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HistóriaPortugal

Otelo, o português que Samora convidou para a FRELIMO

12 de abril de 2014

Depois de ajudar a fazer a revolução em Portugal, Otelo bateu-se pela independência dos países africanos de língua portuguesa. Samora Machel disse-lhe inclusive em brincadeira para integrar o movimento.

Foto: picture-alliance/dpa

"Óscar" - foi este o nome de código do português Otelo Saraiva de Carvalho no 25 de Abril de 1974. Otelo, que nasceu em Lourenço Marques (hoje Maputo), foi o principal comandante do golpe militar e tinha a seus ombros o peso de derrubar uma ditadura que durava há quase meio século em Portugal.

Mas não estava sozinho, muitos militares acompanhavam-no. Sobretudo porque queriam o fim da guerra colonial. Ainda assim, quando o regime caiu colocou-se a questão: o que fazer com as colónias?

O "Movimento das Forças Armadas" (MFA), que levou a cabo o golpe e de que Otelo fazia parte, defendia a concessão imediata da independência. Até porque, na Guiné-Bissau, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) já declarara a independência unilateralmente. Mas havia quem tivesse um plano diferente – nomeadamente António de Spínola, o "general do monóculo", que os militares revoltosos escolheram para liderar o país a seguir à revolução do 25 de Abril.

DW África: Como viveu a noite do 25 de Abril?

Otelo Saraiva de Carvalho (OSC): Entrei no Posto de Comando ainda não eram 22h00 de 24 de abril e saí de lá às 13h30 de 26.

Posto de Comando do MFA, onde Otelo comandou as operações do 25 de abrilFoto: DW/G. Correia da Silva

Nunca me deitei, comi uma refeição, uma sandes com cerveja e tal. Nunca saí do Posto de Comando porque estava numa situação de ansiedade e stress para que tudo corresse bem. Eu tinha uma responsabilidade enorme naquilo. Era uma responsabilidade muito pesada e eu sentia isso. Porque ali no Posto de Comando só eu é que tinha um conhecimento profundo da ordem de operações que tinha feito.

DW África: Quais eram as prioridades do 25 de Abril?

OSC: Em termos ideológicos, a prioridade que atribuímos era, de facto, a recuperação da liberdade, que era fundamental num país que já vivia, nessa altura, com 40 anos de repressão em cima. Primeiro uma ditadura militar, de seis anos, e depois uma ditadura de características fascistas durante trinta e tal anos.

Depois, num país de um cinzentismo tramado, com uma indústria extremamente limitada, de forma geral, e também num país pobre, muito dedicado à agricultura, com uma taxa de analfabetismo enormíssima, outro objetivo fundamental era elevar rapidamente o nível de desenvolvimento do país, por um lado, mas também o nível cultural, económico… Enfim, o bem-estar de todo um povo que vivia sacrificado há muito tempo.

Na altura em que fizemos o 25 de Abril, 40% do Orçamento de Estado eram destinados à manutenção da guerra colonial, às Forças Armadas. Eram cerca de duzentos e tal mil homens, jovens, na força de trabalho, que eram deslocados e ficavam ausentes de Portugal durante dois anos. Tudo isso era um prejuízo enormíssimo para um país que não conseguia sair disto, empenhado numa guerra que não conseguia aguentar, porque não tinha gente para aquilo, não tinha armamento, não tinha apoio internacional nenhum…

DW África: A questão da autodeterminação das ex-colónias portuguesas era um ponto assente para o Movimento dos Capitães, mas um ponto emendado pelo general António de Spínola, que se tornou o primeiro Presidente da República Portuguesa após a ditadura.

Depois do golpe militar, quando a Junta de Salvação Nacional se apresenta ao país, na televisão pública, a RTP, Spínola diz que a Junta assumia como compromisso: "Garantir a sobrevivência da Nação, como Pátria soberana no seu todo pluricontinental". Como é que o Movimento das Forças Armadas conseguiu, ainda assim, impor a sua vontade no que diz respeito à autodeterminação das colónias?

OSC: Eu julgo que foi decisiva aí uma intervenção que fiz quando, não sei porquê, o Spínola invocou a pressão dos camaradas para que a delegação portuguesa me incluísse nas chamadas negociações preliminares com a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), que tiveram lugar em Lusaca [Zâmbia], em 6 de junho de 1974.

Nas vésperas, fui chamado ao Palácio de Belém e o Spínola mandou-me entrar no gabinete para me dizer: "Mandei-o cá chamar para que você se prepare para amanhã seguir com o Dr. Mário Soares e um outro elemento do Ministério dos Negócios Estrangeiros para Lusaca, para as conversações preliminares com a FRELIMO." "Então e qual é a minha missão?" – perguntei. E ele diz-me: "Você vai na delegação para vigiar o Mário Soares, porque eu não tenho confiança nenhuma nele." Inquiri: "E qual é a missão do Dr. Mário Soares, como ministro dos Negócios Estrangeiros?" Responde-me: "Eu disse-lhe que ele pode andar ali em conversações e argumentos, mas para não vir de lá sem o cessar-fogo. O cessar-fogo é que é fundamental. Depois do cessar-fogo, a gente conversa."

Otelo Saraiva de Carvalho, uma das figuras centrais do 25 de abrilFoto: D.R./Leya

Quando se abrem as conversações, Mário Soares diz ao que vai: "Eu trago aqui a missão de cessar-fogo para depois podermos encetar negociações." Samora Machel corta aquilo e diz: "Negativo, nós não fazemos cessar-fogo enquanto não se verificarem algumas condições que nós impomos. Há dez anos que estamos em luta para alcançar a independência e queremos, primeiro, que vocês reconheçam que nós, FRELIMO, somos os representantes do povo moçambicano em armas. Que, sim senhor, poderá haver um período de transição na passagem de poder, haverá com certeza. Mas que o poder é passado do poder colonial português para nós, FRELIMO. E queremos a independência. Não queremos nenhum outro sistema. Nós sabemos depois o que fazer para o Governo do país." E o Mário Soares contra-argumentou.

A certa altura aquilo estava num impasse. Até que eu pensei: "A minha missão é verificar se o Mário Soares está a cumprir a missão que lhe foi dada pelo general Spínola. Ele está a cumprir. Portanto, vou intervir." E disse: "Estou aqui a representar o Movimento das Forças Armadas (MFA) e, nesse sentido, digo que, na nossa perspetiva, todos os povos têm o direito à autodeterminação, com todas as consequências que isso possa ter, inclusive a independência. E nesse sentido, a FRELIMO, representada por Samora Machel e pelos camaradas que aqui estão, tem inteira razão. Porque, enquanto as nossas forças estão desmoralizadas no terreno e ansiosas que acabe uma guerra que já não tem significado para nós, para eles continua a ter muito. Para eles, significa a possibilidade de alcançar a independência por que anseiam há séculos. Portanto, dou-lhes inteira razão."

Epá, o Mário Soares disse: "Peço desculpa, tenho de interromper. Senhor major, temos de falar ali ao lado." E o Samora diz-me: "Ó Otelo, anda para aqui, tu és moçambicano, anda para aqui." Eu disse: "Sou moçambicano, mas tenho nacionalidade portuguesa e, portanto, estou aqui deste lado. Eu estou é do vosso lado nessa perspetiva, que é, de facto, a nossa do MFA."

Bem, o Mário Soares levou-me para um canto: "O senhor major colocou-me numa situação aqui tramada. É que tenho ordens do senhor general Spínola…" Eu disse: "Eu sei, mas eu não concordo com o general Spínola." Disse o Mário Soares: "Então, quando chegarmos a Lisboa sem o resultado do cessar-fogo, o senhor assume essa responsabilidade." Eu respondi: "Totalmente, não tenha problema nenhum."

Otelo (dir.) com Fidel e Raúl CastroFoto: D.R./Leya

DW África: Em julho de 1975 foi a Cuba. Encontrou-se com Fidel Castro. Hoje sabe-se que o líder cubano lhe perguntou se devia enviar tropas para Angola para apoiar o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Ainda se lembra da ocasião em que Fidel Castro falou consigo?

OSC: Eu almocei com o Fidel e o Raúl Castro num à parte de um restaurante que era o "Los Canaviales", perto de Havana.

E o Fidel disse-me: "Pedi-te para almoçarmos aqui mais isoladamente porque tenho um problema para te apresentar. Recebi há uma semana uma delegação angolana do MPLA que me trouxe uma carta dramática do Agostinho Neto. É que estão tropas sul-africanas em apoio da UNITA [União Nacional para a Independência Total de Angola] a entrar em Angola pelo rio Kunene, pela fronteira sul com a Namíbia. Por outro lado, forças do Mobutu [Sese Seko], do Congo, em apoio à FNlA [Frente Nacional de Libertação de Angola], estão a entrar pelo norte e o MPLA está numa situação enfraquecida. Está em Luanda, mas vai ter grande dificuldade em resistir a este cerco. E pediu-me apoio militar. Eu disse-lhe que ia pensar no assunto. Não tomei nenhuma decisão. Vocês vão mandar tropas para lá, vão manter lá forças militares para poderem apoiar o MPLA?"

Eu disse-lhe: "Nem penses nisso. Numa situação como esta, com três movimentos de libertação, a UNITA, o FNLA e o MPLA no terreno, o Governo português atual, da revolução, não vai tomar posição por nenhum dos partidos. Se toma uma posição pelo MPLA, fica contra a UNITA e o FNLA. Portanto, é uma situação extremamente difícil." Perguntou o Fidel: "Então o que achas que faça?" Disse: "Se estivesse no teu lugar, faria o seguinte: começava já a mandar tropas cubanas, se possível negras, para Angola. Desembarcam ali em Luanda e ficam já em apoio do MPLA. E, portanto, essa é a possibilidade que o MPLA tem de sobreviver."

DW África: Portugal saiu à pressa das colónias?

OSC: Não. Ainda houve um Governo de transição, ficámos lá ainda um ano e tal. Quem teve medo das consequências da independência saiu de Moçambique e Angola. Houve dramas tramados na descolonização. Dramas terríveis. Houve gente que perdeu tudo o que tinha, veio-se embora. Muitos deles em pânico.

Otelo, o português que Samora Machel convidou para ingressar na FRELIMO

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DW África: E se o 25 de Abril tivesse corrido mal?

OSC: Eu despedi-me da minha mulher na noite de 23 de abril, em que já fui dormir à Pontinha clandestinamente, porque não era a minha unidade. E quando me despedi da minha mulher, ela fez-me essa pergunta. E eu disse-lhe: sexta-feira estou cá para almoçar. 25 de abril era uma quinta-feira. "E se tudo correr mal e vocês perderem?" Disse-lhe: "Não, não perdemos de certeza. Mas se por acaso, por um azar qualquer monstro, isso acontecer, olha, nunca mais nos vemos." Porque eu era preso e iria morrer ao campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde.

DW África: Em Portugal, foi conotado com os setores mais à esquerda do Movimento das Forças Armadas (MFA). Porque é que acha que esses setores não se conseguiram impor?

OSC: Não sei, pá. Depois de 48 anos de fascismo, foi extremamente difícil entrar naquilo que era a ideologia da União Soviética – devido a um propaganda de meio século. Esse medo do comunismo persistiu sempre. Durante o PREC [Processo Revolucionário Em Curso, após o 25 de Abril, marcado pela agitação social e política] isso verificava-se. Era um tema recorrentemente utilizado pelos padres das aldeias.

Os comandos utilizavam boina vermelha e uma vez mandei o Jaime Neves dirigir os comandos numa operação chamada "Nortada", em Trás-os-Montes, de apoio às equipas de engenharia militar que estavam a abrir caminhos e estradas novas. E o Jaime Neves veio de lá estarrecido e disse-me: "Não imaginas o que é aquilo, eu ia a aldeias e as portas fechavam-se todas." Escondiam os crucifixos nas arcas. Havia um terror tremendo dos comunistas. Houve sempre dificuldade de penetração da esquerda na sociedade civil.

DW África: O 25 de Abril valeu a pena, olhando para o Portugal de hoje e para a situação de crise económica que o país atravessa hoje em dia?

OSC: Se me pergunta "olhando para o Portugal de hoje" é difícil dizer categoricamente que tenha valido a pena. Agora, sem dúvida nenhuma que, não pensando na situação de crise grave que estamos a atravessar, valeu imensamente a pena. Sou um orgulhoso protagonista do 25 de Abril.

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