O investigador Eugénio da Costa Almeida acredita que Lula da Silva tem "todas as condições" para sanar os problemas internos, unir o Brasil e voltar a impulsionar as relações com países como Angola ou Moçambique.
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Apesar dos grandes desafios que o Presidente eleito do Brasil vai ter pela frente, haverá espaço para parcerias com os países africanos. É o que defende o analista luso-angolano Eugénio da Costa Almeida, do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE).
No entanto, em entrevista à DW, o investigador alerta que, apesar da derrota de Jair Bolsonaro nas urnas, estas eleições mostraram que o "bolsonarismo" veio para ficar em muitos estados e no Parlamento brasileiro, com a eleição expressiva de alguns candidatos aliados do atual Presidente.
Luiz Inácio Lula da Silva vai, então, ter que lidar com essa e outras questões internas para depois definir as linhas de cooperação com África, em especial com os países africanos de língua oficial portuguesa, como Angola e Moçambique.
DW África: O que representa o regresso de Lula da Silva à Presidência da República do Brasil?
Eugénio da Costa Almeida (EA): A expetativa é que, com Lula da Silva, as relações com África possam voltar ao que eram. Ele ontem falou nessa possibilidade. Tendo em conta os dois consulados de Lula da Silva, haverá uma maior aproximação ou um retorno, porque é evidente que, depois dele, [a relação esfriou] com Dilma Rousseff na Presidência, e Bolsonarotambém nada fez para melhorar ou incrementar as relações.
DW África: No primeiro discurso como Presidente eleito, Lula da Silva relembrou o momento em que o Brasil foi um grande parceiro de África durante o seu Governo (entre 2003 e 2010). Mas agora o país tem grandes desafios pela frente, há muita coisa para arrumar em casa. Na sua avaliação, haverá espaço para parcerias com África no novo Governo Lula?
EA: Haverá. É preciso não esquecer que um dos pontos da política externa de Bolsonaro foram os BRICS, e um dos países que faz parte dos BRICS é a África do Sul. Há essa aproximação muito forte. Uma coisa não invalidará a outra.
É evidente que o Brasil está dividido. Lula vai ter esse grande problema. Teoricamente, com este resultado, Bolsonaro vai-se embora, mas o bolsonarismo ficou, e viu-se isso nas eleições estaduais. Vai ser um condicionante muito grande para Lula da Silva
DW África: Lula da Silva saberá dar a volta a essa questão?
EA: Creio que sim, e tem todas as condições para isso.
DW África: Falando especificamente dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa: Durante a era Lula, o Brasil teve uma relação muito próxima com Angola e Moçambique, por exemplo. Mas muita coisa mudou nesses países de lá para cá, inclusive os Presidentes. Consegue ver novas relações sendo construídas?
EA:Várias empresas brasileiras continuam em Angola, por exemplo. Algumas são importantes, nomeadamente na questão do biodiesel e até na construção. Não me parece que essas relações diminuam, até porque houve sempre laços muito estreitos entre Angola e o Brasil, independentemente de quem estava no poder dos dois lados.
Em Moçambique, é a mesma coisa. Em doze anos, muita coisa mudou, mas também sabemos que, há doze anos, alguns dos que estão no poder hoje já estavam ligados ao poder na altura. Portanto, não há alterações substanciais na evolução da linha política que norteia os dirigentes atuais. Mas antes é preciso ter em conta que Lula vai ter que resolver muitos problemas internos. Não sabemos quem é que vai estar nos principais cargos ministeriais, nomeadamente das Relações Exteriores.
DW África: Em que área acha que o Brasil poderia contribuir mais em relação a África, especificamente nos PALOP?
EA: Tudo vai depender daquilo que for tratado entre as partes. Os países africanos precisam de muita coisa e o Brasil também. Há coisas que talvez os países africanos não precisem tanto, por exemplo de mais soja ou produtos para o biodiesel. Mas há outras formas de apoio, por exemplo o desenvolvimento industrial. Lula diz que vai reindustrializar o Brasil, e, em termos de cooperação, isso também pode ajudar a indústria dos países africanos, em particular os países de língua oficial portuguesa.
Os dez músicos brasileiros que mais se empenharam para fazer a ponte África-Brasil
A música torna-se um dos maiores aliados para eliminar diferenças e polémicas como, por exemplo, se o samba é brasileiro ou de Angola. Estes dez artistas colocam África em destaque de forma inovadora e revolucionária.
Foto: W. Montenegro
Viagens em livros e muita música
Martinho da Vila faz um verdadeiro manifesto anti-racista no livro "Kizombas, Andanças e Festanças", lançado pela primeira vez em 1972. O cantor e compositor, que assina alguns dos maiores sucessos da música brasileira, aparece no topo da lista dos músicos brasileiros que mais contribuíram para a ponte Brasil-África de acordo com diferentes instituições e especialistas ouvidos pela DW África.
Foto: Getty Images/R. Dias
"Marrom" graças ao amor pelas origens
Alcione Dias Nazareth, a Marrom, viajou diversas vezes para apresentações em países africanos, como Angola e Moçambique. Depois de 25 anos sem ir a Cabo Verde, a maranhense fez uma apresentação, em 2011, para celebrar os seus 40 anos de carreira. Do arquipélogo, inclusive, gravou "Regresso" (Mamãe Velha), composição histórica de Agostinho José que usou um poema de Amílcar Cabral.
Foto: Getty Images/F.Calfat
Sons e política em oração
Gilberto Gil, músico e ex-ministro da Cultura do Brasil, procurou desconstruir equívocos na música "Mão da Limpeza", em 1983, levando em conta o pejorativo termo de que "negro quando não suja na entrada, suja na saída". Cantada ao lado de Chico Buarque, valoriza a contribuição dos afro-brasileiros na gastronomia e cultura brasileiras. Em 1985, lançou a "Oração Pela Libertação da África do Sul".
Foto: FAO/Giulio Napolitano
"A carne mais barata do mercado é a carne negra"
Elza Soares é militante assumida numa carreira de mais de 60 anos e apresenta em muitas das suas músicas a realidade do negro, tomando como ponto central a mulher. Nascida na favela da Moça Bonita, Rio de Janeiro, em 1937, Elza não perde oportunidade para gravar canções como "A Carne", de Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette. O mais recente trabalho é "A Mulher do Fim do Mundo" (2016).
Foto: Getty Images/K.Betancur
Composições e inspiração para novos artistas
Mateus Aleluia (esq.) morou 20 anos em Angola e sempre procurou ligações com outros artistas para dar vida à África perdida na história do Brasil. O músico nascido no estado brasileiro da Bahia inspira trabalhos de nomes como Carlinhos Brown, Nação Zumbi e Cidade Negra. Aleluia integrou o legendário "Tincoãs", nos anos 1970. Na foto, está ao lado de Bule-Bule (centro) e Raimundo Sodre (dir).
Foto: picture-alliance/ dpa/S.Creutzmann
Morena de Angola, Moçambique e Brasil
Clara Nunes (1942-1983) fascina quem pesquisa sobre o Brasil e está em África. O inédito nela é ter cantado sobre elementos fora do dia-a-dia das pessoas, como em "Mãe África", do marido Paulo César Pinheiro e Sivuca. Foi desta forma que rompeu paradigmas, vendendo mais de 100 mil cópias. É retratada no documentário Clara Estrela (2017), dirigido pelos brasileiros Susanna Lira e Rodrigo Alzugui.
Foto: W. Montenegro
O Sul do mundo em lágrimas
Milton Nascimento compôs a Missa dos Quilombos, em 1981, para denunciar as consequências da escravidão e do preconceito no Brasil. Criado por pais adotivos brancos, impulsionou a criação dos Tambores de Minas, nos anos 1990, e trabalhou com projetos envolvendo novos talentos. Com mais de 50 anos de carreira, escreveu Lágrima do Sul, ao lado de Marco Antônio Guimaraes, do grupo Uakti.
Foto: picture-alliance/dpa/M.Cruz
Afro-brasileiro fora da África e do Brasil
Desde o início da sua carreira, nos anos 1960, Jorge Ben Jor manteve-se mais próximo dos aspectos afro-brasileiros, afastando-se da Bossa Nova que dominava a cena musical brasileira. O guitarrista, cantor e compositor gravou "África Brasil", em 1976. É deixando-se ser marcado por esta influência que se apresenta em diversos pontos do planeta, como no Festival de Montreux, na Suíça (foto).
Foto: picture-alliance/dpa/S.Campardo
Sem dar adeus à Àfrica
Naná Vasconcelos (1944-2016) já começou sua carreira intitulando o primeiro disco de "Africadeus", em 1973. Respeitado no mundo inteiro por valorizar as culturas africana e negra em seu trabalho, ganhou oito prémios Grammy. De 1983 a 1990, foi o Melhor Percussionista do Ano, da revista Down Beat. Em 2010, o pernambucano reuniu meninas e meninos de Angola, Brasil e Portugal no projeto Língua Mãe.
Foto: picture-alliance/dpa/S.Moreira
Revolução em lugares inesperados
Já no início da carreira, nos anos 1960, Maria Bethânia fazia invocações africanas e revolucionou aglutinando dois continentes dentro de boates! Com uma trajetória sólida, em 1986, gravou com o grupo sul-africano Lady Smith Black Mambazo. Ao lado de Mingas, Mia Couto e Agualusa, a intérprete baiana acaba de lançar o documentário "Karingana, Licença para Contar" (2017), de Monica Monteiro.