Em Portugal, arrancou hoje (22.05) o julgamento de 17 polícias de segurança pública acusados de tortura, sequestro e falsificação de relatos contra jovens negros do bairro da Cova da Moura, na periferia de Lisboa.
Manifestações em Lisboa (2015) contra violência policial no caso "Cova da Moura"Foto: Herberto Smith
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É qualificado de inédito o julgamento, que começou nesta terça-feira, em Portugal, de 17 dos 18 Polícias de Segurança Pública (PSP) acusados de crimes graves entre os quais tortura, sequestro e falsificação de relatos. Os agentes da Esquadra de Alfragide respondem em tribunal por agressão e maus tratos contra seis jovens negros, de origem africana, do bairro da Cova da Moura, na periferia de Lisboa.
Os crimes ocorreram a 5 de fevereiro de 2015, e durante dois anos foi preciso reunir as provas para a produção da acusação pelo Ministério Público. Pela sua caraterística, o julgamento está a ser acompanhado pela Amnistia Internacional, a SOS Racismo e o Comité Anti-Tortura do Conselho da Europa.
Julgamento
Eram cerca das 10 da manhã, hora de Lisboa, quando começou, com cerca de 60 minutos de atraso, o julgamento dos 17 agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP) da Esquadra de Alfragide, acusados de tortura, sequestro, entre outros crimes agravados por ódio racial envolvendo seis jovens da Cova da Moura, bairro da Amadora, habitado na sua maioria por africanos negros.
Tribunal de SintraFoto: DW/J. Carlos
Nesta primeira sessão do julgamento, que decorre no Tribunal de Sintra, os juízes, assistentes e advogados de defesa de ambas as partes ouviram as alegações dos primeiros acusados, que acabaram por refutar os relatos de índole racial expressos nos autos.
O agente André Silva, condutor de uma carrinha de patrulha, foi o primeiro a ser ouvido durante toda a manhã sobre os acontecimentos ocorridos a 5 de fevereiro de 2015. Relatou o que sucedeu na Cova da Moura, onde começaram os desacatos com a polícia envolvendo um grupo de jovens, e na Esquadra de Alfragide, onde ocorreram outros episódios, depois da detenção de Bruno Lopes.
O referido agente disse que não se revê nos factos descritos pela acusação e desmentiu, em tribunal, que se tenham proferido frases racistas como "preto de merda, vai para a tua terra”, "não sabem como odeio a vossa raça” ou "a raça africana tem que desaparecer”.
Caso "Cova da Moura"
Catarina Prata, coordenadora da Amnistia InternacionalFoto: DW/J. Carlos
No final da sessão da manhã, os advogados de defesa de ambas as partes não quiseram prestar declarações aos jornalistas. Várias organizações não-governamentais anti-racistas e defensoras dos Direitos Humanos acompanham o caso "Cova da Moura” com interesse. Uma delas é a Amnistia Internacional Portugal, que quer que este julgamento inédito seja exemplar.
"Estamos aqui a falar de uma amostra de agentes e não da instituição. Portanto, também será importante para a própria imagem da PSP. Há maus agentes que deram mau nome à instituição e esses maus agentes, a ser provado que cometeram estes atos, que sejam responsabilizados", disse à DW África de Catarina Prata, coordenadora da Amnistia Internacional.
Segundo Prata, este julgamento é importante para que não permaneça a noção de impunidade dos agentes referenciados no despacho de acusação do Ministério Público de 10 de julho de 2017. "E para que a instituição também reflita sobre o inédito, que é uma acusação de tortura no nosso país, e sobre as necessidades de formação e de mudança que poderão ser feitas para que este tipo de julgamento não se volte a repetir", completou.
Racismo e tortura em Portugal: arranca julgamento de 17 agentes da PSP
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Falsificação de relatosDe acordo com o despacho, depois de recolhidas e analisadas as provas (relatos de testemunhas, exames médicos, inspeções, entre outras), conclui-se "de forma inequívoca” que os agentes da polícia em causa falsificaram o seu relato nos autos sobre o que, de facto, terá acontecido naquele dia 5 de fevereiro de 2015 na Esquadra de Alfragide.
No seu pronunciamento inicial, Lúcia Gomes, um dos advogados de defesa dos jovens, sublinhou, de acordo com as provas, que os agentes infringiram agressões brutais e torturaram as vítimas - um tratamento que considerou de "cruel e desumano". A advogada apelou para que a justiça seja feita como prevenção, além de um sinal para toda a comunidade, sublinhando que "ninguém que comete um crime pode sair impune".
O Ministério Público quer ver este caso resolvido até finais de setembro deste ano.
Bairro da Jamaica na margem sul de Lisboa: A prolongada esperança
A Urbanização do Vale de Chícharos no Seixal, concelho do distrito de Setúbal (Grande Lisboa), acolhe, na sua maioria, imigrantes dos países africanos de língua portuguesa. Há quem viva no bairro há mais de 20 anos.
Foto: J. Carlos
Décadas à espera de realojamento
Os prédios inacabados, propriedade da Urbangol, uma sociedade sedeada num paraíso fiscal com dívidas ao fisco, foram ocupados por pessoas de baixa renda que não tinham condições para comprar uma casa. Aguardam, ao longo destes anos, pela promessa de realojamento por parte da autarquia local.
Foto: J. Carlos
Arte e desabafo por um bairro melhor
Por uma das entradas do Jamaica, os visitantes são recebidos por estes murais pintados na parede que cerca a instalação de transformadores da EDP, Energias de Portugal. As pinturas expõem os sentimentos de mudança e a visão do mundo por parte dos artistas que aspiram viver em um bairro melhor.
Foto: J. Carlos
Os ídolos Bob Marley e Che Guevara
O lendário músico jamaicano Bob Marley ou o líder guerrilheiro argentino-cubano Che Guevara são uma espécie de ídolos para os jovens artistas autores destas pinturas. Ao longo da parede, que funciona como uma tela, veem-se outros motivos, incluindo a reprodução de um bairro típico imaginário em África.
Foto: J. Carlos
Falta de água e de luz
Nos cafés ou em outro ponto de encontro e de convívio, os moradores acabam por falar e questionar sempre sobre os inúmeros problemas com que se deparam no dia-a-dia. A falta de água e de saneamento básico ou os cortes de luz pela empresa fornecedora quando não são pagas as faturas coletivas constituem uma dor de cabeça diária.
Foto: J. Carlos
Mas, na hora de matar a fome…
Enquanto não vem uma solução para o realojamento, a vida não para no Jamaica. Aos fins de semana, a música ajuda a acalentar os problemas. Os grelhados à moda dos países de origem, preparados neste caso pela são-tomense Vitória Silva, servem para matar a fome depois de um dia de trabalho árduo.
Foto: J. Carlos
… Pratos típicos juntam amigos
Percorrendo o território adjacente, encontram-se vários espaços anexados como este, adaptados para café e ou restaurantes, são uma das fontes de rendimento familiar. Os pratos típicos de África, sobretudo à base de peixe e banana, recheiam as mesas dos clientes provenientes de sítios diversos e servem de pretexto para reunir amigos.
Foto: J. Carlos
Cultivar para render
Em uma pequena parcela do terreno à volta, há moradores com alguma experiência agrícola que improvisaram hortas com variedades de hortaliças para consumo próprio. Plantam couves, alfaces, tomates, cebolas, alhos e batatas, entre outros produtos que ajudam a aliviar as despesas com a alimentação.
Foto: J. Carlos
Produzir para sobreviver
Também com o mesmo objetivo, a criação de galinhas reforça a dieta alimentar caseira. Para alguns dos moradores desempregados ou não, esta é uma das formas para suprir as muitas dificuldades de sobrevivência quando é baixo o rendimento familiar.
Foto: J. Carlos
Desemprego, droga e prostituição inquietam
O desemprego é um dos males que inquietam jovens mães como Vanusa e Aurora Coxi. Dizem que os habitantes são, de certo modo, discriminados quando procuram emprego pela fama desmerecida de aqui morarem. Isso leva muitos jovens a seguir por caminhos impróprios, do roubo, do tráfico de droga ou da prostituição. Ambas têm um sonho: acabar a universidade, interrompida por dificuldades diversas.
Foto: J. Carlos
Inundação e humidade
A estes problemas juntam-se as condições de habitabilidade nos prédios, que afetam a maioria das mais de 800 pessoas aqui residentes. Júlio Gomes, guineense que mora num anexo improvisado na parte traseira de um dos prédios, é afetado pela inundação quando chove ou quando rompe a canalização do sistema de esgotos do vizinho do andar de cima.
Foto: J. Carlos
Acesso à tarifa social de eletricidade
Os moradores estão em conflito com a empresa que fornece eletricidade (EDP), porque o critério de cobrança não é o mais adequado. É a associação do bairro que recebe o dinheiro dos consumos mensais e paga as faturas únicas por lote, consoante a leitura no contador colocado em cada prédio. Mas há quem não pague. Os clientes reclamam por não beneficiarem de tarifa social.
Foto: J. Carlos
Sede a precisar de reabilitação
Na sede da Associação para o Desenvolvimento Social da Urbanização de Vale de Chícharos, onde vive uma família, as inundações também constituem um incómodo quando chove. Aqui têm lugar as reuniões para discutir os problemas que afetam os residentes, entre os quais o realojamento. Reabilitar o espaço, onde também funcionam aulas de alfabetização, é uma solução em stand by por falta de recursos.
Foto: J. Carlos
Parque infantil inseguro
Ao lado da sede está um pequeno parque infantil, igualmente sem as condições mínimas de segurança para as crianças brincarem. Os poucos equipamentos nele existentes estão em mau estado de conservação e utilização. Este é, entretanto, um dos poucos espaços de lazer que dispõem para descarregar energia e preencher o tempo.
Foto: J. Carlos
Ação social imprescindível
A CRIAR-T – Associação de Solidariedade tem prestado serviço útil à comunidade, já lá vão mais de 15 anos. As suas várias valências permitem, além de apoio social, acolher crianças enquanto os pais vão trabalhar. Porque «é um perigo elas andarem pelo bairro a brincar», diz Dirce Noronha, presidente da Associação para o Desenvolvimento de Vale de Chícharos.