Elementos de uma família angolana estão a ser julgados na sequência de confrontos com agentes da polícia portuguesa, ocorridos no Bairro da Jamaica, arredores de Lisboa, onde vivem maioritariamente afrodescendentes.
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Uma mãe, três filhos e um polícia suspenso de funções estão a ser ouvidos por vários crimes no Tribunal de Almada, depois do Ministério Público ter deduzido acusação contra os cinco arguidos em outubro de 2019.
Os advogados de defesa das vítimas de agressões policiais insurgem-se contra a versão dos factos narrados esta quinta-feira de manhã pelo tribunal, no início da sessão, e vão defender que seja feita justiça com a apresentação de novas provas.
O "incidente" que deu que falar em Portugal
Eram cerca das 10 horas da manhã quando o coletivo de juízes, acompanhado do procurador do Ministério Público, deu início ao julgamento do conhecido "Caso Jamaica". O tribunal ouve nos próximos dias a versão dos factos pela boca dos quatro arguidos, membros de uma família angolana, à luz dos acontecimentos de 20 de janeiro de 2019.
Na altura, agentes da Polícia Pública Portuguesa (PSP), então chamados ao bairro por volta das 6 da manhã, por causa de desentendimentos entre mulheres rivais numa festa de aniversário, num café, viriam a confrontar-se com um grupo de moradores. Um vídeo posto a circular nas redes sociais, e que faz parte do processo, mostra a violência entre a polícia e alguns moradores do Vale de Chícharos, no concelho do Seixal, mais conhecido por "Jamaica".
Mas, segundo José Semedo Fernandes, um dos quatro advogados de defesa da família, a versão do que aconteceu em 2019, que consta nos autos, apresentada ao tribunal pela juíza que preside ao julgamento, não corresponde aos factos.
"Na fase de inquérito, a titularidade da ação penal é do Ministério Público, que conduz a investigação e decide, materializando-a na acusação. Neste momento, estamos em audiência de julgamento e queremos neste caso que seja feita justiça. A vida de algumas destas pessoas [sofreu] consequências por esse facto, mas acreditamos que vai ser feita justiça e que parte desse erro vai ser reparado", diz o advogado.
Elementos da família angolana queixam-se de agressão polícial
Os factos, a serem provados, não serão com base em indícios, acrescenta José Semedo Fernandes.
"Toda a gente viu o vídeo e todas as pessoas podem tirar as suas ilações através do vídeo. O vídeo é o elemento fulcral para esta prova, mas existem outras provas que nós estamos a trazer ao processo e acreditamos que ajudarão na defesa dos nossos interesses."
Nas considerações diante do tribunal, Lúcia Gomes, outra advogada da família, disse que o processo vem todo ele enviesado desde o início, isto porque "as imagens demonstram que houve agressões gratuitas a pessoas que estão a ser julgadas sem que em nenhum momento tivessem agredido os polícias."
A defesa fala ainda de abuso da autoridade por parte de alguns agentes policiais.
"O Ministério Público não respeitou o princípio da imparcialidade ao deduzir acusação contra os quatro elementos da família. As pessoas agredidas gratuitamente agiram em defesa da família", afirmou a advogada Lúcia Gomes.
A mãe, Julieta, responde pelo crime de resistência e coação. Um dos filhos, Hortêncio, está pronunciado por nove crimes, dois de resistência e coação e sete de injúria agravada. Outro filho, Flávio, responde por oito crimes, sendo dois de resistência e coação, dois de ofensa à integridade física qualificada, um de dano e de introdução em lugar vedado ao público e dois crimes de ameaça agravada. Sobre a filha, Higina, recaem os crimes de resistência e coação, um de dano, um de introdução em lugar vedado ao público e dois de ameaça agravada. O pai, Fernando, é ouvido como assistente, na qualidade de ofendido.
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Agente da polícia suspenso é arguido
Apenas um polícia, agora suspenso da PSP, faz parte do processo como arguido, sobre o qual recai o crime de ofensas à integridade física simples.
O seu advogado, João C. Pinto, abordado pela DW África, negou comentar o caso, afrrmando que "não presta declarações sobre processos pendentes".
"Os advogados discutem os casos na sala de audiências, que é o local sagrado que os humanos estabeleceram para fazer justiça", referiu.
O advogado disse nas considerações iniciais que, "independentemente da cor, não se deve transformar um caso da vida numa forma avulsa e com preconceito prévio de uma dada maneira sem vermos o final da prova que se produz".
Marginalização: Onde vivem os afrodescendentes em Lisboa
Em Lisboa, vivem dispersas várias comunidades, entre as quais a africana e de afrodescendentes. Ao longo dos anos, foram submissas a uma posição social que contribuiu para a sua marginalização.
Foto: DW/J. Carlos
O caso extremo da Jamaica
Jamaica é um exemplo de marginalidade no Vale de Chícharros, situado no Seixal, no distrito de Setúbal. "As condições são incríveis. Nem se acredita", lamenta a arquiteta italiana, Elena Taviani. O realojamento das famílias, de acordo com a autarquia local, ficará completo em dezembro, antecipando o calendário para a sua conclusão em 2022. Aqui vai nascer um parque urbano e uma zona comercial.
Foto: DW/J. Carlos
Mapeamento dos bairros
A arquiteta italiana Elena Taviani decidiu fazer o mapeamento dos bairros residenciais onde é assinalável a presença de africanos e afrodescendentes para avaliar o índice de marginalização no espaço urbano na Área Metropolitana de Lisboa. O estudo em curso pretende mostrar que tais comunidades foram "empurradas" pelas estruturas do poder a ocupar uma posição marginal em Lisboa.
Foto: DW/J. Carlos
"6 de maio" em fase de extinção
No bairro "6 de maio", na Damaia, também construído por imigrantes africanos, ainda restam estruturas num raio de dois quilómetros. A forma como foram realizadas as demolições e o realojamento das pessoas que ali moravam ainda estão a ser objeto de grande debate e conflito entre a população e a Câmara Municipal.
Foto: DW/J. Carlos
Cova da Moura e o estigma da criminalidade
A Cova da Moura, no concelho da Amadora, mantém o seu traçado arquitetónico peculiar, onde é muito forte a identidade cultural africana, em particular a cabo-verdiana. Um dos bairros informais outrora rotulado de "problemático" pela imprensa "é um dos sítios onde as pessoas ainda evitam ir pelo seu forte estigma de negatividade e criminalidade", refere Elena Taviana.
Foto: DW/J. Carlos
Sinais de degradação no Bairro Amarelo
No Monte da Caparica, em Almada, fica o Bairro Amarelo. O também conhecido Bairro do Pica Pau Amarelo acolheu grupos de pessoas oriundas dos PALOP que viviam em barracas espalhadas pelo município. O bairro está minimamente dotado de infraestruturas sociais, mas notam-se sinais de degradação dos edifícios e falta de higienização nalgumas das áreas circundantes e do interior.
Foto: DW/J. Carlos
Protestos por uma melhor habitação
Ricardina Cuthbert, do precário Bairro da Torre em Camarate (Sacavém), é uma das vozes que, desde 2012, tem reclamado melhores condições de habitação para cerca de 40 famílias que lá vivem. "Tem sido um processo muito lento", lamenta a dirigente da Associação Torre Amiga.
Foto: DW/J. Carlos
Trajetória espacial dos afrodescendentes
Elena Taviani quer aprofundar o estudo sobre esses bairros para a sua tese de doutoramento a apresentar, em 2021, no Gran Sasso Science Institute (Itália). Em junho, a arquiteta publicou uma análise relativa à trajetória espacial dos afrodescendentes na revista científica de Estudos Urbanos "Cidades, Comunidades e Territórios", editada pelo Instituto Universitário de Lisboa.
Foto: DW/J. Carlos
Mouraria em transição
A Mouraria, onde vive Taviani com o marido cabo-verdiano e a filha, está numa fase de profunda renovação por força da especulação imobiliária. No passado, tinha o estereótipo de um lugar central, mas degradado, com rendas muito baixas, o que atraiu muitos imigrantes, entre os quais africanos. De acordo com a sua pesquisa, cerca de 25% dos que moram em Mouraria são originários dos PALOP.
Foto: DW/J. Carlos
Uma das zonas de referência
Apesar da inflação dos preços provocada pela valorização urbana e pelo turismo, o bairro da Mouraria ainda tem alguma presença de africanos e afrodescendentes. Ainda antes dos asiáticos, introduziram aqui o comércio de produtos oriundos de África, acabando por ser hoje uma zona de referência na capital para negócios e para quem quer fazer compras ou procurar gastronomia dos países de origem.
Foto: DW/J. Carlos
Sem razões de queixa
Januário morava numa barraca em Algés. Veio para Portugal com 16 anos e fixou-se na Outurela quando tinha 39 anos de idade. Natural de Cabo Verde, ele está em Portugal há 45 anos, já com nacionalidade portuguesa. Gosta do bairro e do convívio entre as pessoas. Os transportes funcionam bem, tem autocarros à porta. Não tem razões de queixa.
Foto: DW/J. Carlos
O bom exemplo de Outurela
Outurela – onde existe uma forte comunidade cabo-verdiana – é considerado "um caso bem sucedido" no âmbito do programa de realojamento da Câmara Municipal de Oeiras. "Os moradores dizem que tiveram sorte de serem realojados ali", afirma Elena Taviani, que menciona também o Casal da Mira, na Amadora, como um sítio onde as coisas vão melhorando, apesar do forte estigma negativo.
Foto: DW/J. Carlos
Arte urbana na Quinta do Mocho
A Quinta do Mocho, em Loures, passou a designar-se Terraços da Ponte, depois de construído. É uma das "ilhas" com grandes problemas de marginalidade. O bairro, que sempre teve uma imagem negativa, foi transformado na maior galeria de arte urbana a céu aberto da Europa com mais de cem grafittis nas suas fachadas cegas. Essa é uma tentativa de criar um novo pólo de atração turística.