O governo de Cabo Delgado ordenou a retirada do equipamento da Rádio Comunitária de Mocímboa da Praia. A FORCOM denuncia a medida como ilegal e uma ameaça à liberdade de imprensa. Promete agora levar o caso à Justiça.
FORCOM denuncia retirada ilegal de equipamentoFoto: privat
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O governo provincial de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, ordenou a desinstalação do equipamento da Rádio Comunitária de Mocímboa da Praia. O Fórum Nacional das Rádios Comunitárias (FORCOM) condena a decisão por considerá-la ilegal e incompreensível.
O equipamento foi doado pelos EUA no âmbito do Fundo de Reconstrução, para ajudar a emissora a retomar a atividade após ter sido destruída pelos insurgentes em 2017.
Em entrevista à DW, a diretora da FORCOM, Ferosa Zacarias, garante que irá apresentar queixa contra o Estado e acusa as autoridades de colocarem em causa as liberdades de imprensa, de reunião e de associação.
DW África:Qual foi o argumento apresentado pelo governo provincial para desinstalar o equipamento?
Ferosa Zacarias (FZ): O argumento utilizado pelo governo foi de que o Fórum Nacional das Rádios Comunitárias (FORCOM) não pertencia a um grupo da reconstrução e que, por isso, não deveríamos mudar a rádio. Mas isso é completamente ilegal, já que não precisamos de pertencer a nenhum grupo para reconstruir uma rádio que já é nossa afiliada.
Nós cumprimos com todos os procedimentos. O processo levou quase dois anos e foram sendo criados obstáculos que, felizmente, nos ajudaram a organizar todos os documentos. Mas, devido ao terrorismo, tudo foi destruído. Ficámos sem documentos.
DW África:A desativação decidida pelo governo provincial é uma desautorização ao Gabinete de Informação (GABINFO)?
FZ: De certa forma, sim. Em relação ao gabinete, não temos qualquer reclamação. Pelo contrário, o GABINFO concedeu-nos uma licença. Foi muito rápido a conceder-nos a renovação da licença, e apresentámos esse documento ao governo provincial, providenciando para que nos fosse concedida a autorização.
Houve vários encontros de concertação com o governo distrital. Em nenhum momento recebemos informação de que havia outra entidade que estivesse a reconstruir a rádio. Recebemos com grande satisfação a notícia de que o próprio governo distrital agradecia e estava disposto a cooperar. Tanto é que o equipamento do FORCOM está em Mocímboa da Praia desde setembro do ano passado.
Rádio de Mocímboa da Praia impedida de retomar atividade após doação dos EUA, diz FORCOMFoto: Johannes Beck
DW África: O equipamento foi doado pelos Estados Unidos da América, em concordância com o Governo moçambicano?
FZ: Sim, em concordância com o Governo, no âmbito da reconstrução pós-terrorismo. Foi doado diretamente ao FORCOM.
DW África:Haverá desconfiança em relação ao equipamento, no sentido de que possa, por exemplo, estar a ser usado para fins criminosos? Qual é a desconfiança que existe relativamente a esta decisão do governo provincial?
FZ: Descarto completamente esse ponto. O que houve foi falta de coordenação por parte do governo, porque, logo no início, se tivéssemos sido informados de que havia equipamento, quem sabe teríamos realocado para outro ponto. Falo do equipamento, não da frequência, nem do título da rádio. Teríamos pensado numa outra estratégia e, quem sabe, se o governo distrital, assim como o provincial, se comunicasse devidamente, teria informado que já havia equipamento, evitando toda esta confusão.
Isto é uma vergonha nacional, esta falta de coordenação e sensibilidade para com o apoio à sociedade civil.
DW África:A FORCOM também denuncia perseguições aos seus membros para integrarem o Instituto de Comunicação Social. Existe alguma lei que obrigue as rádios que operam em Moçambique a serem membros ou a estarem filiadas ao instituto?
FZ: Não. Não existe qualquer lei que o obrigue, mas criam-se "artimanhas". Por exemplo, questões relacionadas com o licenciamento. Se não tivéssemos tido a devida preparação e organização de todo o processo, poderiam ter-nos "apanhado", se calhar, na questão da licença.
Por vezes, cobram taxas às rádios que não sabem que há isenção do pagamento pela exploração da rede elétrica. E isso gera uma certa ameaça e intimidação no seio das rádios.
DW África:Entende o gesto como uma ameaça à liberdade de imprensa? Ou seria apenas uma atuação baseada na ignorância das autoridades?
FZ: É uma grave ameaça, sim, à liberdade de imprensa, de expressão e à liberdade de associativismo. É um assunto muito grave, que não deveria ser visto apenas no âmbito da comunicação social.
Acredito que o que está a acontecer agora com a rádio Mocímboa da Praia possa estar a acontecer com outra organização da sociedade civil, por exemplo, que queira construir um hospital.
Cabo Delgado: Datas marcantes dos ataques armados
Começaram em outubro de 2017 em Mocímboa da Praia e já se alastraram a outros três distritos moçambicanos. Os ataques armados na província de Cabo Delgado, que somam já mais de 130 mortos, ainda não têm solução à vista.
Foto: DW/G. Sousa
Outubro de 2017
Os primeiros ataques de grupos armados desconhecidos na província de Cabo Delgado aconteceram no dia 5 de outubro de 2017 e tiveram como alvo três postos da polícia na vila de Mocímboa da Praia. Cinco pessoas morreram. Cerca de um mês depois, a 17 de novembro, as autoridades dão ordem de encerramento a algumas mesquitas por se suspeitar terem sido frequentadas por membros do grupo armado.
Foto: Privat
Dezembro de 2017
Surgem novos relatos de ataques nas aldeias de Mitumbate e Makulo, em Mocímboa da Praia. Na primeira semana de dezembro de 2017, terão sido assassinadas duas pessoas. Vários suspeitos foram identificados, tendo os moradores dado conta que os atacantes deram sinais de afiliação muçulmana. Por sua vez, a polícia desmentiu o envolvimento do grupo terrorista Al-Shabaab nestes ataques.
Foto: DW/G. Sousa
Janeiro a maio de 2018
Apesar de ter começado calmo, 2018 revelar-se-ia um ano de terror na província de Cabo Delgado com os ataques a alastrarem-se a mais distritos. Dada a gravidade da situação, a Assembleia da República aprovou, a 2 de maio, a Lei de Combate ao Terrorismo. Mas, no final do mês, dia 27, novos ataques foram realizados junto a Olumbi, distrito de Palma. Dez pessoas morreram, algumas decapitadas.
Foto: Privat
2 de junho de 2018
Dias mais tarde, a televisão STV dava conta que as forças de segurança moçambicanas haviam abatido, nas matas de Cabo Delgado, oito suspeitos de participação nos ataques. Foram ainda apreendidas catanas e uma metralhadora AK-47, além de comida e um passaporte tanzaniano. Por esta altura, já milhares de pessoas haviam abandonado as suas casas, temendo a repetição dos episódios de terror.
Foto: Borges Nhamire
4 de junho de 2018
Ainda se "festejava" os avanços na investigação das autoridades, e consequente abate dos suspeitos quando, a 4 e 7 de junho, se registaram novos incêndios nas aldeias de Naunde e Namaluco. Sete pessoas morreram e quatro ficaram feridas. Foram ainda destruídas 164 casas e quatro viaturas. O mesmo cenário voltou a repetir-se a 22 de junho: um novo ataque na aldeia de Maganja matou cinco pessoas.
Foto: Privat
29 de junho de 2018
Fortemente criticado por não se ter ainda pronunciado acerca dos ataques, o Presidente moçambicano Filipe Nyusi resolve fazê-lo, em Palma, perante um mar de gente. Oito meses e 33 mortos [25 vítimas dos ataques e oito supostos atacantes] depois... Em Cabo Delgado, Nyusi prometeu proteção aos cidadãos e convidou os atacantes a dialogar consigo, de forma a resolver as suas "insatisfações".
Foto: privat
Agosto de 2018
Depois de, em julho, um novo ataque à aldeia de Macanca - Nhica do Rovuma, em Palma, ter feito mais quatro mortos, Filipe Nyusi desafiou, a 16 de agosto, os oficiais promovidos no exército, por indicação da RENAMO, a usarem a sua experiência no combate contra estes grupos armados que, mais tarde, a 24 do mesmo mês, tirariam a vida a mais duas pessoas, na aldeia de Cobre, distrito de Macomia.
Foto: Jinty Jackson/AFP/Getty Images
Setembro de 2018
Setembro de 2018 voltava a ser um mês negro no norte de Moçambique. Ataques nas aldeias de Mocímboa da Praia, Ntoni e Ilala, em Macomia, deixaram pelo menos 15 mortos e dezenas de casas destruídas. No final do mês, o ministro da Defesa, Atanásio Mtumuke, afirmou que os homens armados responsáveis pelos ataques seriam "jovens expulsos de casa pelos pais".
Foto: Privat
Outubro de 2018
Um ano após o início dos ataques em Cabo Delgado, a polícia informou que os mais de 40 ataques ocorridos, haviam feito 90 mortos, 67 feridos e destruído milhares de casas. Foi também por esta altura que Filipe Nyusi anunciou a detenção de um cidadão estrangeiro suspeito de recrutar jovens para atacar as aldeias. No final do mês, começaram a ser julgados 180 suspeitos de envolvimento nos ataques.
Foto: privat
Novembro de 2018
Novos relatos de mortes macabras surgem na imprensa. Seis pessoas foram encontradas mortas com sinais de agressão com catana na aldeia de Pundanhar, em Palma. Dias depois, o cenário repetiu-se nas aldeias de Chicuaia Velha, Lukwamba e Litingina, distrito de Nangade. Balanço: 11 mortos. Em Pemba, o embaixador da União Europeia oferecia ajuda ao país.
Foto: Privat
6 de dezembro de 2018
A população do distrito de Nangade terá feito justiça pelas próprias mãos e morto três homens envolvidos nos ataques. Na altura, à DW, David Machimbuko, administrador do distrito de Palma, deu conta que "depois de um ataque, a população insurgiu-se e acabou por atingir alguns deles". Entretanto, o Ministério Público juntou mais nomes à lista dos arguidos neste caso. Entre eles está Andre Hanekom.
Foto: DW/N. Issufo
16 de dezembro de 2018
A 16 de dezembro, e após mais um ataque armado no distrito de Palma, que matou seis pessoas, entre as quais uma criança, Moçambique e Tanzânia anunciaram uma união de esforços no combate aos crimes transfronteiriços. 2018 chegava assim ao fim sem uma solução à vista para os ataques que já haviam feito, pelo menos, 115 mortos. O julgamento dos já acusados de envolvimento nos ataques continua.
Foto: privat
Janeiro de 2019
O novo ano não começou da melhor forma. Sete pessoas morreram quando um grupo armado intercetou uma carrinha de caixa aberta que transportava passageiros entre Palma e Mpundanhar. Na semana seguinte, outras sete pessoas foram assassinadas a tiro no Posto Administrativo de Ulumbi. Um comerciante foi ainda decapitado em Maganja, distrito de Palma, no passado dia 20.