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História

Parque Nacional da Gorongosa

Marta Barroso1 de outubro de 2012

Hoje, ninguém no parque consegue explicar a guerra civil, uma guerra entre irmãos. Aqui todos vivem juntos: aqueles que lutaram por um e os que lutaram pelo outro lado. Mas as memórias ficam e não só entre os homens.

Parque Nacional da Gorongosa
Parque Nacional da Gorongosa

Hoje, o mais famoso parque nacional de Moçambique recebe turistas, contribui para o desenvolvimento económico e social das populações em redor e reintroduziu espécies quase extintas durante a guerra que se arrastou por 16 anos.

A Gorongosa serviu de refúgio aos rebeldes da RENAMO, a Resistência Nacional Moçambicana, e foi cenário de violentas batalhas entre estes e o governo da FRELIMO, a Frente de Libertação de Moçambique.

Esta foi a guerra que se seguiu à de libertação do poder colonial português. Uma guerra que uns chamam civil, outros de desestabilização. Quem hoje trabalha no Parque Nacional da Gorongosa diz que foi guerra entre irmãos. Foi um conflito que, passados 20 anos da assinatura do Acordo Geral de Paz em Roma – a 4 de outubro de 1992 – ninguém no parque consegue explicar. Mas as memórias, essas ficam.

Os animais da Gorongosa ainda são tímidos

No fim da guerra civil, todos os edifícios do parque nacional ficaram destruídosFoto: Marta Barroso

Há dias em que o guia Moutinho não tem grandes mamíferos para mostrar. Os elefantes, rinocerontes, búfalos, leões e leopardos não aparecem. Eles estão lá, escondidos entre arbustos e picadas estreitas. Mas com o sol a pôr-se e os portões do parque quase a fechar, já não há tempo para ir à procura.

Quem vem à Gorongosa à procura dos chamados big five – esses cinco grandes animais, que há muito tempo ganharam o apelido pela dificuldade de serem caçados – tem que contar com uma decepção. É certo que safari é sempre questão de sorte. Mas no parque nacional, queixa-se Moutinho, o guia, muitos animais, sobretudo os elefantes, são ainda tímidos: "Os elefantes de cá ainda têm um bocado de trauma por causa do passado que tiveram, eles sempre assistiram os outros elefantes serem atacados. Então sempre que vêem a presença de um carro, é uma ameaça para eles." Até hoje, diz Moutinho, os elefantes atacam os carros: "Agora já estão a tentar habituar-se um bocado, tentam ficar um pouco mais relaxados. Mas nem todos."

O elefante nunca esquece

Parque Nacional da Gorongosa: Memória de Elefante

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Os elefantes podem viver até 70 anos. E a memória do elefante é eterna: os da Gorongosa sabem bem o que aqui se passou quando eram mais jovens. Ainda hoje se lembram de ver as suas mães, as suas avós e as suas irmãs serem mortas.

Foram verdadeiras chacinas protagonizadas por guerrilheiros da Resistência Nacional Moçambicana, RENAMO, que instalaram aqui o seu comando central no final da década de 1970, e pelos soldados da Frente de Libertação de Moçambique, FRELIMO, que combatiam os rebeldes. Abundavam também os caçadores furtivos, porque em tempo de guerra e de fome, as pontas de marfim eram trocadas por armas e comida.

Em 1960, o governo colonial português declarou a Gorongosa Parque Nacional. Os portugueses em Moçambique costumavam dizer que Noé, o da Bíblia, tinha deixado na Gorongosa a sua arca com os animais que salvara do dilúvio, tantos eram os que se podiam avistar. Mas se Noé os deixou, os homens levaram-nos. Enquanto a guerra de libertação poupou a maioria dos animais da Gorongosa, a que se lhe seguiu, pouco depois de alcançada a independência do jovem Estado, dizimou a fauna local em 90%.

A memória dos homens também é dolorosa

Njinga passou cinco anos no mato: alimentou-se de mel e da carne dos animais do parque nacionalFoto: Marta Barroso

Como muito bem sabe Jorge Njinga Chapomba, um dos fiscais do acampamento sazonal do parque. Foi levado pelos rebeldes, ainda rapaz, e viveu no mato. Mas isso haveria de ser mais tarde. Lembra-se de tudo, de toda a "miséria", como diz, e até do dia em que a RENAMO foi, pela primeira vez, à sua aldeia: "Eles vinham à população, recrutavam jovens, entre os 17 e os 40 anos. Então nós começámos a fugir porque em 1979 foram levados meus dois irmãos."

Naquela altura, os rebeldes eram chefiados por André Matsangaísse, que conhecia bem a Gorongosa e por isso escolheu a região para montar a sua base central. Era o local perfeito: além de a mata cerrada oferecer proteção, os animais asseguravam a alimentação e os rios e a própria localização no centro de Moçambique facilitavam o acesso a outras zonas estratégicas.

Na guerra civil havia dois tipos de espaço: o mato e a zona urbana. Enquanto a RENAMO dominava grandes áreas do mato, incluindo o Parque Nacional da Gorongosa, a FRELIMO concentrava-se nas aldeias e cidades. No meio, havia guerra, com as consequências que se adivinham para a população, diz Njinga: "Nós não podíamos sair daqui para lá, e de lá não se podia vir para aqui. Quem era apanhado no meio, era fuzilado."

Em 1984, Njinga também acabou por ser levado. Foi em 16 de junho. Disseram-lhe que iria cozinhar para os chefes, lavar roupa, erguer palhotas. Juntamente com outros rapazes recolhia informações junto da população local sobre os alvos a atacar. Ficou com os rebeldes até outubro de 1986. Depois, não aguentou mais e fugiu para o mato com um colega: "Sofremos muito", diz, e conta que passaram todo o tipo de privações: "camisa não tínhamos, nem calções". Andavam pela beira do rio à procura de peças de roupa e tudo o mais que servisse à sobrevivência como "um arame para tentar fazer uma agulha. Sofri muito. Não tínhamos comida. Só comíamos mel e animal do mato". Um inferno que durou cinco anos.

Safari no Parque Nacional da GorongosaFoto: Marta Barroso

O refúgio na Gorongosa

Njinga não foi o único a refugiar-se no Parque Nacional. A fome, o medo, a guerra empurraram muitos habitantes da região para as matas. E além do marfim dos elefantes, levado para troca, outros animais eram caçados pela carne.

A caça furtiva sobreviveu à guerra. 20 anos depois de FRELIMO e RENAMO se terem sentado em Roma com os mediadores para assinar o Acordo Geral de Paz, cerca de 120 fiscais em 22 postos fixos, mais outros móveis espalhados pelo parque, patrulham ainda a área diariamente. Mas para um território tão vasto, o número de fiscais continua demasiado reduzido. A carne proibida faz hoje as delícias dos talhantes da cidade da Beira, mas também dos proprietários de barracas e vendedores em mercados locais.

O "Chefe Dois" ainda planeia operações. Hoje em dia, trata-se de apanhar caçadores furtivos na GorongosaFoto: Marta Barroso

No parque, Armilo Cheless é conhecido por "Chefe Dois", uma alcunha que trouxe dos tempos da guerra. Da guerra o "Chefe Dois" trouxe ainda o vocabulário bélico que emprega, sempre que tem oportunidade. E trouxe também a vontade de enfrentar todos os desafios. Em tempos, foi comandante de armas pesadas do exército nacional e combateu nas províncias centrais de Sofala, Manica e Tete: "Estávamos em conflito entre irmãos". Armilo Cheless levou então uma vida estranha: "Era dormir e sonhar com os combates, não tinha outro serviço a fazer, senão fazer planos contra o inimigo, preparar-se para ir lá atacar."

A guerra eterna contra a caça furtiva

Hoje, o "Chefe Dois" é fiscal de florestas e fauna bravia no parque. Ele sabe que a luta contra os caçadores furtivos não está ganha: "Isso não termina. Mesmo agora apanhámos uns cinco que fugiram. Um foi evacuado, mas é menor, tem 15 anos." Quando são interrogados, os caçadores furtivos explicam que é a fome e falta de emprego que os leva a matar os animais.

Armilo Cheless continua a planear e a atacar. Especialmente este ano, porque a caça furtiva aumentou. Uma razão é a falta de chuva que levou a más colheitas.

Calcula-se que cerca de 6.000 animais são mortos no parque todos os anos. Os fiscais chegam a desmantelar anualmente mais de 100 armadilhas e a apreender mais de 20 armas. Os furtivos, geralmente homens pobres das comunidades em redor, são depois encaminhados para o tribunal que os julga.

Provavelmente, o "Chefe Dois" preferia apanhar em flagrante um daqueles caçadores de fama lendária. Mas até esses parece que estão reformados.

Já é possível observar muito mais animais no parque do que logo após o fim da guerra civilFoto: Marta Barroso

A nova vida na Gorongosa

O acampamento de Chitengo, na Gorongosa, é o ponto de encontro geral, sobretudo quando cai a noite. Quem manda agora no bar é Tatu Alexandre Jorge, chefe do restaurante. Diariamente tem de apresentar contas à administração. Tatu tem hoje 43 anos.

É difícil acreditar que por detrás do sorriso de cidadão pacato se esconde um bandido que em tempos foi famoso, como ele próprio diz: "Fui um grande caçador furtivo durante a guerra e no fim da guerra". Quando a guerra acabou, as armas tiveram que ser entregues, mas: "nós passámos a caçar com armadilhas e ratoeiras. Alguns dos nossos colegas tinham armas, mas nós tínhamos medo de ser apanhados".

O risco de apanhar cadeia ou uma grande multa parecia excessivo a Tatu Alexandre Jorge que já não quer saber dessas atividades ilegais. Mas, até há pouco tempo, tinha em casa 15 crianças para sustentar: oito suas, três de um irmão, quatro de outro. Os dois irmãos morreram na guerra: um pela FRELIMO, o outro pela RENAMO.

Para alimentar 15 crianças, Tatu (centro) chegou a fazer dinheiro com a proibida carne dos animais do parque nacionalFoto: Marta Barroso

Tatu nunca esquecerá quando o irmão, que se tinha juntado aos rebeldes, foi morto, pois aconteceu numa data histórica: em agosto de 1985, no ataque que destruiu a base central da RENAMO na Casa Banana, erguida no sopé da Serra da Gorongosa: "Foi num dia em que vieram os zimbabueanos, trouxeram a FRELIMO, atacaram a RENAMO. O meu irmão também foi assaltado naquele sítio". Durante dias, a FRELIMO fez caça ao homem, conta, matando os elementos da RENAMO que tentaram fugir. Entre os quais, o irmão de Alexandre Jorge.

O proveito da fama

Tatu nunca andou na guerra. Foi graças à sua fama de caçador que arranjou emprego no Parque Nacional da Gorongosa. Em 2004, o governo moçambicano e a norte-americana Carr Foundation assinaram um acordo que visava reconstruir a infraestrutura e restaurar a biodiversidade do parque, bem como fomentar o desenvolvimento comunitário em volta.

Tatu agarrou a oportunidade: "Então eu disse à minha senhora: põe boa roupa, põe sapato na pasta para eu ir lá depois de ver as minhas armadilhas. Fui ver armadilha, tinha apanhado um animal, então levei animal, ainda fui deixar em casa, era uma zebra". Depois Tatu dirigiu-se à administração do parque à procura de emprego. Quando deu o seu nome, a reação foi imediata: "Tatu? Qual Tatu? Eles ficaram logo ali muito interrogados. Tatu, o caçador furtivo? Sou eu. Aí eu comecei a ficar com medo". Mas a fama que o precedia garantiu-lhe emprego na hora.

O filantropo

O objetivo de Greg Carr na região da Gorongosa é contribuir para o alívio da pobrezaFoto: Marta Barroso

Em 2008, o governo de Moçambique e a Carr Foundation fizeram saber que o Parque Nacional da Gorongosa será co-gerido por ambos os parceiros por mais 20 anos. A fundação é obra de Gregory Carr. Nos anos 80, o americano fez fortuna com uma empresa de telecomunicações e, desde então, dedica-se à filantropia.

A sua fundação disponibilizou 40 milhões de dólares, o equivalente a mais de 30 milhões de euros, para serem aplicados na Gorongosa. Uma parte do dinheiro foi gasta na reintrodução de espécies ameaçadas, na criação de empregos e em formações. Construíram-se escolas e centros de saúde, incluindo clínicas ambulantes, que chegam aos locais mais remotos.

O objetivo é contribuir de forma sustentável para o alívio da pobreza na região, diz Carr: "98% dos funcionários deste parque são moçambicanos. Este é o parque deles e eles são talentosos. Tenho orgulho neles e no facto de a nossa equipa ser muito unida. O nosso objetivo é fazer da Gorongosa um Parque Nacional magnífico."

Só o parque emprega permanentemente cerca de 350 pessoas das comunidades em redor. Além disso, há trabalhos ocasionais. Os operadores turísticos também recrutam pessoal. Ao empregar a população local, o parque está também a proteger-se: os caçadores furtivos que como Tatu têm a promessa de sustento e ainda acesso a segurança social acabam por se render.

E ninguém quer saber hoje se, num passado longínquo, combateram nas fileiras da FRELIMO ou da RENAMO.

No parque nacional muitos animais ainda estão tímidos: a guerra deixou marcas na memóriaFoto: Marta Barroso
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