariedade da Associação de Jornalistas da RDA, em Berlim-Friedrichshagen. Na foto: jovens jornalistas de Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe durante o curso em dezembro de 1976.
Foto: Bundesarchiv/183-R1210-302
Cooperação no desporto
Esta foto foi tirada em setembro de 1989, em Leipzig, numa aula de atletismo da Escola Superior Alemã para Educação Física (DHfK), com treinadores de Angola, Nicarágua e Moçambique. Em Leipzig, a partir de 4 de setembro, os cidadãos começaram a exigir todas as segundas-feiras mais liberdade na RDA - primeiro eram centenas, depois dezenas de milhares. A 9 de novembro de 1989 caiu o Muro de Berlim.
Foto: Bundesarchiv/183-1989-0929-019/ W. Kluge
Estudantes nas universidades da RDA
Moisés José da Costa, de Angola, fez parte de um grupo de estudantes de 34 países que frequentou a Escola Superior Técnica de Karl-Marx-Stadt em 1986. A cidade passou a chamar-se Chemnitz em 1990. Muitas ruas da Alemanha Oriental, com nomes de políticos marxistas, também foram renomeadas. Hoje, muitos estrangeiros que viveram na RDA têm dificuldade em encontrar endereços antigos.
Foto: Bundesarchiv/183-1986-1112-002/W. Thieme
"Escola da Amizade"
1983: O Presidente de Moçambique, Samora Machel (dir.), e Margot Honecker, ministra da Educação da RDA (esq.), encontram-se com a direção da "Escola de Amizade", na localidade de Staßfurt. Em 1979, ambos os países decidiram que 899 crianças moçambicanas frequentariam essa escola na Alemanha Oriental durante quatro anos. Algumas dessas crianças tinham apenas 12 anos de idade.
Foto: Bundesarchiv/Bild 183-1983-0303-423/H. Link
Escola "Dr. Agostinho Neto"
Em outubro de 1981, durante uma visita do Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, à Alemanha, a 26ª Escola de ensino médio da RDA "Berlim-Pankow" recebeu o nome do seu antecessor. Passou a chamar-se Escola "Dr. Agostinho Neto". Jovens da Alemanha Oriental receberam o Presidente angolano com cartazes propagandísticos, como: "Apoiando a União Soviética pela paz e socialismo."
O Presidente angolano José Eduardo dos Santos (o quinto, a partir da esq.) visitou o Muro de Berlim na Porta de Brandemburgo. O muro começou a ser construído em 1961 para impedir que a população da RDA fugisse para Berlim Ocidental, onde se tinha livre-trânsito para o Ocidente. Oficialmente, o muro era chamado de "Muralha Antifascista". Cerca de 200 pessoas morreram ao tentar fugir.
Foto: Bundesarchiv
Congresso do SED com convidados africanos
O Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED) gostava de exibir os seus convidados estrangeiros. No 10° Congresso do partido, em 1981, recebeu Ambrósio Lukoki, do MPLA (atrás, à direita), e Berhanu Bayeh (atrás, o segundo à esq.), que mais tarde se tornou chefe da diplomacia da ditadura marxista-leninista etíope do Derg, período em que milhares de pessoas foram mortas.
Foto: Bundesarchiv/183-Z0041-138/M. Siebahn
Visitas a congressos partidários africanos
O contrário também era comum. Konrad Naumann (na segunda fila, à dir.), membro do SED, participou do 3° Congresso do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) em Bissau, em novembro de 1977. O evento foi realizado sob o lema "Independência, Unidade e Desenvolvimento".
Foto: Bundesarchiv/Bild 183-S1118-026/Glaunsinger
Acampamentos de verão para crianças e adolescentes
Também durante o período de férias, a RDA tentava educar as crianças de acordo com os ideais comunistas. E convidavam-nas para acampamentos de verão. Aqui também vinham convidados estrangeiros. Na foto, dois membros da organização juvenil da Alemanha Oriental "Pioneiros" explicam a uma criança da República Popular do Congo uma matéria do jornal "Die Trommel".
Foto: Bundesarchiv/183-T0803-0302
Fim-de-semana em casa de família alemã
As crianças estrangeiras que, em 1982, participaram no acampamento dos "Pioneiros" também passaram um fim-de-semana com famílias alemãs para conhecer o dia-a-dia na Alemanha Oriental. Elas foram de comboio até à cidade de Schwedt, na fronteira com a Polónia. Sandra Maria Bernardo, de Angola, foi recebida pela sua "mãe-anfitriã" Ingeborg Scholz e a filha Petra.
Foto: Bundesarchiv/183-1982-0731-010 /K. Franke
Solidariedade militar
1973: Combatentes do MPLA marcham durante o Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes, que teve lugar no estádio da Juventude Mundial, no leste de Berlim. A RDA solidarizou-se com a luta do MPLA contra o poder colonial português. Os outros dois movimentos de libertação de Angola, a UNITA e a FNLA, foram apoiados pela África do Sul e EUA.
Foto: Bundesarchiv/Bild183-M0814-0734/F. Gahlbeck
Hora do adeus
Depois de formados na RDA, namibianos despedem-se no aeroporto Berlim-Schönefeld. De 1981 a 1984, eles estiveram a receber formação na Alemanha Oriental. No entanto, não puderam regressar às suas casas porque a Namíbia só se tornou independente da África do Sul em 1990. Por isso, voaram para Angola, para trabalhar como técnicos de silvicultura, canalizadores ou mecânicos de automóveis.
Foto: Bundesarchiv/183-1984-0815-031/A. Kämper
A ajuda chega de avião
Na foto, uma aeronave da companhia aérea Interflug, pertencente à extinta RDA, no aeroporto de Luanda. A bordo: material escolar para crianças angolanas. Em 1978, além de Angola, o Comité de Solidariedade da Alemanha Oriental enviou donativos à Etiópia, Moçambique, Vietname, República Popular do Iémen e às organizações de libertação do Zimbabwe (ZANU), da Namíbia (SWAPO) e da África do Sul.
Foto: Bundesarchiv/183-T0517-0022/R. Mittelstädt
Tratores para aliados socialistas
Doação de máquinas agrícolas da fábrica de tratores Schönebeck (da RDA) para a Etiópia. Os tratores do tipo "ZT 300-C" eram comuns na Alemanha Oriental e foram exportados para 26 países. Incluindo Angola e Moçambique. (1979)
Foto: Bundesarchiv/183-U1110-0001/Schulz
Máquinas têxteis da RDA para a Etiópia
Fábrica têxtil na cidade de Kombolcha, na província etíope de Amhara (foto de novembro de 2005). Esta fábrica processa algodão para fazer lençóis e toalhas. Foi construída em 1984 com o apoio da RDA e da hoje extinta Checoslováquia. Quase todas as máquinas foram produzidas pelo consórcio TEXTIMA, na antiga cidade de Karl-Marx-Stadt, hoje Chemnitz.
Foto: picture-alliance/dpa
Construções pré-fabricadas da RDA em Zanzibar
Ainda hoje, é possível ver prédios, construídos a partir de elementos pré-fabricados, em Zanzibar, com os quais a Alemanha Oriental apoiou a Tanzânia socialista criada em 1964 sob o Presidente Julius Nyerere. Os materiais chegaram de navio e tiveram apenas de ser montados. "Michenzani" é o nome do projeto com mais de 1,5 km de comprimento.
Foto: cc-by-sa/Sigrun Lingel
RDA - Nostalgia em Maputo
Cerca de 15 mil moçambicanos trabalharam na Alemanha Oriental no final dos anos 80. A maioria voltou ao seu país de origem após a reunificação da Alemanha, a 3 de Outubro de 1990. Em casa, são chamados de "Madgermanes", uma palavra derivada de "Made in Germany". Até aos dias de hoje, eles reúnem-se com frequência no Jardim 28 de Maio, em Maputo, para reivindicar os seus direitos.