Aumentam as críticas ao reassentamento de deslocados internos em Cabo Delgado pelas autoridades de Moçambique. O Governo parece não ter planos de longo prazo para quem foge do terrorismo no norte do país.
Publicidade
Em apenas três anos, o número de deslocados internos em Cabo Delgado subiu para mais de 560 mil. O terrorismo obrigou-os a fugir para áreas consideradas seguras, como Pemba. Num esforço para diminuir a pressão sobre os recursos da capital provincial, o Governo tem estado a reassentá-los nos distritos de Ancuabe e Metuge, num processo com graves lacunas, afirma o pesquisador do Observatório do Meio Rural, João Mosca:
"Não estamos a ver, até ao momento, recursos, meios e organização suficiente para resolver o problema". Há uma grande percentagem da população de Cabo Delgado fora dos seus locais de vida, de trabalho, familiar, lembra o analista: "Portanto, há uma situação social muito crítica acompanhada por uma situação político-militar perigosa".
AI acusa governo de fazer pouco pelos deslocados
Também a organização não-governamental de defesa dos direitos humanos, Amnistia Internacional (AI), aponta o dedo acusador as autoridades. "Infelizmente, o que estamos a ver é que, nas zonas onde os deslocados estão a instalar-se, não há intervenção significativa do Estado moçambicano", disse à DW David Matsinhe, pesquisador da AI.
Enquanto as autoridades estão a braços com uma assistência emergencial, há questões estruturais relativas ao reassentamento que vão sendo levantadas. "Estou confuso, porque este reassentamento é definitivo ou provisório? A guerra já acabou em Cabo Delgado? As pessoas podem voltar ou não [para os seus locais de origem]?", questiona o sociólogo Moisés Mabunda.
Embora concorde que a prioridade é assistir as pessoas para que vivam em "condições humanas", Mabunda adianta que sem respostas claras sobre o teor da situação atual, não é possível levar a cabo um reassentamento em condições.
Publicidade
Deslocados internos raras vezes regressam às suas aldeias
Realojamentos que não agreguem os interesses dos deslocados podem, a médio prazo, desembocar em conflitos infindáveis no país. Terá o Governo salvaguardado esse aspeto e estruturado um plano de reassentamento ajustado à situação?
O secretário de Estado na província nortenha de Cabo Delgado, Armindo Ngunga, deixa entender que não, esclarecendo que as autoridades, para já, concentram os seus esforços na assistência de emergência: "Esse assunto é pontual, o que o Governo está a fazer é criar as melhores condições possíveis para que essa gente viva bem, para que possa produzir para o seu sustento, ter um bom teto, arruamento...".
O dirigente lembra que a história da guerra dos 16 anos em Moçambique mostra que os deslocados internos não retornaram, na sua maioria, aos seus locais de origem, acabando por se adaptar às "novas casas". As atrocidades que viveram e testemunharam contribuem igualmente para a relutância de regressarem às suas aldeias.
O desterro forçado dos deslocados em Cabo Delgado
São mais de 450 mil no norte de Moçambique. O terrorismo cortou-lhes as raízes e tomou-lhes o chão. Os deslocados internos procuram vingar noutras paragens. E Pemba tem sido lugar de eleição. Sobreviverão na nova terra?
Foto: Privat
A dor da perda e da impotência
Um olhar que diz mais do que mil palavras, a imagem poderia ser "sem legenda". Foi depois de um ataque à aldeia "Criação", Muidumbe, a primeira investida terrorista ao distrito, em novembro de 2019. Os insurgentes começaram os seus ataques em Cabo Delgado em outubro de 2017.
Foto: Privat
Histórias de vida reduzidas a cinzas
Desde então, a matança e destruição passaram a ser visitas assíduas da região. Como ninguém quer ser anfitrião, os aldeões fugiram. Em finais de outubro, Muidumbe e outros distritos sangraram de novo e a população fugiu. Muidumbe está praticamente nas mãos dos terroristas, tal como Mocímboa da Praia, desde agosto.
Foto: Privat
Quase todos os caminhos vão dar a Pemba
O único desejo destes residentes de Mueda é conseguir um canto no camião para chegar à capital provincial de Cabo Delgado. Mas a disputa entre pessoas e os seus próprios pertences ameaça deixar alguém para trás. Desde meados de outubro, Pemba recebeu cerca de 12 mil deslocados. Inicialmente, recebia à volta de mil deslocados por dia.
Foto: Privat
Quando o mato passa a ser melhor que o lar
Para muitos em Cabo Delgado, ter um teto deixou de ser sinónimo de segurança. Conseguir manter a vida, mesmo sem casa, passou agora a ser a meta. Os bichos passaram a ser mais cordiais que os irmãos terroristas, as estrelas melhores que o teto e os arbustos melhores que as paredes. Famílias procuram refúgio nas matas, onde caminham por dias dominados pelo medo, sem comida e sem norte.
Foto: Privat
Um abraço amigo em Pemba
Estes deslocados chegam de Quissanga. Mas também chegam à praia de Paquitequete, Pemba, deslocados vindos de vários lugares. Todos tentam escapar ao terror. Muitos fixam-se aqui, onde recebem apoio de ONGs, associações, indivíduos e do Governo. Há até quem abra as portas da sua casa para os receber, mesmo não os conhecendo.
Foto: Privat
Crise humanitária faz brotar solidariedade infinita
A falta de quase tudo faz despertar solidariedade que chega de todo o lado. Para quem está longe, uma angariação de fundos e bens materiais é a opção. Já cuidar dos deslocados na praia de Paquitequete, atendendo-os nas suas necessidades, é o que faz quem está no terreno. Na praia, há jovens que chegam de madrugada para dar amor a quem precisa.
Foto: Privat
Uma fuga rodeada de perigos
O medo é tanto que nem a sobrelotação parece intimidar os deslocados internos. No começo de novembro, mais de 40 pessoas morreram a tentar chegar a Pemba num naufrágio entre as ilhas do Ibo e Matemo.
Foto: Privat
Pemba a rebentar pelas costuras
O "boom" de deslocados é tão grande que o sistema de serviços básicos para a população, como água e saneamento, está no limite. Antes desta nova vaga de deslocados, a capital de Cabo Delgado tinha 204 mil habitantes. Agora, tem mais de 300 mil.
Foto: DW/E. Silvestre
Começar nova vida noutro chão
O Governo criou um comité de gestão para esta crise humanitária. Afirma que está a criar novas aldeias, centros de reassentamento, infrastruturas e a parcelar terras para acomodar os deslocados. Embora esteja garantida a segurança, as suas raízes estão noutro chão.
Foto: Privat
Que futuro?
Por enquanto não há resposta. Mas há deslocados que se vão "desenrascando" para sobreviver. Muitos dizem que não querem viver de mão estendida. Por exemplo, quem tem barco vai à pesca ou trasporta mercadorias. Outros entretêm-se a jogar futebol. Vão cuidando das suas vidas. Mas para os que não têm alternativas, que são a maioria, correrão riscos de entrar para o mundo do crime?