A paz entre eritreus e etíopes encheu de júbilo dois povos que têm muito em comum. Mas os analistas avisam que uma paz duradoura requer mais do que celebrações.
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Os dois países acabam de dar mais um passo na aproximação que parecia impossível ainda há poucos meses: esta quarta-feira (18.07), partiu da capital etíope Adis Abeba o primeiro voo comercial em 20 anos rumo a Asmara, na Eritreia.
No fim-de-semana anterior, milhares de pessoas celebraram nas ruas de Adis Abeba a assinatura do acordo de paz, que trouxe ao país vizinho o Presidente eritreu, Isaias Afwerki. "Agora os eritreus e etíopes estão unidos", disse Afwerki diante de 25.000 etíopes. E o primeiro-ministro e anfitrião, Abiy Ahmed, não disfarçou a emoção: "A Etiópia está feliz por ter reencontrado a sua irmã perdida", afirmou na mesma ocasião.
Um jovem etíope que celebrava nas ruas da capital disse à DW: "Estou muito feliz por poder voltar a ter contato direto com os meus irmãos e amigos na Eritreia. Agora já não tenho que esperar eternamente por mensagens nas redes sociais. Posso sentar-me no carro e ir visitar os meus amigos pessoalmente."
De arqui-inimigos a amigos
A Eritreia ganhou a independência da Etiópia em 1993, após três décadas de guerra civil. Mais de 80.000 pessoas morreram numa guerra por território fronteiriço entre 1998 e 2000. As linhas de telefone foram cortadas, as fronteiras encerradas e as famílias separadas. A guerra fria durou outros 18 anos.
Mas de repente aconteceu algo que os observadores consideravam praticamente impossível: após semanas de gestos e palavras de amizade, o primeiro-ministro Abiy Ahmed viajou para Asmara para assinar com Afwerki um acordo de paz e anunciar a retoma de relações diplomáticas.
Os benefícios da paz entre a Etiópia e a Eritreia
Ventos frescos na política etíope
O analista Solomon Dersso não tem dúvidas a quem cabe a responsabilidade por esta mudança profunda no Corno de África. "O processo de paz deve ser atribuído à coragem e ao empenho do primeiro-ministro etíope Abiy Ahmed", disse o consultor em questões de segurança. "Há muito que os dois povos ansiavam pela paz e o fim da divisão entre as duas nações."
Abyi Ahmed assumiu a liderança do Governo em Abril. Lançou imediatamente um programa de reformas profundas e aceleradas. O estilo de governo autocrático dos seus predecessores tinha enterrado o país numa crise política e económica, o que resultou em graves distúrbios, que custaram a vida a milhares de pessoas.
Os conflitos ainda não foram todos resolvidos e são particularmente graves no sul da Etiópia. Organizações internacionais de assistência alertam para o número crescente de refugiados e a possibilidade de uma crise humanitária.
Novas oportunidades para todos
Solomon Dersso diz que a alegria e as celebrações não vão bastar para assegurar uma paz duradoura. Mas a paz é fundamental para o desenvolvimento económico dos dois países. "O que importa agora é a forma como o acordo assinado em Asmara vai ser concretizado. Sobretudo em termos da questão fronteiriça, mas também no que toca às relações comerciais entre os dois países."
As novas relações de amizade podem ser uma oportunidade para os dois lados. Os etíopes passam a ter acesso ao Mar Vermelho, mas também a Eritreia fica a ganhar, diz Dersso. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, já anunciou que se delibera a possibilidade de suspender as sanções da ONU contra Asmara.
Christoph Kannengiesser, diretor-geral da Associação para a África da indústria alemã, acredita que o acordo de paz possa estabilizar toda a região. "Penso que na Etiópia já foram criadas condições para uma liberalização e maior abertura da economia, criando maiores oportunidades para investimentos", disse Kannengiesser à DW. Resta saber se o mesmo se passará na Eritreia, acrescentou. "Mas o acordo de paz vai aumentar a mobilidade e a comunicação, criando automaticamente melhores condições para o comércio e os investimentos com participação externa", incluindo a Alemanha, disse Kannengiesser.
De portas abertas: Etiópia recebe os "inimigos" eritreus
Todos os dias, os eritreus deslocados atravessam a perigosa fronteira para buscar asilo em território inimigo, mas a Etiópia parece muito feliz em acomodá-los.
Foto: DW/J. Jeffery
Vagando pelo deserto
"Levamos quatro dias viajando de Asmara", disse um eritreu de 31 anos sobre a caminhada da capital da Eritreia, a 80 quilômetros ao norte da fronteira, depois de chegar à Etiópia. "Viajamos por 10 horas durante a noite, dormindo no deserto durante o dia". Com ele estão outros três homens, três mulheres, seis meninas e quatro meninos.
Foto: DW/J. Jeffery
Sem volta
"As condições de vida na Eritreia são mais perigosas do que atravessar a fronteira", diz um soldado eritreu de 39 anos – agora um desertor depois de atravessar para a Etiópia. Após serem recolhidos por soldados etíopes que patrulham a fronteira, os eritreus são enviados para um centro de registo, onde é iniciado o processo de pedido de asilo na Etiópia.
Foto: DW/J. Jeffery
Vida de acampamento
Os recém-chegados são acomodados em um dos quatro campos de refugiados na região do Tigray na Etiópia. O acampamento de Hitsats é o maior e mais novo, com 11 mil refugiados. Cerca de 80% deles têm menos de 35 anos de idade. "Mesmo que busquem o asilo político, haverá uma questão económica, já que eles são jovens e precisam gerar renda para viver", diz o coordenador do campo, Haftam Telemickael.
Foto: DW/J. Jeffery
Aproveitar ao máximo a situação
A infraestrutura do acampamento é simples, mas digna. Há pouco lixo espalhado e as pessoas fazem o máximo para tornar a sua habitação o mais caseira possível. "Quando eu bebo uma xícara de café entre as flores é bom", diz John, de 40 anos, de pé no pequeno jardim cheio de flores ao redor da casa do acampamento de Hitsats, onde vive com a filha de 10 anos. Sua esposa está na América.
Foto: DW/J. Jeffery
Vida difícil
"O povo eritreu é bom", diz Luel Abera, um funcionário etíope que ajuda a coordenar as chegadas de refugiados antes de se mudarem para um acampamento. "Eles lutaram pela independência por 30 anos. Mas desde o primeiro dia, [o Presidente da Eritreia] Isaias [Afwerki] governou o país sem se importar com os interesses de seu povo". Isaias governou a Eritreia há mais de 25 anos.
Foto: DW/J. Jeffery
Influxo constante
"Não quero falar sobre por que cruzamos a fronteira", diz Haimanot, de 18 anos, que cuida de um pequeno barraco usado para a recarga de telemóveis em Hitsats. Em fevereiro de 2017, mais de três mil eritreus chegaram à Etiópia, de acordo com a agência de refugiados do país. Pelo menos 165 mil refugiados e requerentes de asilo residem na Etiópia, de acordo com a ONU.
Foto: DW/J. Jeffery
Sono tranquilo
"No Sudão há mais problemas. Aqui podemos dormir tranquilamente", diz Ariam, de 32 anos, que chegou a Hitsat há quatro anos com seus dois filhos depois de passar outros quatro anos num campo de refugiados no Sudão. Os refugiados afirmam que os militares da Eritreia realizam missões para capturar eritreus no Sudão. A fronteira da Etiópia com a Eritreia é muito mais protegida contra estas incursões.
Foto: DW/J. Jeffery
Generosidade ou estratégia?
"A resposta da Etiópia é gerenciar o portão e perceber como isso pode se beneficiar com esses fluxos inevitáveis de pessoas", diz a analista de refugiados Jennifer Riggan. Mais dinheiro também é gasto hospedando refugiados devido a esforços internacionais para frear a migração para a Europa. Também é um caminho para a Etiópia reforçar a sua reputação internacional.
Foto: DW/J. Jeffery
A camaradagem supera o ódio
As posições militares da guerra de 1998-2000 entre a Etiópia e a Eritreia ainda estão ao lado da fronteira de hoje. Enquanto isso, ambos os governos acusam-se de conspirar um contra o outro. Mas a Etiópia parece disposta a se redimir com os eritreus comuns. "Somos as mesmas pessoas, compartilhamos o mesmo sangue, até mesmo os avós", diz Estifanos Gebremedhin da agência de refugiados da Etiópia.
Foto: DW/J. Jeffery
Migrar
"Meus filhos estão na América, mas não há razão para eu ir – agora sou um homem velho", diz Tesfaye, de 74 anos, em Shimelba, primeiro campo de refugiados eritreus de Tigray, aberto em 2004. Outros milhares de eritreus vivem em cidades etíopes, fora dos acampamentos. Muitos decidem migrar para fora – alguns legalmente, como os filhos de Tesfaye, mas muitos ilegalmente, e às vezes morrem tentando.
Foto: DW/J. Jeffery
Passado não esquecido
"Os soldados etíopes que nos encontraram foram como irmãos para nós", diz Yordanos, de 22 anos, mãe de dois. A Eritréia era a região mais ao norte da Etiópia antes da sua independência em 1993. Desde então, Tigray passou a ser a região etíope mais ao norte. Por isso, muitos eritreus compartilham a mesma língua, Tigrinya, e a mesma religião e cultura ortodoxa que os habitantes de Tigray.