Livro da jornalista portuguesa Joana Gorjão Henriques retrata situações de discriminação contra negros e afrodescendentes em Portugal onde, segundo a autora, "permanece a ideia de que não há racismo".
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A consagração pelo Parlamento português do dia 21 de maio como Dia Nacional para a Eliminação da Discriminação Racial é já um passo "bastante positivo", na perspetiva de Joana Gorjão Henriques. Para a jornalista portuguesa, a recente aprovação da data significa que há um reconhecimento desta problemática. Mas é preciso que isso corresponda, "na prática, a medidas e ações para combater a descriminação racial".
Joana Henriques é autora de "Racismo no País dos Brancos Costumes", já nas livrarias portuguesas e apresentado este sábado (05.05) em Lisboa. "Prevalece a ideia de que não há racismo em Portugal", afirma a jornalista, questionando se este é de, facto, um país que acolhe bem os imigrantes. "Na verdade, se formos a ver à lupa e fizermos um zoom, as situações de discriminação são inúmeras, repetidas", sublinha.
Histórias reais de racismo
A autora do livro "Racismo no País dos Brancos Costumes" retrata exemplos concretos, recorrendo a dados e mais de 80 entrevistas, que demonstram as situações de racismo em várias áreas (justiça, educação, habitação e emprego). São histórias reais que acontecem no Portugal de hoje, um país que mais depressa condena um negro e que recusa a nacionalidade portuguesa aos filhos de imigrantes nascidos no território nacional, entre outras.
No que toca à justiça, com base nos dados dos serviços prisionais que consultou, Joana Gorjão Henriques conclui que "um cidadão dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) tem dez vezes mais probabilidade de estar na prisão do que um cidadão português".
"Isto significa que, comparando, por exemplo, com países como os EUA, que têm taxas elevadíssimas de encarceramento – e também taxas elevadíssimas de encarceramento de afro-americanos – é o dobro. Portugal apresenta o dobro relativamente aos cidadãos dos países africanos", explica a autora. Neste cenário, acrescenta a jornalista, falta incluir os cidadãos portugueses negros: "Essa fotografia ainda poderia ser mais chocante, as diferenças poderiam ser ainda maiores se incluíssemos os portugueses negros e o fizéssemos por diferenças raciais e não por origem nacional".
"Acontece que, em Portugal, não é possível fazer essa recolha de dados e, portanto, teve que se recorrer àquilo que alguns sociólogos chamam de proxy, ou seja aproximação, que foi através dos dados da imigração", afirma.
Preconceito mantém-se
Infelizmente, lamenta a autora, "continuamos a associar a questão da cor da pele à imigração, ou seja: continuamos a dizer que os cidadãos imigrantes são negros e que os cidadãos negros são necessariamente imigrantes".
Os testemunhos recolhidos por Joana Gorjão Henriques indicam que, independentemente de ser português ou não, a cor da pele é um fator de discriminação.
"Racismo no País dos Brancos Costumes"
"Uma das minhas entrevistadas conta o facto de só ter sido selecionada para uma posição de bancária porque não tinha posto a sua fotografia no curriculumvitae. Coisa que o chefe mais tarde lhe confessou, que só a tinha chamado porque não tinha percebido que ela era afrodescendente", conta.
"Até a pessoa que vai à procura de casa [para habitar] e que, por causa do seu sotaque, lhe é dito automaticamente, antes de qualquer pergunta, que a casa afinal já não está disponível, quando, no segundo a seguir, liga um cidadão com um sotaque lisboeta e a casa é disponibilizada".
Este e outros exemplos, testados pela jornalista, indicam claramente que ainda "há um preconceito", em pleno século XXI. Joana Gorjão diz que Portugal é um país de brandos costumes, como se diz, mas também de brancos costumes como diz o título do livro.
Este e outros exemplos, testados pela jornalista, indicam claramente que ainda "há um preconceito", em pleno século XXI, em Portugal. "Vivemos a ilusão de sermos um país de brandos costumes", mas também de "brancos costumes" como contextualiza o título do livro.
Estas realidades também inquietam os grupos de ativistas negros, preocupados com a forma como o colonialismo ainda marca o discurso sobre as práticas raciais na sociedade portuguesa. Segundo Joana Gorjão Henriques, as práticas de discriminação pela cor da pele "poderão ser corrigidas paulatinamente quando os poderes públicos, as entidades políticas com responsabilidade, começarem a analisar e a perceber as situações de racismo com seriedade, identificando os factos e implementando políticas para as corrigir".
Documentos da vergonha: Peças da escravatura expostas em Portugal
O Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, apresenta até dezembro a exposição "Escravatura: Memória Africana", que remonta a história até a abolição dos escravos em Portugal.
Foto: DW/J. Carlos
No Museu Nacional de Arqueologia
Ao todo são 43 as instituições, entre museus, bibliotecas e arquivos histórios de Lisboa que conjugaram esforços para mostrar ao público as memórias da escravatura negra em Portugal. Com esta exposição, aberta ao público até dezembro, a organização procura relançar a discussão sobre o tráfico, o combate e a abolição da escravatura, no âmbito dos eventos da Capital Ibero-Americana de Cultura 2017.
Foto: DW/J. Carlos
Coleiras de escravo
Durante 400 anos, Portugal teve um papel central no processo de tráfico de escravos. Neste projeto do Gabinete de Estudo Olisiponenses são apresentados alguns dos instrumentos da repressão e da escravatura, a exemplo destas coleiras de escravo em liga de cobre, do século XVIII. Fazem parte de 30 conjuntos de peças saídas do acervo diversificado do Museu de Arqueologia.
Foto: DW/J. Carlos
Grilhetas e algemas
Neste núcleo estão reunidas grilhetas de mãos ou de pés e algemas. Pertencem a um conjunto de instrumentos de sujeição que terão sido utilizados para prender escravos. É provável que para este fim fosse utilizado o mesmo tipo de instrumentos usados por condenados ou por pessoas em qualquer outra condição de captura e aprisionamento.
Foto: DW/J. Carlos
Coleira de pescoço
Esta coleira de pescoço em ferro é constituída por dois aros idênticos, articulados através de um encaixe em elo para permitir mobilidade, rematados por terminais de forma ovalada e vazada, por onde passaria uma corrente ou um sistema de fecho. Peças como esta encontram-se em pinturas em vários países europeus, mas muitos poucos museus têm o objeto, segundo a curadoria da exposição.
Foto: DW/J. Carlos
Algemas de mão
À medida que fixamos o olhar em cada uma das composições da exposição procuramos imaginar ou entender como era o dia-a-dia dos escravos, a maneira como viviam, mas sobretudo o sofrimento pelo qual passaram, presos a algemas como estas. Feitas em ferro, são constituídas por dois aros com estrangulamento mediano e extremidades extravasadas, rematadas por terminais em argola.
Foto: DW/J. Carlos
Cruzeta e manilhas
Nesta vitrina mostra-se um conjunto de objetos que integraram os sistemas pré-monetários utilizados na África subsariana, no âmbito das trocas comerciais em geral e também no comércio e tráfico de escravos realizado a partir do século XVI, na costa ocidental africana. Em cima, vê-se uma cruzeta de cobre que servira de meio de troca no tráfico de escravos.
Foto: DW/J. Carlos
Objetos de troca comercial
As manilhas, feitas em ligas de bronze, eram produzidas em diversas cidades da Inglaterra, França e Alemanha. Semelhantes na forma a braceletes, adorno muito apreciado entre as populações africanas como símbolo de estatuto, riqueza e poder, as manilhas-braceletes também se tornaram num dos objetos de troca mais difundidos no comércio entre a Europa, África e as Américas.
Foto: DW/J. Carlos
Soldados e mulher de tanga
Abstraindo-se dos elementos com cunho de escravização, a coleção mostra várias figuras de cerâmica pintada, representando soldados africanos e mulheres negras de tanga com cestos portugueses, colares e outros adornos, como missangas, usados também como acessórios rituais ou como moeda no comércio de escravos e de outras mercadorias.
Foto: DW/J. Carlos
Documentos valiosos
Além das mais de 200 peças, há documentos valiosos relacionados com a escravatura. Em primeiro plano, vê-se um manuscrito de 1579. Ao lado, a obra de Manuel Heleno, que escreveu sobre os escravos de Portugal, na sua tese de doutoramento em Ciências Históricas apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1933).
Foto: DW/J. Carlos
Grilhão ou prisão de escravos
Este é um dos objetos que evoca a escravatura no Museu de Etnologia. Trata-se de um grilhão ou prisão dos escravos, uma das raras peças existentes em Portugal que ilustra uma particular violência e desumanidade. Aprisionando conjuntamente punhos e tornozelos, resulta na imobilização e subjugação total do escravo. Um dos testemunhos de uma história sombria.
Foto: DW/J. Carlos
Tambor proibido
Dando um salto ao Museu da Música, o tambor africano distingue-se entre as peças ali expostas. É um instrumento de percussão disseminado pelo continente africano, habitualmente associado a danças e rituais religiosos. Mas, no período da escravatura, era muitas vezes proibido o seu uso por receio de estar associado a formas de comunicação entre escravos ou para atacar os donos brancos.
Foto: DW/J. Carlos
Do tráfico à abolição
O tráfico de escravos africanos adquiriu grande amplitude com a fixação dos primeiros entrepostos portugueses na África Ocidental, na primeira metade do século XV. No entanto, a decisão de Marquês de Pombal de libertar todos os escravos que entrassem no Reino encontrou oposição dos traficantes. A Marinha Portuguesa teve de envolver-se na abolição do tráfico de escravos nos domínios de Portugal.
Foto: DW/J. Carlos
O combate à escravatura
Aos poucos o tráfico de escravos foi encontrando resistência, conforme relatam os muitos documentos expostos no Arquivo Histórico Cordoaria Nacional. Aqui está o modelo de corveta mista “Rainha de Portugal”, navio da Marinha Portuguesa que prestou serviço ao longo do último quartel do século XIX, na costa ocidental de África, sobretudo em ações de vigilância e interceção do tráfico negreiro.
Foto: DW/J. Carlos
Abolição definitiva
O decreto de 25 de fevereiro de 1869 aboliu a escravidão em todas as colónias portuguesas. Os escravos existentes passariam a libertos, tendo tal condição cessado definitivamente em 1878. Este é o símbolo do fim da escravatura numa das praças de Lisboa, em homenagem a Sá da Bandeira, figura que se destacou pelos esforços incessantes a favor do movimento abolicionista.