Chefes de Estado de Portugal e Cabo Verde defenderam neste sábado (22.02) que o racismo deve ser combatido "todos os dias". O debate intensificou-se após caso do futebolista do FC Porto, Marega.
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"O combate pelo respeito do outro, da diferença, pela integração, pela inclusão, pela fraternidade é um combate de todos os dias, tem de se fazer todos os dias na vida social porque é um combate cultural e cívico. Tem de se fazer com bom senso, com serenidade e evitando escaladas e reações contraproducentes", disse Marcelo Rebelo de Sousa.
O Presidente da República português falava aos jornalistas, na Casa do Alentejo, em Lisboa, ao lado do homólogo cabo-verdiano, Jorge Carlos Fonseca, no final de uma conferência para assinalar os 50 anos da Associação Caboverdeana de Lisboa, durante a qual as dificuldades de integração e os obstáculos colocados pelo racismo centraram a parte dos debates.
Na última semana, o Ministério Público de Portugal abriu uma investigação sobre as manifestações racistas dirigidas ao atacante malinês Moussa Marega, do FC Porto, durante um jogo, no domingo (16.02), realizado no estádio D. Afonso Henriques, pelo Campeonato Português. Após marcar um gol, o jogador deixou o campo por ter sido xingado de macaco e de chimpanzé por torcedores da equipe da casa.
Discriminação e intolerância
Marcelo Rebelo de Sousa defendeu um combate "pela positiva" a manifestações racistas e discriminatórias. "O nosso papel é fazer pedagogia positiva, do respeito das constituições, dos mesmos valores da democracia, do estado de direito, da igualdade, da fraternidade, da não discriminação e da não intolerância", disse.
O chefe de Estado cabo-verdiano, a quem coube encerrar a conferência, alertou na sua intervenção para o agudizar das "dificuldades de inserção social" dos cabo-verdianos, sobretudo os mais jovens, em Portugal, indicando como expressões dessas dificuldades "o desemprego, o aumento do número de descendentes de cabo-verdianos nos estabelecimentos prisionais, o insucesso e o abandono escolar e uma certa conflitualidade emergente" com as autoridades locais.
Jorge Carlos Fonseca apontou também a "existência de manifestações de racismo e intolerância". "Essas situações que resultam de uma multiplicidade de fatores e que são protagonizadas por setores minoritários, devem ser combatidas, com determinação, muita inteligência, serenidade e em articulação estreita com as numerosas organizações portuguesas que se posicionam claramente contra elas", defendeu.
Racismo em Portugal
O debate sobre o racismo intensificou-se nos últimos tempos em Portugal após os episódios envolvendo cidadãos africanos, de que o caso do futebolista do FC Porto, Marega, é o exemplo mais recente.
O assunto não passou ao lado da conferência organizada para assinalar os 50 anos da ACV, com a deputada do Bloco de Esquerda, Beatriz Dias, a defender, durante um painel sobre integração das novas gerações de africanos, que há "manifestações de um racismo bastante enraizado e bastante naturalizado" na sociedade portuguesa.
A parlamentar, nascida no Senegal e de ascendência guineense, considerou que uma das maiores dificuldades nesta matéria é o "reconhecimento de que as manifestações de racismo configuram obstáculos aos direitos e à emancipação dos negros em Portugal".
"Existem manifestações de racismo e essas manifestações são uma das causas da desigualdade e da exclusão social", adiantou.
Beatriz Dias encontra muitas das origens deste racismo no processo colonial português, defendendo a necessidade combater o eurocentrismo no ensino da História desse período, bem como de promover uma "justiça histórica" para o continente, as civilizações e as culturas africanas para combater a ideia de "inferioridade biológica e cultural" que continua a existir na sociedade portuguesa.
Candomblé: A religião africana do Brasil
O Candomblé nasceu da cultura dos escravos africanos. Ainda hoje, os seguidores sofrem de discriminação e racismo. Fomos aos "terreiros", os locais de culto, em Salvador da Bahia, a cidade mais "africana" do Brasil.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Espíritos do Brasil - Deuses de África
A bandeira do Brasil no terreiro Ilé Axé Oguntòóla em Lauro de Freitas, nas redondezas de Salvador, é uma homenagem ao caboclo Boiadeiro das Sete Chapadas, que ajuda as pessoas a se curarem com ervas, segundo a crença. Para além de caboclos, espíritos de origem brasileira, são reverenciados orixás, deuses do Candomblé iorubá do oeste de África, e nkisis, deuses do Candomblé bantu do sul de África.
Foto: Alberto Batinga Pinheiro
Símbolo da luta contra a intolerância religiosa
Na Lagoa do Abaeté, no bairro Itapuã em Salvador da Bahia, foi erguido um busto em homenagem a Gildásia dos Santos, a mãe de santo Gilda. Mãe Gilda, como era conhecida, faleceu de enfarte após sofrer dois episódios seguidos de intolerância religiosa por duas igrejas evangélicas. O dia da sua morte, 21 de janeiro, foi decretado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa no Brasil.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Terreiro fundado por princesas africanas
Fundado no século XIX por três princesas africanas trazidas como escravas para o Brasil – Iyá Detá, Iyá Kalá e Iyá Nassô – o terreiro Casa Branca é o mais antigo em funcionamento em Salvador e possivelmente também no Brasil. Os templos de candomblé são conhecidos por "terreiros". No centro da sala de liturgia está o altar com objetos sagrados e a coroa de Xangô, o orixá (deus) da justiça.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Deusa da água doce e do amor
No terreiro Casa Branca, em Salvador da Bahia, é dia da festa de Oxum, a orixá feminina (deusa) das águas doces dos rios e cachoeiras, da riqueza, da prosperidade, do amor e da beleza. Enquanto os carros passam em velocidade na agitada avenida de Vasco da Gama, em Salvador, as filhas e filhos de santo da casa preparam o barco com flores e bonecas em homenagem a Oxum.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Casas para os deuses e espíritos
Nos terreiros de candomblé existem várias "moradas" para os orixás e caboclos. Alguns têm construções feitas inteiramente para si, outros moram lugares ao ar livre, como uma árvore, por exemplo. Estes lugares são cuidados como sagrados e reverenciados com oferendas e cantos. No terreiro Casa Branca, o barco pertence a Oxum, a casa azul no fundo é a morada de Ayrá, o orixá da justiça e dos ventos.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Esculturas de orixás homenageiam tradição
No Dique do Tororó, em Salvador, uma vez ao ano, representantes das religiões afro-brasileiras amarram Ojás – tecidos sagrados – nas árvores para homenagear a paz e boa convivência entre as religiões. Em 2015, foi aprovada pela Câmara de Vereadores uma lei que prevê instalar uma bíblia no Dique. O movimento negro contesta a medida e diz que símbolos cristãos já estão presentes em muitos locais.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Mãe de santo Conceição
Mãe Conceição é mãe de santo, a responsável do terreiro, no bairro de São Gonçalo do Cabula, na periferia de Salvador. Há 26 anos no local, ela atende a comunidade com serviços espirituais e também realiza trabalhos sociais, como rodas de leituras para crianças e aulas de cultura africana. O Centro de Caboclo Sultão das Matas fica no quintal da casa onde Conceição mora com suas filhas e netos.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Homenagem anual a Marujo
Na sala de sua casa, a mãe de santo Elisa mostra uma fotografia da festa do caboclo Marujo, o espírito que, de acordo com o candomblé, é o protetor de todas as pessoas que sobrevivem trabalhando nas águas doces e salgadas, como os pescadores e marinheiros. Na festa anual do caboclo Marujo, Mãe Elisa jogou perfume de alfazema sobre os arranjos de flores que foram presenteados ao mar.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Mãe de santo Elisa
Mãe Elisa é mãe de santo há 30 anos. Mora no bairro de Mussurunga, na periferia de Salvador da Bahia. Na entrada de sua casa está o altar em homenagem a Exu, o orixá dos caminhos, que tem a função de proteger quem entra e quem sai do local. No altar também está Ogum, dono dos ferros, orixá que protege as estradas e quem por elas passa.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
O axé guarda a força espiritual
Sandra Bispo é a mãe pequena do terreiro Oxumarê, um dos mais antigos de Salvador, fundado no início do século XIX. Como mãe pequena, ela é a segunda na hierarquia religiosa da casa, guiada pelo pai de santo Babá Pecê. Sandra mostra o "axé" do terreiro – o altar no centro da sala litúrgica onde, segundo a crença do candomblé, está guardada a força espiritual do local.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Liderança matriarcal desde a escravidão
O terreiro de Gantois, no bairro Federação, distingue-se pela liderança matriarcal, sendo regido desde 1849 por mães de santo. São escolhidas por critérios de hereditariedade na descendência espiritual da casa, iniciada por Maria Júlia da Conceição Nazareth, que veio de África como escrava e posteriormente foi liberta. No Brasil, a escravidão apenas foi abolida em 1888 através da "Lei Áurea".
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Sincretismo com o cristianismo
O Terreiro de Gantois deriva da família belga Gantois, traficante de escravos e dona destas terras no século XIX. O terreiro é regido por Oxóssi, o orixá das matas, das florestas, da caça. Oxóssi também é simbolizado pelo santo católico São Jorge no chamado sincretismo. Na foto, as "filhas de santo" da casa participam de uma celebração e vê-se ao fundo a orixá (deusa) Oxum, esposa de Oxossi.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Símbolo da perseguição do Candomblé
A cadeira, que representa no Candomblé o poder e respeitabilidade, foi apreendida em 1920 numa invasão da polícia ao terreiro do pai de santo Severiano Jubiabá. Até a primeira metade do século XX, o Governo do Brasil e a polícia brasileira perseguiram o Candomblé e os seus praticantes. Em 2015, a cadeira foi devolvida ao pai de santo Anselmo dos Santos (foto), que continua a linhagem de Jubiabá.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
As várias estátuas do altar
No terreiro Oxumarê, o altar exibe estátuas trazidas de África, que simbolizam figuras similares aos orixás do Candomblé brasileiro. No século XIX, como a religião era proibida e perseguida pela polícia, durante o dia, ícones cristãos figuravam no local enquanto que os objetos do Candomblé ficavam escondidos. À noite, os praticantes da religião tiravam seus símbolos para realizarem os cultos.
Foto: DW/Joana Brandão Tavares
Assegurar o futuro do Candomblé
O terreiro de Lembá, localizado no município de Camaçari a cerca de 40 quilómetros de Salvador da Bahia, fundou em 2011 a Escola Zumbi dos Palmares, a primeira a funcionar dentro de um terreiro na Bahia. Na ocasião, representantes de igrejas evangélicas protestaram contra a abertura da escola, acusando o terreiro de "roubar as almas" das crianças, lembra Ricardo Tavares, o pai de santo do lugar.