O Governo português está a fazer o inventário de bens culturais com origem nas antigas colónias africanas para eventual devolução. Mas a forma como está a decorrer o processo suscita críticas contundentes.
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O gabinete do ministro português da Cultura, Pedro Adão e Silva, confirmou à DW África estar em curso uma operação para a listagem das obras de arte e de bens culturais trazidos das ex-colónias africanas.
O Ministério da Cultura criou uma comissão que envolve académicos e diretores de museus portugueses, para realizar um inventário minucioso, mas de forma discreta e longe da praça pública
"Este é um debate que ocorre em todos os países, nomeadamente nos países europeus que foram potências coloniais, e Portugal não é exceção", refere uma nota do Ministério endereçada à DW África.
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Críticas à composição da comissão
O historiador angolano Manuel Dias dos Santos critica o facto de não estarem envolvidos neste processo representantes de setores e países interessados. "Não há nenhum indício nesse sentido, de que se trabalha nessa direção", disse o pesquisador.
Dos Santos aponta como exemplo a antiga deputada Joacine Katar Moreira, cuja proposta de restituição do património cultural foi chumbada pelo Parlamento português em 2020. Para o historiador angolano, a não convocação da ex-deputada levanta a questão se a iniciativa não passa de uma operação de charme que visa mais os parceiros europeus, como a Alemanha, já em processo de devolução de património pilhado.
Seguir o exemplo de outros países europeus
O historiador sugere que Portugal adote as diretivas do "Relatório Macron", de 2018, e as adapte à realidade no mundo lusófono, como forma de avançar com o processo de devolução.
"Mais do que tudo é uma forma de honrar essa violência histórica que ocorreu numa perspetiva de que, não sendo possível mudar esse elemento da História, ela precisa se ver como um elemento de diálogo no presente para não se dizer que se está a julgar o presente como os olhos do passado", explica Manuel dos Santos.
Aristóteles Kandimba, escritor angolano e fundador do Tributo aos Ancestrais em Portugal, aplaude "o passo crucial e honrado" dado pelo Governo português para a devolução dos objetos de arte.
O reconhecimento dos crimes coloniais é importante, disse Kandimba à DW África. Mas mais importante ainda "continua a ser as ossadas de mais de 150 pessoas escravizadas que foram encontradas, há mais de uma década, durante a construção de um parque de estacionamento em Lagos, no Algarve [sul de Portugal]", afirma.
França devolve obras de arte ao Benim
Vinte e seis obras de arte do antigo Reino de Dahomey foram devolvidas ao Benim. Anteriormente, estiveram expostas no Museu du Quai Branly, em Paris.
Foto: Lois Lammerhuber/musée-du-quai-Branly
Uma exposição especial em Paris
Quase 130 anos depois de terem sido acrescentadas à coleção francesa, as obras de arte estão agora a ser devolvidas ao Benim, na África Ocidental. Antes da sua restituição, as obras do antigo Reino de Dahomey (situado no atual Benim) foram expostas numa exposição especial em Paris, de 26 a 31 de outubro.
Foto: Michel Euler/AP/dpa/picture alliance
Um reino temido
Dahomey, que existiu entre o século XVII até ao final do século XIX, foi um dos reinos africanos mais poderosos. Behanzin (na foto) é considerado o seu último governante independente, chegando ao poder através de estruturas tradicionais. Liderou a resistência nacional contra as tropas francesas quando estas invadiram o reino, em 1890.
Foto: picture alliance/Mary Evans Picture Library
As grandes estátuas reais
Em 1892, enquanto as tropas francesas conquistavam o país, vários artefactos - incluindo estas três estátuas reais - foram roubados do palácio real em Abomey e trazidos para França. Foram exibidas pela primeira vez no "Musee du Trocadero", antes de se mudarem em 2006 para o "Musee du Quai Branly". A construção do controverso museu custou mais de 235 milhões de euros.
Foto: picture-alliance/dpa/G. Julien
Planos para as obras no Benim
No Benim, as obras de arte serão expostas pela primeira vez na casa do governador na cidade costeira de Ouidah, situada ao lado do Museu de História (foto). Seguidamente, passarão para a antiga cidade real de Abomey, onde será construído um museu inteiramente novo. O Benim, que se tornou independente em 1960, escreveu ao governo francês em 2016, exigindo a devolução das obras.
Foto: Stefan Heunis/AFP/Getty Images
Uma promessa cumprida
Em 2017, o Presidente francês Emmanuel Macron tinha-se comprometido a facilitar uma lei sobre a restituição da arte saqueada. Até então, os objetos culturais mantidos pela França estavam sujeitos a um quadro jurídico especial. Enquanto bens públicos, eram inalienáveis, independentemente das circunstâncias de aquisição. A lei que permite a transferência de coleções foi aprovada em 2020.
Foto: Ludovic Marin/AFP via Getty Images
A espada de El Hadj Omar
Para além da restituição das obras de arte beninenses, a França devolveu também em 2019 uma valiosa espada, que pertencia ao general e estudioso El Hadj Omar, ao que é hoje o Senegal. Foi a primeira restituição feita pela França a uma das suas antigas colónias. Nesta foto, o Presidente Macky Sall do Senegal (à direita) aceita a espada.
Foto: AFP Seyllou/AFP via Getty Images
Carpintaria valiosa
Para além das estátuas reais, outros objetos reais como ceptros e altares portáteis serão restituídas ao Benin. Esta cadeira real ricamente decorada será também devolvida à África Ocidental. Além do Benim, seis outros Estados africanos - Senegal, Mali, Chade, Costa do Marfim, Etiópia e Madagáscar - apresentaram pedidos de restituição à França.
Foto: Pauline Guyon/musée-du-quai-Branly
Património perdido
Estima-se que a Europa detenha 90% do património cultural material de África. Só em Paris, as coleções do Museu du Quai Branly contêm cerca de 70.000 obras de arte da África subsaariana. Mais de metade foram adquiridas durante o período colonial francês. Estão actualmente em curso investigações para determinar se foram injustamente obtidas.
Foto: Pauline Guyon/musée-du-quai-Branly
Entrega prevista para meados de novembro
Outros países da Europa comprometeram-se também a devolver a arte dos contextos coloniais aos seus países de origem. A Alemanha, por exemplo, quer devolver os chamados bronzes do Benim à Nigéria a partir de 2022. Em França, o Presidente Macron vai assinar os documentos oficiais de entrega ao Benim no dia 9 de novembro. Espera-se que as obras de arte cheguem ao país brevemente.