Portugal está a reagir "como deve ser" às críticas de Angola
28 de fevereiro de 2017A tensão volta a subir de tom nas relações entre Portugal e Angola. Desta vez, a crise gira em torno da acusação do Ministério Público (MP) português ao vice-Presidente angolano. Manuel Vicente foi formalmente acusado de corrupção, falsificação de documentos e branqueamento de capitais e as reações das autoridades angolanas não se fizeram esperar.
O Ministério angolano das Relações Exteriores classifica como "inamistosa e despropositada" a forma como as autoridades portuguesas divulgaram a acusação e o Jornal de Angola critica a Justiça portuguesa e diz que "custa ver tanta falta de vergonha". Em resposta, Portugal garante que as relações diplomáticas não estão em causa e sublinha o respeito pela separação de poderes no país. Uma reação "como deve ser”, nas palavras da eurodeputada socialista portuguesa Ana Gomes.
DW África: Como vê estas críticas que chegam de Angola às autoridades portuguesas?
Ana Gomes (AG): Não é a primeira vez que Angola reage procurando que haja consequências ao nível da relação entre os dois países. Penso que as autoridades portuguesas estão a reagir como deve ser: com calma, sublinhando que há respeito pela separação de poderes em Portugal. Não cabe às autoridades portuguesas dizer à Justiça o que deve ou não deve fazer. A investigação do Ministério Público diz respeito a crimes que foram praticados em Portugal e que são muito graves, porque envolvem a corrupção de um procurador do MP que estava a investigar crimes de corrupção em que Manuel Vicente estava envolvido.
É evidente que Portugal tem muitas e intensas relações com Angola, mas nós queremos respeitar o estado de Direito e a separação de poderes. Se Angola quer ser respeitada, também deveria respeitar o estado de Direito. Há quem diga que esta reação de Angola tem a ver com a necessidade de o regime mostrar que não deixa que se constitua um precedente para lutar contra a corrupção em Angola e em Portugal. E há uma implicação entre a corrupção nos dois países. Tudo o que a Justiça portuguesa faça para pôr a nu os corruptos e os branqueadores de capitais que estão mancomunados em Angola e Portugal é muito importante para os dois países.
DW África: Em 2013, numa crise idêntica, o então ministro português dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, pediu desculpas diplomáticas a Angola pelos processos contra altos nomes da diplomacia angolana…
AG: Foi um comportamento indecoroso que não serviu certamente os interesses de Portugal e também não serviu a causa das relações entre Portugal e Angola.
DW África: Acha então que o atual Governo português terá uma atitude diferente em relação a esta crise?
AG: Já está a ter. A partir do momento em que o primeiro-ministro português, António Costa, disse que não ia comentar um caso da Justiça portuguesa e reafirmou a separação dos poderes judicial e executivo, de acordo com os princípios constitucionais e democráticos, é evidente que já está a ter uma reação completamente diferente. Vamos esperar que as autoridades angolanas não exacerbem o mal-estar, porque todos sofremos com isso, a começar pelo povo angolano, aqueles que em Angola dependem dos interesses portugueses e outros em Portugal.
Penso que Portugal não quer reagir de uma forma que atire mais achas para a fogueira. Tanto mais, porque sabemos do momento particularmente crítico que se está a viver em Angola, em resultado da crise económica, por ser também um período pré-eleitoral e com todas as tensões que isto implica na sociedade. Desde logo, na elite angolana, onde haverá, certamente, muita gente preocupada com o precedente que uma investigação deste género em Portugal pode - e deve - constituir para clarificar uma série de relações muito perniciosas entre os corruptos em Angola e em Portugal.
DW África: Aparentemente, já houve uma consequência, o adiamento da visita da ministra portuguesa da Justiça a Angola. Poderá estar em causa uma visita do primeiro-ministro português, António Costa?
AG: Com certeza. Não há dúvida nenhuma de que a visita da ministra, que estava programada e foi adiada à última hora, é uma consequência da reação das autoridades angolanas. Não vem mal nenhum ao mundo (risos). Não vem mal nenhum a Portugal que ela não vá, como não vem mal nenhum a Portugal e às relações com Angola se o primeiro-ministro adiar os planos que tinha de uma visita na primavera a Angola. Não vai lá fazer nada se não houver interlocutores dispostos a interagir, na base de uma relação correcta e respeitadora da democracia. Perante o comunicado do Ministério das Relações Exteriores e as reacções do oficioso Jornal de Angola, vê-se que neste momento não há condições nenhumas para a realização dessa visita.
Portugal não tem de estar inquieto quanto aos interesses que se plasmavam numa visita do primeiro-ministro a Angola. Quando houver condições para isso, ela certamente se fará. Isto não nos dispensa de estarmos inquietos perante a sorte de todos aqueles – portugueses e angolanos - que trabalham em condições muito difíceis em Angola, com uma tensão muito grande na sociedade angolana, como se viu com o bárbaro e brutal ataque da polícia a manifestantes pacíficos. Lembro-me dos tempos da ditadura colonial fascista, que muitos em Portugal e Angola combatemos, e não gosto que isso esteja a acontecer na Angola dos nossos dias.
DW África: Acha que as relações entre os dois países poderão estar ameaçadas?
AG: Não, nunca estarão ameaçadas. Há interesses permanentes que ninguém pode pôr em causa. Interesses que têm a ver com toda a história, com os laços de sangue e de todo o género que se desenvolveram ao longo de séculos e, especialmente, nos últimos anos. Ninguém pode pôr em causa as relações entre Portugal e Angola. Há sempre períodos complexos nas relações entre os povos e, naturalmente, compreendemos que Angola atravessa um período de grande sensibilidade. Não queremos, obviamente, exacerbar as tensões. É do interesse de Portugal que Angola não soçobre numa explosão de violência, que haja uma transição pacífica, que o país venha efectivamente a gozar de uma democracia em que todos tenham voz, em que haja respeito pelos direitos humanos e em que a justiça funcione. Não vamos contribuir de maneira nenhuma para agravar as relações, mas estar serenamente confiantes de que elas não podem ser afectadas por quem quer que seja e, sobretudo, por representantes de interesses cleptocratas e corruptos.