Incidentes no bairro da Jamaica, em Portugal, evidenciam "a falta de preparação da polícia", afirma socióloga. Para esta sexta-feira estão previstos protestos contra a discriminação racial e a violência policial.
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Os últimos incidentes no bairro da Jamaica, no Seixal, sul de Portugal, envolvendo uma família angolana vítima de agressões por parte de agentes da polícia, suscitaram o debate sobre o racismo institucional na sociedade portuguesa.
Hernâni Miguel, um dos rostos conhecidos da cidade de Lisboa, onde chegou em 1965, diz que nunca foi vítima de um ato racista em Portugal. Mas o guineense naturalizado português, de 60 anos, conhece vários casos de discriminação envolvendo amigos africanos, ainda nos anos de 90.
"Conheço algumas pessoas que tiveram situações embaraçosas. Todos eles foram com africanos", diz. "Esses meus amigos, alguns estavam em sítios onde não deviam estar, na hora errada, mas isso não era motivo para que as coisas descambassem como descambaram."
O empresário, dono de um conceituado bar na capital portuguesa, conta que tais atos de excessiva violência por parte da polícia contra africanos poderiam ter sido substituídos por diálogo pedagógico. E Hernâni Miguel lembra uma frase do ativista político norte-americano que lutou contra a discriminação racial, Martin Luther King: "Temos de aprender a viver todos como irmãos ou morreremos todos como loucos."
"Ou seja, quer queiramos quer não, a não-violência é que é a arma. Não é a violência de ambas as partes", afirma.
É desta forma que Hernâni Miguel olha para a recente violência policial contra uma família de angolanos, residente no bairro da Jamaica. O incidente ocorrido naquele bairro, na manhã de domingo último (20/01), mobilizou cerca de duas dezenas de jovens africanos e afrodescendentes que, no dia seguinte, promoveram uma manifestação de protesto em Lisboa, igualmente desmantelada pela intervenção da polícia.
Pelas redes sociais e na praça pública surgiram reações condenando a atitude dos agentes policiais.
Debate sobre racismo
Mário de Carvalho, dirigente de um movimento associativo, lembra-se de vários casos de violência policial na zona da Amadora, periferia de Lisboa, onde vive uma larga comunidade de imigrantes africanos.
Carvalho admite que existe racismo em Portugal e uma má interpretação das leis por parte das forças policiais, "mas o que nós não podemos fazer é extrapolar, generalizar, e dizer que a sociedade portuguesa é racista."
"O que eu acho é que existem práticas racistas dentro da sociedade portuguesa, e aí é que temos que ter toda a nossa força de criminalizar e denunciar" tais práticas", acrescenta.
O ativista cabo-verdiano, ligado à cooperativa "MovingDiáspora", defende que a criminalização de tais práticas compete a instituições como o Ministério Público, que tem por incumbência investigar, concluir e decidir sobre os crimes.
Não basta uma ação pedagógica, comenta Mário de Carvalho, reconhecendo que esta matéria deve ser discutida profundamente, mas no tempo certo, já que, segundo diz, a polémica à volta dos últimos incidentes com a polícia está a ser contaminada com as próximas eleições em Portugal pelos populistas e demagogos.
Hernâni Miguel lembra que os casos de violência policial não são de hoje, mas receia uma "nova Europa de direita, que está a crescer".
"Não sou eu que o digo, já veio publicamente plasmado na imprensa que temos alguma polícia de direita [em Portugal], mas de uma direita extremista", refere.
Miguel considera que o problema está nas chefias das polícias, o que constitui uma preocupação: "Aquelas recentes imagens no bairro da Jamaica não fazem sentido em lado nenhum", afirma, recordando "com repúdio total" o ódio racial nos Estados Unidos contra os afroamericanos e a política de 'guetos' nos chamados bairros sociais em Portugal.
"Este é um dos erros que se cometeu no passado. Estamos a tempo de os retificar", aconselha.
Violência e condições sociais
Luzia Moniz, abordada pela DW na qualidade de socióloga, sustenta que estes fenómenos inerentes à violência policial contra africanos e afrodescendentes não são atos isolados. E frisa que "não só há discriminação racial como também discriminação social."
"Este episódio do bairro da Jamaica traz ao de cima […] a falta de preparação da polícia para lidar com aqueles que estão na base da pirâmide social, que é o caso daquelas famílias que vivem naquelas zonas degradadas sem qualquer condição humana para os padrões europeus."
Incidentes no bairro da Jamaica geram debate sobre racismo
A socióloga angolana lamenta, dizendo que "a preservação da segurança pública não se faz com a agressão, com a violência contra o cidadão". O que, na sua perspetiva, releva para a questão do racismo institucional e estrutural que existe na sociedade portuguesa. "E isso não pode ser escamoteado", sublinha.
Na passada terça-feira (22/01), a Embaixada de Angola em Portugal reagiu aos incidentes no Seixal, entre agentes da Polícia de Segurança Pública e um grupo de moradores do bairro da Jamaica, tendo enviado uma nota formal de protesto ao Governo português. A Embaixada refere, num comunicado tornado público, que "reprova inequivocamente tais atos, denunciando quaisquer tentativas de aproveitamento ou a intenção de ligação desses desacatos que põem em causa a tranquilidade e ordem pública".
No mesmo dia, o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, disse à imprensa que não tinha recebido a nota de protesto de Angola.
No Ministério Público português está em curso uma investigação sobre os acontecimentos no bairro da Jamaica.
Bairro da Jamaica na margem sul de Lisboa: A prolongada esperança
A Urbanização do Vale de Chícharos no Seixal, concelho do distrito de Setúbal (Grande Lisboa), acolhe, na sua maioria, imigrantes dos países africanos de língua portuguesa. Há quem viva no bairro há mais de 20 anos.
Foto: J. Carlos
Décadas à espera de realojamento
Os prédios inacabados, propriedade da Urbangol, uma sociedade sedeada num paraíso fiscal com dívidas ao fisco, foram ocupados por pessoas de baixa renda que não tinham condições para comprar uma casa. Aguardam, ao longo destes anos, pela promessa de realojamento por parte da autarquia local.
Foto: J. Carlos
Arte e desabafo por um bairro melhor
Por uma das entradas do Jamaica, os visitantes são recebidos por estes murais pintados na parede que cerca a instalação de transformadores da EDP, Energias de Portugal. As pinturas expõem os sentimentos de mudança e a visão do mundo por parte dos artistas que aspiram viver em um bairro melhor.
Foto: J. Carlos
Os ídolos Bob Marley e Che Guevara
O lendário músico jamaicano Bob Marley ou o líder guerrilheiro argentino-cubano Che Guevara são uma espécie de ídolos para os jovens artistas autores destas pinturas. Ao longo da parede, que funciona como uma tela, veem-se outros motivos, incluindo a reprodução de um bairro típico imaginário em África.
Foto: J. Carlos
Falta de água e de luz
Nos cafés ou em outro ponto de encontro e de convívio, os moradores acabam por falar e questionar sempre sobre os inúmeros problemas com que se deparam no dia-a-dia. A falta de água e de saneamento básico ou os cortes de luz pela empresa fornecedora quando não são pagas as faturas coletivas constituem uma dor de cabeça diária.
Foto: J. Carlos
Mas, na hora de matar a fome…
Enquanto não vem uma solução para o realojamento, a vida não para no Jamaica. Aos fins de semana, a música ajuda a acalentar os problemas. Os grelhados à moda dos países de origem, preparados neste caso pela são-tomense Vitória Silva, servem para matar a fome depois de um dia de trabalho árduo.
Foto: J. Carlos
… Pratos típicos juntam amigos
Percorrendo o território adjacente, encontram-se vários espaços anexados como este, adaptados para café e ou restaurantes, são uma das fontes de rendimento familiar. Os pratos típicos de África, sobretudo à base de peixe e banana, recheiam as mesas dos clientes provenientes de sítios diversos e servem de pretexto para reunir amigos.
Foto: J. Carlos
Cultivar para render
Em uma pequena parcela do terreno à volta, há moradores com alguma experiência agrícola que improvisaram hortas com variedades de hortaliças para consumo próprio. Plantam couves, alfaces, tomates, cebolas, alhos e batatas, entre outros produtos que ajudam a aliviar as despesas com a alimentação.
Foto: J. Carlos
Produzir para sobreviver
Também com o mesmo objetivo, a criação de galinhas reforça a dieta alimentar caseira. Para alguns dos moradores desempregados ou não, esta é uma das formas para suprir as muitas dificuldades de sobrevivência quando é baixo o rendimento familiar.
Foto: J. Carlos
Desemprego, droga e prostituição inquietam
O desemprego é um dos males que inquietam jovens mães como Vanusa e Aurora Coxi. Dizem que os habitantes são, de certo modo, discriminados quando procuram emprego pela fama desmerecida de aqui morarem. Isso leva muitos jovens a seguir por caminhos impróprios, do roubo, do tráfico de droga ou da prostituição. Ambas têm um sonho: acabar a universidade, interrompida por dificuldades diversas.
Foto: J. Carlos
Inundação e humidade
A estes problemas juntam-se as condições de habitabilidade nos prédios, que afetam a maioria das mais de 800 pessoas aqui residentes. Júlio Gomes, guineense que mora num anexo improvisado na parte traseira de um dos prédios, é afetado pela inundação quando chove ou quando rompe a canalização do sistema de esgotos do vizinho do andar de cima.
Foto: J. Carlos
Acesso à tarifa social de eletricidade
Os moradores estão em conflito com a empresa que fornece eletricidade (EDP), porque o critério de cobrança não é o mais adequado. É a associação do bairro que recebe o dinheiro dos consumos mensais e paga as faturas únicas por lote, consoante a leitura no contador colocado em cada prédio. Mas há quem não pague. Os clientes reclamam por não beneficiarem de tarifa social.
Foto: J. Carlos
Sede a precisar de reabilitação
Na sede da Associação para o Desenvolvimento Social da Urbanização de Vale de Chícharos, onde vive uma família, as inundações também constituem um incómodo quando chove. Aqui têm lugar as reuniões para discutir os problemas que afetam os residentes, entre os quais o realojamento. Reabilitar o espaço, onde também funcionam aulas de alfabetização, é uma solução em stand by por falta de recursos.
Foto: J. Carlos
Parque infantil inseguro
Ao lado da sede está um pequeno parque infantil, igualmente sem as condições mínimas de segurança para as crianças brincarem. Os poucos equipamentos nele existentes estão em mau estado de conservação e utilização. Este é, entretanto, um dos poucos espaços de lazer que dispõem para descarregar energia e preencher o tempo.
Foto: J. Carlos
Ação social imprescindível
A CRIAR-T – Associação de Solidariedade tem prestado serviço útil à comunidade, já lá vão mais de 15 anos. As suas várias valências permitem, além de apoio social, acolher crianças enquanto os pais vão trabalhar. Porque «é um perigo elas andarem pelo bairro a brincar», diz Dirce Noronha, presidente da Associação para o Desenvolvimento de Vale de Chícharos.