Os ataques contra manifestantes, em junho, mataram pelo menos 120 pessoas no Sudão, alerta a Human Rights Watch. Organização pede justiça para as vítimas e responsabilização dos autores.
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Num relatório divulgado esta segunda-feira (18.110), a organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch (HRW) documenta os ataques das forças de segurança sudanesas contra os manifestantes quando procuravam desmobilizar um acampamento em Cartum, em 03 de junho, e nos dias seguintes em outras zonas da capital sudanesa e nas cidades vizinhas de Bahri e Omdurman.
O texto cita "fontes credíveis" que estimam que pelo menos 120 pessoas morreram durante a repressão aos manifestantes.
Centenas ficaram feridas e há dezenas de desaparecidos, segundo testemunhos citados no relatório, que adiantam que vários corpos foram atirados ao rio Nilo pelas forças de segurança. Pelo menos dois foram resgatados com tijolos amarrados e feridas de bala na cabeça e no torso.
Para a elaboração do relatório, cuja investigação foi realizada localmente no Sudão e remotamente, por telefone, entre 29 de junho e 11 de agosto, foram ouvidas mais de 60 pessoas, incluindo vítimas de crimes sexuais e testemunhas dos abusos. Foram ainda analisadas fotografias, vídeos e publicações nas redes sociais.
Onda de protestos e violência
A onda de protestos, que começou em dezembro de 2018 em todo o país motivada pelo aumento de preços, evoluiu para uma contestação generalizada ao então Presidente Omar al-Bashir, que levava 30 anos no poder.
Os protestos culminaram num acampamento em Cartum, em abril, em frente à sede das Forças Armadas, que resultou no afastamento de al-Bashir e na tomada do poder por um conselho militar liderado pelos generais Abel Fattah al-Burhan e Mohamed "Hemedti" Hamdan Dagalo, este último comandante das Forças Reação Rápida (RSF, na sigla em inglês). Foi sobre este acampamento que, em 03 de junho, os militares e RSF dispararam, matando muitos manifestantes. Segundo o relatório, muitos outros manifestantes foram violados, agredidos, esfaqueados e forçados a rastejar.
A resposta inicial do conselho militar foi de negar os ataques, tendo posteriormente admitido que a operação de dispersão do acampamento foi planeada e pedido desculpa por "erros cometidos".
Os ataques foram condenados pela comunidade internacional, a União Africana suspendeu o Sudão e os peritos das Nações Unidas reclamaram uma investigação independente à violência contra manifestantes desde o início desse ano. Uma comissão de investigação, então, foi criada, estimando em 87 o número de mortes e recomendando a detenção de oito oficiais responsáveis pelos ataques ao acampamento.
Novo Governo
Em agosto, foi empossado um novo Governo de transição, resultante de um acordo de partilha de poder alcançado entre os militares e grupos da sociedade civil na sequência semanas de protestos contra violência, e criada uma comissão para investigar a violência de junho.
A comissão de investigação, que não inclui mulheres nem especialistas em violência sexual, levantou preocupações de falta de independência aos grupos representantes das vítimas.
Além das mortes de 03 de junho e das semanas que se seguiram, a HRW lembra que, desde dezembro de 2018, as forças de segurança vinham reprimindo e perseguindo violentamente os manifestantes, com dados que apontam para que entre dezembro de 2018 e abril de 2019 tenham sido mortas mais de 100 pessoas, sem que ninguém tenha sido responsabilizado.
Por isso, a HRW sustenta que o Governo de transição deve reavaliar a comissão de investigação ou substituí-la por outra mandatada para investigar e recolher provas de todos os crimes desde dezembro e com autoridade para referenciar casos para acusação de acordo com os padrões internacionais.
Para a organização de defesa dos direitos humanos, o Governo deve também entregar al-Bashir e quatro outros indivíduos com mandados de detenção do Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes cometidos contra civis no Darfur.
"Têm que começar a fazer justiça, assegurando que todas as investigações são independentes, transparentes e de acordo com os padrões internacionais", acrescentou.
O povo contra o exército - Cronologia da luta pelo poder no Sudão
A evacuação violenta de um campo de protesto na capital sudanesa, Cartum, exacerbou as tensões entre manifestantes e militares. A luta pelo poder documentada em imagens.
Foto: Getty Images/AFP/A. Shazly
Protesto
Durante semanas, manifestantes sudaneses resistiram diante do Ministério da Defesa. Milhares exigiram um conselho de transição que incluísse civis, para poderem também decidir sobre o futuro do país. No início de junho, os militares atacaram violentamente os manifestantes. Dezenas de pessoas morreram.
Foto: Getty Images/AFP/A. Shazly
Em nome da nação
Um manifestante com a bandeira nacional perto do quartel-general do exército. A bandeira representa a exigência dos manifestantes de civis nos comandos para moldarem o futuro do país juntamente com os militares. A acontecer, este seria um passo importante para a democracia.
Foto: Reuters
Sinais de alarme
Os militares aumentaram massivamente a presença nas ruas, nos dias que antecederam o massacre no início de junho. Muitos manifestantes interpretaram a situação como prova de que o exército não queria abandonar o poder. Mas esta tinha sido a grade esperança de muitos sudaneses após a queda do ditador Omar al-Bashir.
Foto: Getty Images/AFP
Uma era chega ao fim
Omar al-Bashir governou o Sudão desde 1993 até sua queda, em abril de 2019. Os seus críticos foram violentamente reprimidos. Para manter o poder, al-Bashir chegou a dissolver o Parlamento, em 1999. Na mesma altura, concedeu asilo ao líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden. Acima de tudo, porém, o seu nome continua associado à guerra sangrenta contra os separatistas na província de Darfur.
Foto: Reuters/M. Nureldin Abdallah
Ditador em tribunal
Ver o ditador em tribunal era um sonho antigo de muitos sudaneses. A 16 de junho, Omar al-Bashir apareceu no processo contra ele instaurado. Para já, é acusado de corrupção e posse ilegal de moeda estrangeira. Depois da sua queda, a polícia encontrou na sua residência sacos de dinheiro no valor de mais de cem milhões de dólares.
Foto: picture-alliance/AP Photo/M. Hjaj
As mulheres querem ser ouvidas
Muitas mulheres participaram nos protestos. As mulheres no Sudão sempre beneficiaram de uma liberdade relativamente significante. Agora, não só reforçam quantitativamente as manifestações, como também lhes dão um rosto diferente. A sua presença expressa o desejo de democracia e igualdade de muitos cidadãos.
Foto: Getty Images/AFP/A. Shazly
Ícone da revolução
A estudante de arquitetura Alaa Salah tornou-se a face da revolução. Quando subiu ao telhado de um carro em abril para falar com os manifestantes, um fotógrafo atento fez esta imagem. Desde então, ela tem sido partilhada inúmeras vezes nas redes sociais. Fotos como estas tornaram-se uma parte importante da revolução, porque convidam os cidadãos a identificarem-se com os protestos.
Foto: Getty Images/AFP
Solidariedade internacional
Graças às plataformas sociais online, a notícia dos protestos no Sudão rapidamente correu o mundo. E logo mereceram apoio internacional, como aqui em Edimburgo, Escócia. Recentemente os ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia também se fizeram ouvir: "A UE apela ao fim imediato de toda a violência contra o povo sudanês", disseram numa declaração oficial.
No entanto, a oposição ao exército no poder não é consensual. Muitos sudaneses apoiam os militares, porque acreditam que só uma governação autoritária pode conduzir o país a um futuro próspero. Os apoiantes dos militares consideram que o General Abdel Fattah Burhan, presidente do Conselho Militar, representado no cartaz, reúne as condições para cumprir a tarefa.
Foto: Getty Images/AFP/A. Shazly
À espera
Mas a eminência parda General Mohammed Hamdan Daglu, conhecido por Hemeti, é tido como o homem forte do regime de transição. Daglu comandou a tropa que reprimiu os protestos em frente ao quartel-general militar. Durante a guerra do Darfur, liderou as milícias Janjaweed, que combateram brutalmente os rebeldes. Os manifestantes temem que ele possa vir a ser o novo governante do país.
Foto: Reuters/M.N. Abdallah
O Golfo preocupado
Políticos de outros países árabes também olham com nervosismo para o Sudão. Por exemplo, Mohamed bin Zayad al-Nahyan, o Príncipe Herdeiro dos Emirados Árabes Unidos. Tal como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos temem que o protesto possa ser um exemplo de uma revolução popular bem-sucedida na região, pondo em questão governos autoritários. Ambos os países apoiam os militares sudaneses.
Foto: picture-alliance/AP Photo/Ministry of Presidential Affairs/M. Al Hammadi
Os vizinhos a norte
Também no Cairo se olha com preocupação para Cartum. O Governo do Presidente Abdel-Fattah al-Sisi receia que a Irmandade Muçulmana possa ganhar influência no Sudão - precisamente o grupo contra o qual o Governo egípcio está a agir com todas as suas forças no seu próprio país. Se a Irmandade Muçulmana se estabelecesse no Sudão, poderia, a partir daí, voltar a exercer uma forte influência no Egito.
Foto: picture-alliance/Photoshot/MENA
Protestos sem fim à vista
No Sudão prosseguem os protestos. No dia 14 de junho, Sadiq al-Mahdi, uma das principais figuras da oposição do país durante décadas, exigiu uma investigação da evacuação violenta do campo de protesto. É algo que não pode agradar aos militares. As tensões poderão voltar a agravar-se.